Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01149/20.9T8LSB.L1.S1
Data do Acordão:02/15/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - Cabe aos tribunais judiciais a competência para conhecer de uma acção proposta, contra um Instituto Público, cuja causa de pedir é um contrato que a autora qualifica como contrato de trabalho de natureza privada, no qual fundamenta os pedidos que formula, relacionados com a cessação de pagamento de um subsídio pelo exercício de funções de coordenação.
II - Saber se tal contrato, celebrado como contrato de trabalho de natureza privada, segundo a autora alega, se convolou numa relação de emprego público respeita ao mérito da causa.
Nº Convencional:JSTA000P29200
Nº do Documento:SAC2022021501149
Recorrente:A........
Recorrido 1:IAPMEI, IP – AGÊNCIA PARA A COMPETITIVIDADE E INOVAÇÃO, I.P.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. Em 14 de Janeiro de 2020, AA intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Instância Central — Juízo do Trabalho - Lisboa, ação emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo declarativo comum, contra IAPMEI, IP – Agência para a Competitividade e Inovação, IP, pedindo que:
a) - Seja anulada a decisão do R. relativamente à A. de "fazer cessar a atribuição do subsídio de função pela coordenação no valor de € 208,85, com efeitos a partir de 1 de abril de 2018" (Doc. 9);
b) - Seja o R. condenado a proceder ao pagamento à A. do subsídio de função de coordenação a partir de 01 de abril de 2018 até à presente data, no valor global de 5.221,25 € (…), bem como dos subsídios de função vincendos;
c)- Seja jurisdicionalmente reconhecido que o subsídio de função em causa pago à A. mensal, regular e periodicamente de forma ininterrupta há cerca de 20 anos, integra o conceito de retribuição e por isso beneficia do princípio da irredutibilidade, não podendo ser feito cessar pelo R. (cfr. art° 129º/1-d) do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12/02; e art° 4º/1 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei 35/2014, de 20/06);
Assim não se entendendo, questão que se suscita por mero dever de patrocínio,
d)- Seja, subsidiariamente, o R. condenado a (cfr. art° 554° do CPC): 1)- pagar à A. a indemnização de valor equivalente ao período de aviso prévio em falta correspondente a 180 dias de retribuição (cfr. Doc. 3-n°s 1 e 2 da cláusula 3a); e 2)- integrar na retribuição mensal da A. 50% do valor do subsídio de função auferido, a título de compensação, nos termos contratualmente devidos (cfr. Doc. 3-n° 1 da cláusula 4ª) - cfr. artigos 38°, 55° e 56° supra;
e)- Seja o R. condenado no pagamento dos juros de mora legais, à taxa de 4% ao ano, a partir da data de incumprimento, em 01/04/2018, até integral pagamento (cfr. artigos 559°, 805°/2-a) e b), e 806°/1 e 2, todos do Código Civil; Portaria n° 291/2003, de 08/04; art° 323°/1 e 2 do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12/02; e art° 4º/1 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei 35/2014, de 20/06);
f) - Seja o R. condenado no pagamento das custas de parte, nos termos legais.”
Alegou, como questões prévias, que, pese embora o réu seja um instituto público integrado na administração indireta do Estado, “à data da ocorrência dos factos essenciais ora em litígio – celebração do contrato de trabalho, nomeação e acordo para exercício de funções de coordenação e atribuição do subsídio de função – as relações entre as partes regiam-se, na generalidade, pelas normas aplicáveis ao contrato individual de trabalho de natureza privada e, na especialidade, pelo disposto no Regulamento Interno”; e que, estando em causa a apreciação de um diferendo emergente de contrato individual de trabalho de natureza privada e não de um vínculo de emprego público, a competência para a apreciação da causa compete à Instância Central – Juízo do Trabalho de Lisboa.
O réu contestou, em 24 de Fevereiro de 2020, sustentando a total improcedência da ação. Quanto à questão da competência, expressando dúvidas “quanto ao sentido da orientação da decisão final que nessa matéria venha a ser proferida”, alegou, em síntese, que no caso em análise a «"cessação da atribuição do subsídio de função de coordenação" que constitui o cerne do presente litígio radica no exercício de poderes administrativos, públicos e determinados, ou vinculados, (…) por órgãos de soberania e entidades com competências no apuramento da legalidade e no mérito da realização da despesa pública».
