Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:013/19
Data do Acordão:01/23/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA OLINDA GARCIA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25472
Nº do Documento:SAC20200123013
Data de Entrada:02/20/2019
Recorrente:A……….. E B………, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 2 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.13/19

Acordam no Tribunal dos Conflitos

I - RELATÓRIO

1. Em junho de 2016, A………. e B………., residentes em …………., Covilhã, propuseram, na Instância Local da Covilhã, Comarca de Castelo Branco, contra C………, D……….. e E…….., também residentes em …………., Covilhã, ação declarativa com processo comum.

Nessa ação, alegaram, em síntese, que adquiriram, em 1978, em conjunto com o 1º e 2ª RR. o prédio rústico e urbano denominado "Quinta ………..". Por mútuo acordo, e informalmente, dividiram essa Quinta, passando AA e RR a explorar diferentes áreas de tal prédio, tendo a parte onde se encontram as nascentes e locais de captação de água ficado para os RR. Por tal razão, acordaram que as águas seriam comuns, tendo construído regueiras e canalizações para conduzir a água desde os locais de captação até aos locais de acesso e armazenamento de água pelos AA, de modo a que estes a pudessem usar para abastecimento pessoal e irrigação dos campos de cultivo. Em 2015, o 3° R (filho do 1º e da 2ª RR) – E……… - teria destruído a regueira que conduzia água da nascente ao poço dos AA, bem como outros equipamentos de condução da água até ao prédio dos AA, tendo, assim, quebrado um acordo de décadas entre AA e RR, no respeitante à utilização da água.

Concluíram pedindo, em síntese, a condenação dos RR a reconhecerem o direito de propriedade dos AA sobre as águas que nascem ou são captadas no terreno dos RR; condenados a absterem-se de atos que lesem os direitos dos AA ao acesso a tais águas por meio de regueira e tubagens do terreno dos RR até ao dos AA; condenados a reporem a situação que existia até 2015, data em que o 3º Réu danificou equipamentos de captação e condução das águas para o terreno dos AA; condenados no pagamento de €1.800 por prejuízos causados.

2. Os RR contestaram, alegando, além do mais (e para o que aos presentes autos interessa) a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, por preterição do Iitisconsórcio, bem como incompetência material do tribunal judicial. Entendem que, tendo havido expropriação, pelo município da Covilhã, de uma faixa de terrenos (pertencentes aos AA e aos RR) para construção de uma estrada, tendo os terrenos (de AA e RR) deixado de ser contíguos (à exceção de uma pequena parcela) e tendo, consequentemente, as tubagens de conduta de água (do prédio dos RR para o dos AA) de passar por terreno municipal, o município da Covilhã teria de estar em juízo, e o tribunal competente não seria o judicial, mas sim o administrativo.

3. O Juízo Central Cível de Castelo Branco entendeu (tal como defendiam os RR) que havia preterição do litisconsórcio passivo necessário, pois o Município da Covilhã devia estar em juízo com os RR para que a sentença pudesse produzir efeitos também em relação ao Município (nos termos do art.33º, n.2 do CPC), já que os meios de condução da água, do terreno dos RR até ao terreno dos AA, tinham, necessariamente, de atravessar o terreno municipal (correspondente a uma faixa de terreno expropriada para futura construção de uma estrada).

Verificou-se, então a intervenção principal provocada do Município, o qual veio a defender que a competência devia caber aos tribunais administrativos.

O Juízo Central Cível de Castelo Branco veio a acolher esse entendimento, declarou-se incompetente em razão da matéria, e entendendo que a competência pertenceria ao tribunal administrativo.

4. Os AA recorreram de tal decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual veio a confirmar o entendimento de que a competência cabia aos tribunais administrativos.

5. Os AA recorreram, então, para o STJ, afirmando, em síntese, que se trata de um litígio da natureza privada, não existindo qualquer conflito com o Município, pelo que continuaram a defender a competência do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco.

6. O Supremo Tribunal de Justiça determinou a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos, com base no art.101º, n.2 do CPC.

7. O Ministério Público emitiu parecer, entendendo que não se está perante um caso de litisconsórcio necessário entre os RR e o Município, dado não ter sido formulado qualquer pedido contra o Município, não havendo litígio com essa entidade quanto ao transporte da água até à parcela dos AA. E caso o litígio viesse a surgir, tal seria dirimido noutra ação, sem que daí resulte risco de existência de decisões divergentes ou incongruentes. Concluiu que a competência para conhecer do presente litígio pertence aos tribunais comuns e não aos tribunais administrativos.

II - ANÁLISE DO CONFLITO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

O presente conflito respeita à questão de saber se o tribunal competente para dirimir o litígio entre AA e RR é o tribunal comum ou o tribunal administrativo.

A resposta a esta questão depende do entendimento que se sustente quanto à necessidade de o Município da Covilhã estar, ou não, em juízo, juntamente com os RR, para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil.


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Analisando o peticionado pelos AA, concluiu-se que estes nenhuma pretensão deduziram contra aquele Município.

