Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01/23
Data do Acordão:04/18/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO OU EM SERVIÇO
IDENTIDADE DE QUESTÃO
Sumário:I – A ocorrência de conflitos de jurisdição não pressupõe a identidade de acção onde foram proferidas as declarações de incompetência em razão da matéria, mas somente a identidade da questão objecto das pronúncias opostas, devendo olhar-se ao que se peticionou e porquê.

II – Assim, estamos perante um conflito de jurisdição se um Tribunal do Trabalho e um TAF – por qualificarem como administrativo ou laboral um determinado contrato de trabalho – negaram, por decisões transitadas, a respectiva competência, que atribuíram ao outro, para o conhecimento de pedido indemnizatório decorrente de acidente sofrido pelo trabalhador.
III – Este contrato, embora vinculasse o sinistrado a uma Junta de Freguesia, regia-se pelo Código do Trabalho e era de direito privado – pelo que a decisão do tribunal comum, tem de ser anulada.
IV – Para que tal anulação opere plenamente os seus efeitos, o processo a remeter ao Tribunal do Trabalho, para aí prosseguir os seus termos a partir da pronúncia anulada, será o acervo documental – que o Autor juntou, integrador de um conjunto de actos processuais ocorridos na fase conciliatória do processo por acidente de trabalho.
Nº Convencional:JSTA000P30885
Nº do Documento:SAC2023041801
Data de Entrada:01/12/2023
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VILA REAL - JUÍZO DO TRABALHO DE VILA REAL – JUÍZO 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE MIRANDELA
AUTOR: AA
RÉU: UNIÃO DE FREGUESIAS DE POIARES E CANELAS E OUTRO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 1/23
Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, em 14.03.2019, acção contra a União de Freguesias de Poiares e Canelas e Companhia de Seguros A..., SA pedindo a condenação solidária das Rés no seguinte:
“a) A pagarem ao A. a quantia de €9.150,00 (nove mil cento e cinquenta euros), a título de todos os prejuízos patrimoniais sofridos pelo acidente de trabalho;
b) No pagamento de juros desde a citação do R. e até integral pagamento, que se vierem a vencer.
c) Ser fixada ao A. uma IPP (Incapacidade Parcial Permanente) após a realização de perícia médica legal, com as respetivas consequências legais.”
Em síntese, o Autor alegou que trabalha por conta da 1ª Ré, e sob a sua direcção e fiscalização, no âmbito de contrato de trabalho a termo certo com efeitos a partir de 03.09.2012 e termo em 30.08.2013, tendo decorrido as respectivas renovações automáticas. No âmbito do referido contrato de trabalho, o A. exerce a categoria profissional de Assistente Operacional, com as funções de, designadamente, limpar valetas, fazer paredes em pedra, utilizar roçadeiras para cortar erva, podar e cortar árvores, trabalhando para a 1ª Ré, de segunda a sexta, cumprindo o horário completo de trabalho e auferindo a remuneração mensal de €650,00.
A 1ª Ré celebrou com a 2ª Ré um contrato de seguro que cobre os acidentes de trabalho sofridos pelos trabalhadores ao seu serviço.
No dia 27.10.2017, por volta das 14h, o A. enquanto desempenhava as funções, sofreu um acidente de trabalho, o qual foi participado pela 1ª Ré à 2ª Ré em 30.10.2017.
Em 27.04.2018 o A. teve alta com IPP (Incapacidade Parcial Permanente) de 7,50%, tendo retomado o seu trabalho.
No entanto, após a alta não conseguiu desempenhar as funções incumbidas pela 1ª Ré, tendo de recorrer a baixa médica, deixando de auferir qualquer salário por parte da 1ª Ré, pelo facto da mesma apenas poder ser reportada a uma doença natural, e não a um acidente de trabalho, em que a responsabilidade pelo pagamento não incumbe à Segurança Social.
Pretende ser ressarcido pelos danos provocados ao A. em consequência do acidente de trabalho por ele sofrido, uma vez que as Rés não assumem o pagamento dos danos provocados pelo referido acidente.
Juntou documento da Segurança Social, com a designação de “Comprovativo de Comunicação de Admissão de Trabalhadores”, da Freguesia de Poiares, do qual consta que: “Confirma-se que procedeu à Comunicação de admissão do trabalhador AA, nº de identificação da segurança social …, com efeitos a partir de 03/09/2012, com a modalidade de contrato de trabalho a TERMO CERTO, TEMPO COMPLETO, verificando-se o seu termo a 30/08/2013.”