Por despacho de 7 de Maio de 2020, foi determinada a realização de audiência prévia com a finalidade, no que agora especialmente releva, do “exercício do contraditório quanto às arguidas excepções”; da acta da audiência prévia consta que “iniciada a audiência o ilustre mandatário da Autora no uso da palavra pronunciou-se sobre as arguidas excepções”.
No despacho saneador, de 4 de Dezembro de 2020, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo do Trabalho de Lisboa – Juiz 4, julgou-se materialmente incompetente para conhecer da ação, atribuindo a competência aos Tribunais Administrativos.
Para tanto, sustentou, em suma, que, na decorrência da sucessão de vários regimes legais, a relação de trabalho subordinado que existia entre as partes convolou-se numa relação de emprego público, sujeita, após a convolação, à jurisdição administrativa, sendo que “a pretensão invocada pela A. não tem a sua génese no período compreendido na altura em que, entre A. e R. vigorava uma relação sujeita ao regime geral do contrato de trabalho”. “Ora, tal como a A. configura a acção, foi praticado pela entidade administrativa um acto administrativo com violação dos direitos dos interessados, consagrados em normas de direito administrativo (Código do Procedimento Administrativo e Constituição da República Portuguesa dirigidas às entidades administrativas: o art. 267.º, da CRP, (…) . Esta argumentação vem pôr a nu a intenção de a A. pretender anular um acto administrativo. Para fazê-lo, terá que recorrer ao tribunal administrativo, pois não tem o Juízo do Trabalho competência para conhecer de tal matéria”.
Consequentemente, absolveu o réu da instância.
Inconformada, em 22 de Dezembro de 2020 a autora interpôs recurso desta decisão, pugnando pela sua revogação e consequente substituição por outra que julgasse o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo do Trabalho – Juiz 4 competente em razão da matéria.
O Ministério Público proferiu parecer no sentido de que “deveria a acção ter prosseguido os seus trâmites no Tribunal do Trabalho”: “(…) assinalando-se que não se vê que a decisão em causa constitua uma decisão-surpresa, já que, na audiência prévia, ambas as partes se pronunciaram sobre a questão da competência material para o conhecimento da acção – entende-se que, porventura, face às dúvidas colocadas e à natureza do pedido principal (pagamento de quantias susceptíveis de integrar o conceito de «retribuição» por parte da entidade empregadora) – deveria a acção ter prosseguido os seus trâmites no tribunal de trabalho”.
A autora manifestou a concordância com o Parecer do Ministério Público, no que toca à conclusão sobre a competência; o réu veio dizer, por entre o mais, que deve ser “competente a jurisdição administrativa (art. 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e al. b) do n.º 4 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”).
Por acórdão de 15 de Setembro de 2021, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que, estando em causa um litígio emergente de vínculo de emprego público (atinente a suplemento remuneratório), a sua apreciação insere-se na competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais e declarou o Juízo do Trabalho materialmente incompetente para conhecer da presente ação, negando provimento ao recurso.
Para tanto, sustentou, em suma, que “embora na origem do litígio” estivessem “normas de direito privado, os factos que fundamentam a presente ação (cessação do pagamento do subsídio de função de coordenação) ocorreram já no âmbito de um vínculo de emprego público.
Em 27 de Setembro de 2021, a autora interpôs recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa para o Tribunal dos Conflitos.