A materialidade da causa respeita, centralmente, a questões de direitos reais, mais concretamente, a propriedade de águas (que nascem ou são captadas nos terrenos dos RR) e acesso a tais águas pelos AA (que se arrogam comproprietários delas).

O facto de a canalização que transporta essas águas ter de atravessar um terreno que agora pertence ao município da Covilhã (após expropriação de terrenos pertencentes aos AA e aos RR) nada tem a ver com o conflito, tal como os AA o configuram, pois estes não formulam qualquer pretensão de reconhecimento dos seus direitos contra aquele município, mas apenas contra os RR.

Sendo jurisprudencialmente e doutrinalmente inquestionável que a legitimidade das partes decorre da natureza do conflito tal como o autor o configura na petição inicial (art.30º, n.3 do CPC), independentemente dos sentidos decisórios possíveis, dúvidas não existem de que, não formulando os AA qualquer pretensão contra aquele município, este não é parte legítima na ação proposta.

Da eventual procedência da ação nenhum prejuízo advém para o Município, pelo que este nenhum interesse direto tem em contradizer a pretensão dos AA (art.30º, n.1 e 2 do CPC).

Assim, não estando em causa uma relação jurídica de natureza administrativa, a competência em razão da matéria não poderá caber aos tribunais administrativos.

Percorrendo o elenco de hipóteses previstas no art.4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.13/2002), conclui-se que o presente caso não cabe no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos.

Este entendimento não é posto em causa pelo facto de ter sido provocada a intervenção processual do município da Covilhã e de este ter vindo dizer que a competência devia caber aos tribunais administrativos, pois como estabelece o art. 38º, n.1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário [LOSJ], a competência do tribunal fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei; sendo, em regra, igualmente irrelevantes as modificações de direito, nos termos do n.2 do referido art.38º.

Esta mesma solução vale no domínio da jurisdição administrativa, dispondo o art.5º, n.1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF] que a competência dos tribunais da jurisdição administrativa se fixa no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto ou de direito que ocorram posteriormente.

A ideia de que a decisão de mérito que vier a ser proferida na ação que os AA propuseram contra os RR terá também de produzir efeitos em relação ao município (porque se for reconhecido aos AA o direito de aceder à água que nasce no terreno dos RR as tubagens têm de passar por terreno municipal), extravasa o que foi pedido pelos AA.

Contrariamente ao defendido pelos RR, e entendido pela primeira e segunda instâncias judiciais, o disposto no art.33º, n.2 do CPC não permite sustentar tal solução, pois, como já referido, a relação jurídica em causa tem natureza puramente privada, em nada afetando os interesses do Município.

Se vier a existir algum conflito entre os AA do presente litígio e o Município, essa será outra questão, como bem se entende no Parecer do MP.

Na hipótese de a decisão sobre o mérito da causa vir a ser favorável aos AA, o facto de tal decisão não produzir efeitos em relação ao município não constitui, por si só, um obstáculo à efetividade prática dos direitos dos AA. Tal como os AA configuram a relação processual, conclui-se que o conflito de interesses se confina a uma dimensão de direito privado, não sendo a intervenção processual do município necessária para a solução de tal conflito.

Caso o município venha a impedir aquela passagem, então, surgirá um conflito diferente, cuja eventualidade não interessa aos presentes autos.


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Concluindo-se, assim, que não estando em causa um conflito de natureza administrativa, a competência para solucionar a discórdia entre AA e RR dos presentes autos pertencerá aos tribunais comuns.

Tal é o que resulta do disposto nos artigos 211º da CRP, 64º do CPC e 40º da LOSJ.

Acresce que, estando em causa um conflito que respeita, centralmente, ao reconhecimento de direitos reais sobre imóveis, a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos tem entendido que a competência para conhecer deste tipo de matéria cabe aos tribunais judiciais (Neste sentido o acórdão de 13.12.2018 (relatora Ana Paula Boularot), no qual se afirma: «A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais, mesmo que cumulativamente se formule um pedido indemnizatório contra a entidade pública»; vd. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/e730b423bae3348b8025836a00559b7d?OpenDocument

No mesmo sentido: Acórdão de 05.06.2014 (relator Paulo Sá), no qual se afirma: «Compete aos tribunais judiciais conhecer da acção, proposta contra o concessionário de uma de uma auto-estrada e o respectivo empreiteiro, em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade sobre um prédio e do direito à água de uma nascente que para ele corria, bem como uma indemnização pelo desapossamento da água em consequência das obras de construção da auto-estrada»; vd. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/bb8b86bb00d4a70280257cfb003813a0?OpenDocument&Highlight=0,direitos,reais.

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III - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes neste Tribunal dos Conflitos em considerar competente a jurisdição comum, em concreto, o Juízo Central Cível de Castelo Branco.

Sem custas.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2020. - Maria Olinda da Silva Nunes Garcia (relatora) - Maria do Céu Dias Rosa das Neves - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - José Manuel Bernardo Domingos - Carlos Luís Medeiros de Carvalho.