As Rés contestaram.
A 1ª Ré juntou aos autos os mapas de pessoal dos anos de 2017 e 2018, deles constando que o A. presta “Serviços Gerais”, como “Assistente Operacional”, com o vínculo de “Trabalhador por Conta de Outrem” – cfr. fls. 61 a 63, tendo informado que não foi encontrado qualquer contrato de trabalho celebrado entre o A. e a 1ª Ré.
A 2ª Ré juntou contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a R. União das Freguesias e a respectiva apólice do qual consta o A. como elemento do quadro de pessoal seguro com a profissão de cantoneiro e a periodicidade de “tempo inteiro” – cfr. fls. 33 v. a 44.
O TAF de Mirandela por decisão de 27.02.2020, decidiu julgar-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto dos autos, absolvendo as Rés da instância.
Em 17.03.2020 o A. interpôs recurso daquela decisão para o TCA Norte.
Por acórdão de 09.04.2021 foi negado provimento ao recurso interposto pelo A./Recorrente, mantendo-se a sentença recorrida.
Deste acórdão foi interposto recurso de revista pelo A., em 17.05.2021, o qual não foi admitido por acórdão da Formação de Apreciação Preliminar, prevista no nº 6 do art. 150º do CPTA, proferido em 13.01.2022.
Na sequência deste acórdão o A./Recorrente veio pedir, ao abrigo do art. 111º, nº 1 do CPC, que seja suscitada, junto do tribunal competente, a resolução do conflito de jurisdição em causa.
Por despacho de 12.12.2022 o TAF de Mirandela indeferiu aquele requerimento porque, “Existe, tão-somente, uma decisão deste Tribunal administrativo, já transitada em julgado, a julgar-se materialmente incompetente para conhecer do presente litígio, por se afigurarem competentes para o efeito, os tribunais da jurisdição comum.
A Autor apenas em sede de recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo invocou, como se aduziu supra, a existência de “[…] decisão idêntica […] tomada pelo foro laboral, então declarando a competência do foro administrativo”.
Mas, nem aí, nem em nenhum outro momento da tramitação dos presentes autos, identificou tal decisão, designadamente, e como já se referiu, (i) em que tribunal foi proposta a ação, (ii) qual o n.º de processo com que foi autuada, (iii) em que data deduziu tal ação, (iv) qual a data da decisão que julgou essa jurisdição comum materialmente incompetente, etc.
Por requerimento de 03.01.2023 o A. veio suscitar o Conflito Negativo de Jurisdição alegando, pela primeira vez nos autos, que a União de Freguesias de Poiares e Canelas, apresentou uma participação de sinistro em 30.07.2017 no Tribunal de Trabalho de Vila Real na sequência do acidente de trabalho sofrido pelo autor.
Participação que deu origem a um processo de acidente de trabalho (fase conciliatória) ao qual foi atribuído o nº 859/18.5T8VRL.
Por despacho de 05.09.2018 que seguiu a promoção do Ministério Público, o Tribunal do Trabalho de Vila Real julgou-se materialmente incompetente, e em consequência foi determinado o arquivamento do processo.
Pediu a resolução do conflito negativo de jurisdição.

Neste Tribunal dos Conflitos, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
O Exmo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais do trabalho, citando para o efeito a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, mormente o Ac. de 13.12.2018, Proc. nº 036/18.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo do Trabalho de Vila Real, Juiz 2 e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela.
Considerou o Juízo do Trabalho, em fase conciliatória de Acidente de Trabalho referente ao Sinistrado, aqui A., sendo a entidade responsável a Companhia de Seguros A..., SA, no âmbito do processo nº 859/18.5T8VRL, por decisão de 05.09.2018, face à posição assumida pelo Ministério Público, que «Analisando a jurisprudência dos acórdãos referidos pelo Ministério Público, o regime previsto no art. 2º, nº 2 do Decreto-Lei nº 503/99, de 20/11, a natureza jurídica da entidade empregadora participante (Junta de Freguesia e o vínculo contratual do sinistrado, cremos não haver dúvidas quanto à incompetência material deste Tribunal de Trabalho para apreciar do acidente participado, tal como conclui o Exmº Procurador do Ministério Público.