2. Nas alegações que apresentou, a recorrente formulou as seguintes conclusões (transcrevem-se as que interessam ao julgamento do presente recurso):

«1- A A. e ora recorrente discorda de duas posições/situações contidas no acórdão do TRL de que ora se recorre e que fundamentam o presente recurso, a saber:
a)– Na parte em que se diz que “a questão da competência em razão da matéria foi suscitada nos articulados e foi realizada audiência prévia” (cfr. acórdão-parte III-Apreciação, na antepenúltima página, 2º parágrafo), na qual “Ambas as partes mantiveram os seus pontos de vista quanto à (in)competência do Juízo do Trabalho”, daqui resultando “que foi exercido o contraditório, pelo que a decisão recorrida não está ferida de nulidade” (Ibidem, 4º e 5º parágrafos); e
b)– Na parte em que se diz que “À data do início da relação contratual entre as partes aplicam-se as normas do direito privado” (cfr. acórdão-parte III-Apreciação, na penúltima página, 5º parágrafo), sendo que, “Embora na origem do presente litígio estejam normas de direito privado, os factos que fundamentam a presente acção (cessação do pagamento do subsídio de função de coordenação) ocorreram já no âmbito de um vínculo de emprego público …” (Ibidem-7º parágrafo), e em tais circunstâncias, prossegue o aresto em causa, conclui-se que “As questões em apreço não emergem de uma relação de trabalho subordinado de natureza privada e estamos perante um litígio emergente de vínculo de emprego público … sendo competentes para dirimir o mesmo os Tribunais Administrativos e Fiscais” (Ibidem – antepenúltimo e penúltimo parágrafos);
2- Em rigor, nem a A. nem o R. suscitaram a questão da incompetência do Juízo do Trabalho em razão da matéria: uma e o outro consideraram competentes para o efeito o Juízo do Trabalho, pelo que não pode o TRL afirmar ter sido exercido o contraditório relativamente à incompetência material do Juízo do Trabalho;
3- Não tendo as partes suscitado nas peças processuais apresentadas a questão da incompetência material do Juízo do Trabalho, entende a A. que no despacho que determinou a convocação e realização da Audiência Prévia o Tribunal de 1ª instância deveria ter suscitado expressamente perante as partes a intenção de conhecer a referida exceção dilatória de incompetência em razão da matéria no sentido de que as partes se viessem a pronunciar em concreto sobre a mesma, o que não sucedeu;
4- Afigura-se à A. que o conhecimento em sede de despacho saneador da exceção dilatória de incompetência em razão da matéria sem a possibilidade de as partes terem tido a oportunidade de antecipadamente aduzirem o seu entendimento sobre a matéria se afigura uma decisão violadora do princípio do contraditório, previsto no artº 3º/3 do CPC, sendo por isso geradora de nulidade, atento o disposto no artº 195º do CPC, aplicável por via do artº 1º/2-a) do CPT (cfr. alegações apresentadas pela A. junto do TRL – questão prévia, artº 4º);
5- Para o TRL a competência para dirimir o conflito em apreço afere-se pelo momento em que foi tomada a decisão de retirada do subsídio de função de coordenação à A., conjugando-se tal momento com o regime das relações de trabalho vigentes nessa data pelo que, se nessa data se conclui estarem as relações de trabalho subordinadas ao direito público, então a competência para dirimir o conflito pertencerá aos Tribunais Administrativos e Fiscais, e não aos Tribunais Comuns, posição que a A. e ora recorrente contesta e não aceita;
6- Como vem julgando reiteradamente o Tribunal de Conflitos, "Compete aos tribunais judiciais conhecer da acção … quando o que se alegou não caracteriza um "contrato individual de trabalho da Administração Pública" ou um "contrato de trabalho em funções públicas”, mas simplesmente e por defeito, um contrato individual de trabalho” (cfr. acórdão do Tribunal de Conflitos de 17/05/2018, prolatado no âmbito do processo nº 065/17, publicado no portal do MJ através do endereço www.dgsi.pt);
7-As alegações da A. e ora recorrente, bem como o pedido efetuado, são caraterísticos do contrato individual de trabalho de natureza privada, pelo que o Tribunal competente em razão da matéria se afigura dever ser o Tribunal Comum, no caso o Juízo do Trabalho, e não o Tribunal Administrativo e Fiscal;
8- No caso em apreço, carece de demonstração que tenha havido qualquer procedimento concursal para a constituição desse vínculo jurídico público e que tenha havido qualquer publicitação no Diário da República, relativamente ao alegado vínculo de natureza pública entre a A. e o R.;
9- E também não se pode arguir a hipótese da conversão do contrato de trabalho de natureza privada para natureza pública, porquanto a conversão automática só operava nos casos em que o vínculo privado tinha ocorrido no âmbito do regime jurídico do contrato individual de trabalho da Administração Pública definido pela Lei 23/2004, de 22/06, sendo que a A. foi admitida em .../11/1995 (Doc. 1, junto com a p.i.), no regime do contrato individual de trabalho de natureza privada, não se lhe aplicando, por isso, automaticamente, o regime definido pela Lei 23/2004, de 22/06;
10- A autora e ora recorrente está vinculada com o R. através do regime do contrato individual de trabalho, de natureza privada, carecendo de demonstração que ao caso se aplique o regime da relação jurídica de emprego público entre as partes;
11- No ver da A. e ora recorrente, entrar na apreciação da natureza do vínculo laboral à medida que foram evoluindo as alterações legislativas será entrar no mérito da causa, o que não se afigura adequado nas atuais circunstâncias processuais em que se pondera averiguar qual seja o Tribunal competente em razão da matéria para apreciação e julgamento da causa;
12- No ver da A. e ora recorrente, no caso em apreço, como doutamente vem entendendo o Tribunal de Conflitos, “Trata-se, mais concretamente, de um conflito comportável na competência material dos tribunais de trabalho, como resulta do art.126º, n.1, al. b) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Dispõe o Art. 126°, n. 1, al. b) da Lei da Organização do Sistema Judiciário: compete aos juízos do Trabalho conhecer em matéria cível: "Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contrato de trabalho”.) – cfr. acórdão do Tribunal de Conflitos respeitante ao processo nº 065/17, de 17/05/2018, disponível no portal do MJ através do endereço www.dgsi.pt);
13- Ainda que se defendesse a conversão automática da natureza dos contratos de trabalho de natureza privada para pública – que no caso em apreço não se aceita – sempre estaria salvaguardado o direito ao subsídio de função legitimamente acordado entre as partes há mais de 20 anos, atento o disposto no artº 81º/1-f) do regime de vinculação de carreiras e de remunerações dos trabalhadores da Administração Pública, aprovado pela Lei 12-A/2008, de 27/02, nos termos do qual se garante aos trabalhadores a manutenção dos direitos contratuais anterior e legitimamente adquiridos, como no caso em apreço, e se impõe às entidades empregadoras de natureza pública a obrigação legal de os respeitar;
14- A A. e ora recorrente tem direito a que seja apreciado se tem ou não direito ao subsídio de função de coordenação que reclama, emergente do contrato de trabalho de direito privado que invoca;
15- “…nos termos da al. d) do n.º 3 do art.º 4º do ETAF está excluída da jurisdição administrativa “a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas” (redação ora vigente na alínea b) do nº 4 do artº 4.º do ETAF, na redação dada pelo DL 214-G/2015, de 02/10);
16- “Dentro da realidade processual os conflitos de competência ou de jurisdição, por situarem o esforço judicial totalmente fora da composição do litígio, determinam necessariamente uma intensa ponderação sobre se, em casos de fronteira, não será de ter particularmente presentes as necessidades de eficiência em ordem a conseguir-se a célere decisão de mérito, cumprindo-se, afinal, o que impõem os artigos 20.º, n.º 5 da CRP, 6.º da CEDH e 7.º, n.º 1 do CPC. Até porque as partes e o cidadão comum compreendem muito mal toda uma tramitação destinada apenas a saber qual o tribunal competente. E talvez se justifique que sejamos nós a compreender que eles compreendam mal” (cfr. acórdão do Tribunal de Conflitos respeitante ao processo nº 010/15, de 10/03/2016, disponível no portal do MJ através do endereço www.dgsi.pt);
17- Inexiste, pois, fundamento, para o Tribunal “a quo” concluir pela exceção de incompetência do Tribunal do Trabalho para julgar a matéria em apreciação nos presentes autos, devendo estes prosseguir aí a sua normal tramitação, sendo convicção da A. e ora recorrente de que a sua pretensão se fundamenta no âmbito de uma relação jurídica privada, e não noutra, sendo o bastante para determinar que a causa incumbe ao Tribunal do Trabalho.