Assim, sem necessidade de outra fundamentação, considerando a jurisprudência citada, o disposto no nº 2 do art. 2 do DL 503/99, de 20/11 e os fundamentos alegados pelo Ministério Público, com os quais se concorda e aqui se dão por integralmente reproduzidos, ao abrigo do preceituado nos artigos 96º, a), 97º, nº 1 e 99º, nº 1, ex vi, art. 1º, nº 2, alínea a), do Cod. Proc. Trabalho, todos do CPC e 01º, 102º e 104º do Cod. Proc. Civil e, declara-se esta jurisdição laboral materialmente incompetente para conhecer do participado acidente de serviço e, em consequência, absolve-se da instância a entidade responsável.».
Por sua vez, o TAF de Mirandela declarou-se incompetente em razão da matéria, para conhecer da presente acção, atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. b) do ETAF, pelo que absolveu as rés da instância, nos termos conjugados do art. 89º, nºs 2 e 4, al. a) do CPTA e dos arts. 576º, nº 2 e 577º, al. a) do CPC.
Referiu, em síntese (e após citar jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos), que: «Ora, compulsada a p.i. dos autos constata-se que o Autor não invoca a existência de qualquer vínculo de direito público com a Ré, não o tendo feito sequer quando oficiosamente suscitada a exceção dilatória de incompetência material. De facto, na p.i. vem apenas invocada a verificação de um acidente ocorrido no âmbito de um contrato de trabalho que vinculava o sinistrado à Ré, uma junta de freguesia, se que tal vínculo seja caraterizado como vínculo de funções públicas.
Se assim é, está em causa uma relação laboral sem vínculo de direito público, sendo á luz da regulação atinente aos acidentes de trabalho que deve ser dirimido o litígio dos autos (cfr. art. 2º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, pelo que o litígio em causa nos autos encontra-se excluído da jurisdição administrativa e fiscal, ao abrigo do preceito contido no art. 4.º, n.º 4, al. b) do ETAF.».
Decisão que foi confirmada pelo acórdão do TCA Norte, nele se concluindo: «Efectivamente, atentos os termos e pressupostos por que o Autor ancorou a sua pretensão, isto é, como configurou junto do Tribunal recorrido o âmbito da relação material controvertida, e que, de forma manifesta, a apresentou como sendo emergente de um contrato individual de trabalho e não como decorrência de uma relação de emprego público, tanto basta para que a qualificação da relação laboral e os efeitos por si pretendidos, a serem sindicados jurisdicionalmente, não pode caber no âmbito da jurisdição administrativa, atento o disposto no artigo 4.º, n.º 4, alínea b) do ETAF.».

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1 e 126º (quanto à competência especializada dos Juízos do Trabalho), da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na actual redacção, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3). Decorre ainda do art. 4º, nº 4, al. b) do ETAF que se encontra excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, “A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;”.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. n.º 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo».
A solução do presente conflito, face aos termos da acção, pressupõe a caracterização do vínculo laboral constituído entre o A. e a 1ª Ré.
Ora, aquilo que o A. pediu ao tribunal foi que as Rés sejam condenadas a pagar-lhe uma indemnização pelos danos sofridos com o acidente de trabalho e que lhe seja fixada uma IPP de 30%, após perícia médica. Alegando que a relação laboral existente entre si e a R. era um contrato de trabalho a termo certo com efeitos a partir de 03.09.2012 até 30.08.2013, o qual, após as respectivas renovações automáticas, deu origem a um contrato sem termo. O que logo permite qualificar tal contrato como de direito privado pois no âmbito da relação jurídica de emprego público nunca um contrato a termo certo pode dar origem a um contrato em funções públicas por tempo indeterminado, visto que terminado o contrato de trabalho a termo certo, ocorre a respectiva caducidade, não se convertendo em contrato sem termo (cfr. Acs. do STA de 03.04.2014, Proc. nº 1132/13, de 12.02.2015, Proc. nº 1123/14 e de 17.12.2014, Proc. nº 588/14).
Com efeito, a proibição de conversão dos contratos de trabalho a termo certo, celebrados por entidades públicas, em contratos de trabalho sem termo, resulta expressamente das normas legais sucessivamente aplicáveis quanto ao regime jurídico de emprego público – actualmente o art. 63º, nº 2 da Lei nº 35/2014, de 20/6 - [e, anteriormente, e mais recentemente, o art. 92º, nº 2 da Lei nº 59/2008, de 11/9], e, é constitucionalmente imposta pelo art. 47º, nº 2 da CRP, ao disciplinar o regime de acesso à função pública.