Termos em que se requer a V. Ex.cias:
Seja o presente recurso julgado procedente, por provado, e em consequência:
- Seja revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo do Trabalho–-Juiz 4 competente em razão da matéria em apreciação, prosseguindo os autos a sua normal tramitação, assim se fazendo justiça.»
Não há contra-alegações.

3. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu despacho determinando que os autos fossem autuados como recurso e que se seguisse o disposto na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro – Lei do Tribunal dos Conflitos.
Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída aos Tribunais Administrativos a competência para conhecer da presente ação e, portanto, de “o presente recurso (…) ser julgado como improcedente”.
A matéria de facto relevante consta do relatório.

4. Cumpre conhecer do recurso, no qual a recorrente coloca duas questões:
– Violação do princípio do contraditório;
– Competência para conhecer da acção – se cabe no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal ou da jurisdição comum, concretamente, dos tribunais do trabalho.

5. Não procede a alegação de violação do princípio do contraditório. Sem questionar o que a autora alega quanto à falta de discussão na audiência prévia, naturalmente, e sem estar a analisar se a nulidade que invoca não deveria ter sido suscitada na própria audiência (cfr. n.º 1 do artigo 199.º do Código de Processo Civil), resulta da tramitação seguida que a recorrente tratou da questão da competência na petição inicial e que ambas as partes se pronunciaram perante o Tribunal da Relação de Lisboa, antes de ser proferido o acórdão recorrido.
A recorrente teve portanto a oportunidade de se pronunciar, em moldes que não permitem considerar infringido o princípio do contraditório. Nomeadamente, recorde-se, tratou da questão na petição inicial.

6. Cumpre conhecer da questão da competência, ou seja, determinar qual é a jurisdição competente para conhecer do pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos, “por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Tem especial relevo o n.º 4 do mesmo artigo 4.º, cuja al. b) exclui da competência dos tribunais administrativos “a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público”, “com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”, excepção introduzida como al. d) do n.º 3 do artigo 4.º pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, e que está em consonância com a atribuição aos tribunais administrativos e fiscais da competência para apreciar “os litígios emergentes do vínculo de emprego público”, resultante do artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.
À data da propositura da acção, momento relevante para a aferição da competência (artigos 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), todavia, encontrava-se já em vigor a (actual) al. b) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, consoante a redação resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.
A competência especializada dos Juízos do Trabalho encontra-se regulada no art. 126.º da Lei n.º 62/2013, nos termos do qual lhes compete conhecer, em matéria cível, entre outras, “Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho” (alínea b) do n.º 1) e “Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente” (alínea n)).

7. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.
Disse-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, processo n.º 020/18: “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº 47633; AC STA de 28.11.2002, Rº 1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].
A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.
Com efeito, “saber como se qualifica a relação invocada pela autora, e se os efeitos que a autora pretende são ou não fundamentados, são questões que respeitam ao mérito da causa e à procedência ou improcedência da acção; interpretar o contrato invocado e retirar dessa interpretação consequências quanto à identificação do tribunal competente significa inverter a relação pressupostos/questão de fundo (acórdão do Tribunal dos Conflitos” (acórdão do Tribunal dos Conflitos de 24 de Fevereiro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 03143/19.3T8GMR.S1).

8. No caso dos autos, a autora alega ter sido admitida ao serviço do réu IAPMEI com a categoria profissional de Técnico Nível ..., em ... de Novembro de 1995, tendo ascendido à categoria de Técnico ... em 1 de Novembro de 1998.
Mais alega ter sido nomeada para o exercício de funções de coordenação no âmbito da Direção de ... do réu, a partir de 21 de Outubro de 1999. Concretiza que, para o efeito, foi celebrado um acordo escrito entre as partes, nos termos constantes do Estatuto dos Coordenadores, segundo o qual, enquanto se mantivesse o exercício daquelas funções, o réu pagar-lhe-ia "um subsídio de coordenação” (função), acrescido à retribuição mensal; e que passou a exercer funções de coordenação, com o inerente pagamento, por parte do réu, do respetivo subsídio de função acordado, incluindo nos subsídios de férias e de Natal.
Porém, em 27 de Março de 2018, foi notificada da decisão do réu de "fazer cessar a atribuição do subsídio de Função pela coordenação ... no valor de € 208,35, com efeitos a partir de 1 de abril de 2018”, o que efetivamente veio a suceder.
Refere que, em 24 de Julho de 2019, foi notificada para exercer o seu direito de audição prévia relativamente àquela decisão, tendo sido ouvida em 8 de Agosto de 2019.
Acrescenta que, apesar de o réu ter feito cessar o pagamento do subsídio, continuou e continua a exercer as funções de coordenação do serviço em que está integrada, o que faz do mesmo modo, sem auferir qualquer compensação remuneratória.
Salienta que, nos termos do acordo para exercício de funções de coordenação, qualquer das partes poderia fazer cessar a nomeação a todo o tempo, através de comunicação escrita, com antecedência mínima de 180 dias, ou através do pagamento de indemnização de valor correspondente ao período de aviso prévio em falta, o que não sucedeu, como também não se verificou qualquer integração na retribuição mensal da autora de 50% do valor do subsídio de função auferido, como seria contratualmente devido.
Assim, uma vez que se encontram em vigor os três pressupostos definidos para a atribuição do subsídio em causa e o réu não fez cessar o efetivo exercício de funções de coordenação, a autora mantém o direito ao respetivo pagamento mensal, incluindo nos subsídios de férias e de Natal.
Sustenta, ainda, que este subsídio de função, pago mensal, regular e periodicamente e de forma ininterrupta há cerca de 20 anos, integra o conceito de retribuição, beneficiando do princípio da irredutibilidade.
Aludindo, além do mais, ao artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, alega, por fim, ter ocorrido preterição de formalidade essencial no âmbito do seu direito de defesa, porquanto apenas foi notificada para exercer o direito de audição prévia cerca de 4 meses após a decisão de cessação de atribuição do subsídio ter sido tomada e concretizada.
Nos termos do art. 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 387/88, de 25 de Outubro, “O Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento, abreviadamente designado por IAPMEI, é um instituto de direito público, dotado de personalidade jurídica, com autonomia administrativa e financeira e património próprio”; o pessoal respectivo, segundo o artigo 32.º daquele Decreto-Lei n.º 387/88, “(…) rege-se, na generalidade, pelas normas aplicáveis ao contrato individual de trabalho e, na especialidade, pelo disposto em regulamento interno, aprovado pelo Ministro da Indústria e Energia”.
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei 140/2007, de 27 de Abril, o IAPMEI viu ajustado o objeto estatutário e ampliado o quadro de intervenção, bem como alterada a sua denominação para IAPMEI – Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação, I. P. (cfr. preâmbulo), constando do artigo 11.º que é aplicável o regime do contrato individual de trabalho ao seu pessoal.
Posteriormente, o artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 266/2012, de 28 de Dezembro, veio estabelecer que “O IAPMEI, I.P. – Agência para a Competitividade e Inovação, I.P., abreviadamente designado por IAPMEI, I.P., é um instituto público de regime especial, nos termos da lei, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio.”
A Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, aprovou o regime jurídico do contrato individual de trabalho da Administração Pública. De acordo com o artigo 2.º, “1 - Aos contratos de trabalho celebrados por pessoas coletivas públicas é aplicável o regime do Código do Trabalho e respetiva legislação especial, com as especificidades constantes da presente lei. 2 - O contrato de trabalho com pessoas coletivas públicas não confere a qualidade de funcionário público ou agente administrativo, ainda que estas tenham um quadro de pessoal em regime de direito público”.
Estabelecia, por outro lado, o n.º 1 do seu art. 26.º, na sua redação inicial, que “Ficam sujeitos ao regime da presente lei os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor que abranjam pessoas coletivas públicas, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”.
A Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, “aplicável aos serviços da administração directa e indirecta do Estado” (n.º 1 do artigo 3.º), veio regular os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas. Nos termos do art. 2.º, aplica-se “a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, independentemente da modalidade de vinculação e de constituição da relação jurídica de emprego público ao abrigo da qual exercem as respectivas funções”, sendo certo que “a relação jurídica de emprego público” se pode constituir por nomeação ou por contrato de trabalho em funções públicas (n.º 1 do artigo 9.º).