Como bem refere o EMMP, encontra-se sedimentado na jurisprudência dos tribunais administrativos o entendimento de que a conversão de um contrato a termo certo em contrato por tempo indeterminado criaria inovatoriamente, e contra lei expressa que se harmoniza com a Constituição, um via ínvia de acesso a uma relação de emprego público por tempo indeterminado, permitindo que uma situação irregular e por via dessa irregularidade se consolidasse ilegitimamente a relação de emprego público, com efeitos permanentes e duradouros, sem respeito pela precedência dos procedimentos de recrutamento e métodos de selecção legalmente previstos, para acesso à função pública.
Assim, no caso presente não pode deixar de se considerar que estamos perante um contrato de trabalho em regime de direito privado, ainda que uma das partes (a entidade patronal) seja uma pessoa colectiva de direito público, o que exclui a competência em razão da matéria da jurisdição administrativa para conhecer do litígio que resulta de um acidente de trabalho ocorrido no âmbito dessa relação jurídica.
Como se escreveu no Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 04.02.2016, Proc. n. 041/15 [no qual estava em causa um alegado despedimento e a reintegração da autora ao serviço de uma freguesia], «(…), face aos termos factuais como a ação vem desenhada ou fundamentada, ou seja, face à sua causa de pedir e pedido consequente, não se insere na jurisdição administrativa e fiscal a competência para apreciar o litígio em causa. Na realidade, e como acaba de ser dito, o que foi alegado não caracteriza uma relação jurídica administrativa nem um “contrato individual de trabalho da Administração Pública” ou um “contrato de trabalho em funções públicas”, mas simplesmente, e por defeito, um comum contrato individual de trabalho.
Donde é a jurisdição judicial, e dentro desta à laboral, que compete apreciar a causa.
Não é de mais, entretanto, renovar aqui o que acima se referiu: a competência do tribunal é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
Nesta medida, e contrariamente ao que decorre implicitamente da decisão que foi proferida no Tribunal do Trabalho, não interessa, para os estritos fins da determinação da competência, trazer à discussão a legislação subsequente (referimo-nos à Lei n° 12-A/2008, de 27 de fevereiro, entretanto revogada, e à Lei n° 35/2014, de 20 de junho) que, segundo uma possível interpretação, poderá ter convertido o alegado contrato de trabalho num contrato em funções públicas: Note-se que não se está a pôr em dúvida que para os dissídios decorrentes de um contrato deste tipo a jurisdição administrativa e fiscal seria a competente (alínea d) do n° 3 do art. 4º do ETAF e art. 12° da Lei n° 35/2014). O que se diz, simplesmente, é que não é isso que está aqui em causa. Na realidade, uma coisa é a competência do tribunal, outra coisa, muito diferente, é o direito material ou substantivo aplicável ao litígio, direito este que cabe ao tribunal competente determinar e aplicar independentemente da sua natureza privada ou pública.» (cfr. ainda o Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 22.11.2022, Proc. nº 2227/22.5T8AVR.S).
A questão que se nos apresenta é muito semelhante à que se discutiu no Ac. deste Tribunal de 13.12.2018, Proc. nº 036/18, onde se verificava uma dissemelhança entre os meios processuais a lançar mão na instância laboral e na acção interposta no TAF, como aqui também existe.
Escreveu-se neste acórdão o seguinte: «(…): os conflitos de jurisdição não dependem da identidade da causa – tantas vezes impossível – mas da identidade das questões opostamente resolvida. E isto reclama uma análise mais subtil, que penetre a «ratio essendi» das pretensões colocadas às duas ordens jurisdicionais.
Com efeito, sob a diversidade dos tipos processuais onde foram proferidas as decisões declarativas da incompetência, pode ocultar-se uma identidade essencial – que mostre o mútuo conflito. Afinal, o que subjaz a todos os conflitos negativos de jurisdição é a recusa de apreciar uma «mesma questão». Ora, «a mesma questão» não tem de se traduzir no mesmo «petitum», concretizado no fim de uma petição inicial; pode corresponder, antes ao tipo de pretensão formulada – que o «petitum» apenas individualiza – e que surge indissoluvelmente ligada à respectiva «causa petendi».
Se olharmos as coisas por este prisma, depurando o processo conciliatório do Tribunal do Trabalho e o processo administrativo do TAF dos vários pormenores – caracterizadores de cada um deles – que meramente acrescentem ao seu núcleo essencial, logo constatamos que, em ambos os casos, se tendia para o mesmo a partir da mesma causa: apurar se houve um certo acidente (laboral ou de serviço) e arbitrar, depois, uma indemnização ao sinistrado.
Esta identidade dos dois processos, mas apenas «in nuce», evidencia agora as soluções opostas que os ditos tribunais adoptaram – e o conflito entre eles surgido. Tudo se resumia à questão de saber se o contrato celebrado pelo sinistrado – e em cujo exercício ele se acidentou – era qualificável como contrato de trabalho ou como contrato administrativo. E, porque responderam a essa fundamental «quaestio juris» em termos opostos, aqueles dois tribunais acabaram por recusar a competência própria (…).
Assim, a dissemelhança entre a acção interposta no TAF e o processo conciliatório que correu no Tribunal de Trabalho não impede que aquela seja a continuação deste. Decerto que uma continuação sob uma diferente forma e até com novos intervenientes; não obstante, o processo do TAF prolonga o outro, pois tem por origem o acatamento da razão jurídica em que o Tribunal de Trabalho fundou a sua declaração de incompetência e prossegue, «in genere», o mesmo fim indemnizatório cujo conhecimento ali lhe fora inicialmente negado. (...)
Assente a existência do denunciado conflito, importa agora resolvê-lo e extrair, depois dessa resolução, as devidas e apropriadas consequências.
Como acima dissemos, as soluções opostas perfilhadas pelos dois tribunais radicaram no modo diverso como eles qualificaram o «contrato de trabalho a termo certo» que o falecido autor celebrara em .../.../2013 com a Junta de Freguesia de Avelar – e em cujo exercício ele se acidentou.
Impressionado com a circunstância da entidade patronal ser, nesse contrato, uma Junta de Freguesia, o Tribunal de Trabalho viu aí um pacto regido pelo direito público. (…); e nada vedava que uma pessoa colectiva de direito público celebrasse contratos do género, sujeitos ao direito laboral privado – pois essa possibilidade até está prevista, «a contrario», no art. 4º, nº 3, al. d) do ETAF (na redacção vigente em 2013) e continua hoje em vigor (art. 4º, n.º 4, al. b), da versão actual do ETAF).
Assim, o Tribunal de Trabalho de Leiria errou na qualificação do sobredito contrato – e na declaração de incompetência que se lhe seguiu. Ao invés, o TAF qualificou com acerto o mesmo contrato e extraiu daí a conclusão que se impunha – que era a de não ser o competente para conhecer das repercussões indemnizatórias de um sinistro puramente laboral.».
No presente caso, como no que estava em causa no acórdão que vimos de citar, confrontamo-nos com a particularidade de os dois tribunais em conflito terem decidido em processos distintos, sendo mesmo impossível que a acção indemnizatória proposta no TAF pudesse correr, enquanto tal, no Tribunal do Trabalho (até por neste Tribunal o litígio se encontrar na fase conciliatória).
As decisões que solucionem conflitos de jurisdição devem anular a pronúncia de incompetência proferida contra a lei, pelo que os acórdãos do Tribunal dos Conflitos tendem a recolocar o tribunal que recusou indevidamente a sua competência na exacta situação em que estava ao emitir a decisão anulada. E, para se obter esse resultado é necessário que o processo a remeter a esse tribunal para aí prosseguir desde o ponto de declaração de incompetência (suprimido) seja, no caso, o seguinte: será de remeter ao Juízo do Trabalho de Vila Real não a “acção administrativa” instaurada no TAF; mas a “Certidão” [respeitante ao processo nº 859/18.5T8VRL do Juízo do Trabalho de Vila Real] junta pelo A. com o requerimento de 03.01.2023, no qual pediu a resolução do conflito negativo de jurisdição; pois só assim o Juízo do Trabalho estará em condições de enfrentar a questão comum aos dois processos, retomando o conhecimento dela no preciso ponto em que, por causa do despacho agora anulado, se negou a prossegui-lo. O que deverá ser tido em conta pelo TAF de Mirandela quando os autos aí baixarem.
Nestes termos, acordam em invalidar o despacho do Juízo do Trabalho de Vila Real que, por falta de jurisdição, declarou esse tribunal incompetente para conhecer do processo pelo acidente de trabalho mencionado nos autos;
Mais, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo do Trabalho de Vila Real, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 18 de Abril de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.