A propósito da evolução do regime de vinculação ao Estado em matéria laboral, escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, www.dgsi.pt, proc. n.º 636/12.7TTALM.S1:
Entrou depois em vigor a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, aplicável a todos os trabalhadores que – no âmbito dos serviços da administração direta e indireta do Estado (art. 3º, nº 1) – exercem funções públicas, independentemente da modalidade de vinculação e de constituição da relação jurídica de emprego público ao abrigo da qual exercem as respetivas funções” (art. 2.º, n.º 1).
À luz deste diploma, que representa o pilar fundamental da evolução legislativa neste domínio operada em 2008/2009, o “regime de vinculação” à Administração Pública abrange não só as relações jurídicas de emprego público [suscetíveis de constituir-se por nomeação, por contrato de trabalho em funções públicas (por tempo indeterminado ou a termo resolutivo) ou por comissão de serviço (cfr. arts. 9.º, 20.º e 21.º)], mas também as relações de prestação de serviço (contrato de avença e contrato de tarefa – cfr. art. 35.º). (…)
Revogada a Lei n.º 23/2004 (que visava transformar o emprego público num regime largamente privatizado) pela Lei n.º 59/2008, de 11/9, que aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, deixa de estar prevista no nosso ordenamento jurídico a vinculação do Estado através relações laborais comuns, de direito privado (os trabalhadores com contrato de trabalho válido passaram a ser titulares de Contrato de Trabalho em Funções Públicas).
É certo que este Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas é “substancialmente direito laboral, sendo muito próximo no seu conteúdo do atinente ao contrato laboral privado”. No entanto, “formalmente e por força da classificação legal”, aquele contrato deve considerar-se um contrato administrativo, distinto do contrato individual de trabalho: ”a aproximação ao regime laboral comum (…) desloca o emprego público para a esfera dogmática do Direito do Trabalho, porém a parte específica do emprego público permanece na área do direito administrativo (…).”.
É o que expressamente decorre do art. 9.º, n.º 3, da Lei n.º 12-A/2008, segundo o qual o contrato de trabalho em funções públicas “é o ato bilateral celebrado entre uma entidade empregadora pública (…), agindo em nome e em representação do Estado, e um particular, nos termos do qual se constitui uma relação de trabalho subordinado de natureza administrativa”.”
Resulta do artigo 83.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro:
1 - Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os competentes para apreciar os litígios emergentes das relações jurídicas de emprego público.
2 - O disposto no número anterior é irrelevante para a competência que se encontre fixada no momento da entrada em vigor do RCTFP”.
E, nos termos do art. 88.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma:
2 - Os actuais trabalhadores contratados por tempo indeterminado que exercem funções nas condições referidas no artigo 10.º transitam, sem outras formalidades, para a modalidade de nomeação definitiva.
3 - Os actuais trabalhadores contratados por tempo indeterminado que exercem funções em condições diferentes das referidas no artigo 10.º mantêm o contrato por tempo indeterminado, com o conteúdo decorrente da presente lei.
Relativamente à execução destas regras, o artigo 109.º, n.ºs 1 e 2 veio dispor que
1 - As transições referidas nos artigos 88.º e seguintes, bem como a manutenção das situações jurídico-funcionais neles prevista, são executadas, em cada órgão ou serviço, através de lista nominativa notificada a cada um dos trabalhadores e tornada pública por afixação no órgão ou serviço e inserção em página electrónica.
2 - Sem prejuízo do que na presente lei se dispõe em contrário, as transições produzem efeitos desde a data da entrada em vigor do RCTFP.”
Em consonância com este regime, o art. 17.º, n.º 2, da Lei n.º 59/2008, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009 (cfr. art. 23.º), veio estabelecer que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 109.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, a transição dos trabalhadores que, nos termos daquele diploma, se deva operar, designadamente das modalidades de nomeação e de contrato individual de trabalho, para a modalidade de contrato de trabalho em funções públicas é feita sem dependência de quaisquer formalidades, considerando-se que os documentos que suportam a relação jurídica anteriormente constituída são título bastante para sustentar a relação jurídica de emprego público constituída por contrato”.
De tudo resulta que as relações de trabalho subordinado estabelecidas entre entidades públicas e privadas iniciadas em data anterior à vigência da Lei n.º 59/2008, se terão convolado num vínculo de emprego público, por força de “conversão legal”.
Diz a autora que, apesar de o réu ser um instituto público integrado na administração indireta do Estado, à data da ocorrência dos factos que considera essenciais para efeitos do presente litígio as relações entre as partes regiam-se, na generalidade, pelas normas aplicáveis ao contrato individual de trabalho de natureza privada e, na especialidade, pelo disposto no Regulamento Interno.
Consequentemente, sustenta que a situação a dirimir configura uma questão emergente de contrato individual de trabalho de natureza privada, e não uma questão emergente do vínculo de emprego público, não obstante datar de 1 de Abril de 2018 a cessação da atribuição do subsídio de função de coordenação, que contesta.
Assim, entendeu-se no acórdão recorrido que, “Embora na origem do presente litígio estejam normas de direito privado, os factos que fundamentam a presente ação (cessação do pagamento do subsídio de função de coordenação) ocorreram já no âmbito de um vínculo de emprego público. As questões em apreço não emergem de uma relação de trabalho subordinado de natureza privada e estamos perante um litígio emergente de vínculo de emprego público.”

9. No entanto, e como se decidiu no recente acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 15 de Dezembro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 022/20, no qual se invocou a orientação do já citado acórdão de 1 de Outubro de 2015, proc. n.º 08/14, em termos transponíveis para o caso presente, «Nesta medida, e contrariamente ao que decorre implicitamente da decisão que foi proferida no Tribunal do Trabalho, não interessa, para os estritos fins da determinação da competência, trazer à discussão a legislação subsequente (referimo-nos à Lei n° 12-A/2008, de 27 de fevereiro, entretanto revogada, e à Lei n° 35/2014, de 20 de junho) que, segundo uma possível interpretação, poderá ter convertido o alegado contrato de trabalho num contrato em funções públicas: Note-se que não se está a pôr em dúvida que para os dissídios decorrentes de um contrato deste tipo a jurisdição administrativa e fiscal seria a competente (alínea d) do n° 3 do art. 4º do ETAF e art. 12°da Lei n° 35/2014). O que se diz, simplesmente, é que não é isso que está aqui em causa. Na realidade, uma coisa é a competência do tribunal, outra coisa, muito diferente, é o direito material ou substantivo aplicável ao litígio, direito este que cabe ao tribunal competente determinar e aplicar independentemente da sua natureza privada ou pública» - cfr. Ac. de 04.02.2016, Proc. n.º 041/15.No mesmo sentido dos citados acórdãos se tem pronunciado, de forma reiterada, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos (cfr., entre outros, os acórdãos de 25.01.2018, Proc. n° 047/17, de 11.04.2019, Proc. nº 045/18, e de 13/10/2021, Proc. nº 0713/19.3T8BJA.E1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt).Deste modo, tem de concluir-se que, atendendo aos termos em que a A formulou a pretensão são os tribunais comuns, pelos tribunais do trabalho, os competentes para conhecer da acção.

10. É esta jurisprudência que se reitera. A autora invoca como causa de pedir um contrato que qualifica como contrato de trabalho de natureza privada e fundamenta nesse contrato os pedidos que formula; determinar se ocorreu ou não convolação da relação em litígio numa relação de emprego público, com as consequências daí decorrentes, significaria entrar no mérito da causa.
Assim, entende-se que a competência para apreciar a presente acção cabe aos tribunais judiciais (artigos 4.º, n.º 4, b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e n.º 1 do artigo 40.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário); concretamente, aos Juízos do Trabalho (als. b) e n) do artigo 126.º da mesma Lei) do Tribunal da Comarca de Lisboa (nº 2 do artigo 33º e anexo II da Lei de Organização do Sistema Judiciário, mapa III anexo ao Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março e n.º 1 do artigo 14.º do Código de Processo do Trabalho).

11. Nestes termos, concede-se provimento à revista, revogando o acórdão recorrido e determinando que a presente acção é da competência dos Juízos do Trabalho da Comarca de Lisboa.


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2022. – Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.