Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:06/22
Data do Acordão:06/01/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
DIREITO DE PROPRIEDADE
Sumário:A competência para conhecer de acções em que se discute a titularidade do direito de propriedade sobre imóvel cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P29498
Nº do Documento:SAC2022070106
Data de Entrada:02/21/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA MADEIRA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DO FUNCHAL – JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO FUNCHAL UO
AUTOR: A............, LDA E OUTROS
RÉU: B................., SA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 6/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A……….., Lda e C……….., identificadas nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Cível do Funchal, J1 [anteriores Varas de Competência Mista do Funchal], acção ordinária contra B……………., SA, formulando os seguintes pedidos:
a) ser declarado que as Autores são donas e as legítimas proprietárias do prédio referido e identificado no artigo 1º desta petição inicial;
b) Ser a Ré condenada no reconhecimento do pedido constante da alínea anterior;
c) Ser a Ré condenada a pagar às autoras, a quantia de € 147.550,00 (cento e quarenta e sete mil e quinhentos e cinquenta euros, acrescida de juros legais, contados desde a citação e até definitivo e integral pagamento;
d) (…)”.
Em síntese, alegam ser legítimas proprietárias do prédio rústico identificados no art. 1º da petição inicial (p.i.). Mais alegam que a Ré ocupou parte desse prédio (com a área total de 5187m), numa área de 560m, dividindo definitivamente, com esta ocupação, o prédio em dois. E que essa ocupação por parte da Ré, para construção de uma via pública, determina que a A. tenha ficado impossibilitada de aceder a uma outra porção de terreno, com 1840m.

Em 07.01.2015, no Juízo Central Cível do Funchal – Juiz 1, foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada, absolvendo a Ré da instância [cfr. fls. 69 a 79 dos autos].

As Autoras intentaram em 14.07.2020 no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (TAF de Funchal), nova acção, referindo que a nova petição inicial tem conteúdo exactamente igual à anteriormente intentada na Vara Cível Mista do Funchal (cfr. fls. 110)
O TAF do Funchal proferiu decisão em 06.12.2021 a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos, absolvendo a Ré da instância [cfr. fls. 132 a 138 dos autos].
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos [cfr. fls. 140 e despacho de fls. 141 e 142].
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei n.º 91/2019 e nada disseram [sendo que as Autores já haviam requerido a remessa a este Tribunal por requerimento de 20.12.2021 – fls. 140].
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Cível do Funchal.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Cível do Funchal e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal.
Entendeu o Juízo Central Cível do Funchal estar perante um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa por “Tendo presente a circunstância alegada em que ocorreu a ocupação de parte do prédio propriedade das autoras por banda da ré (para execução de uma estrada) não sobram dúvidas que os actos que a esta são imputados ocorreram no âmbito da gestão de infra-estruturas afectas ao serviço público, situação em que exerce poderes e prerrogativas de que goza a Região Autónoma da Madeira, por força do estatuído no art. 16º, nº 1, b) do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de Agosto.
Como tal, a ré surge, nesta sede, equiparada a entidade administrativa atento o disposto no art. 20º, n.º 1 do referido diploma legal.
Tendo a ré actuado enquanto entidade que prossegue interesses públicos e sendo, por via disso, equiparada a entidade administrativa, não sobram dúvidas que actuou no âmbito de relações jurídicas de natureza administrativa, de onde emerge o direito que as autoras pretendem fazer valer pois que existe disposição de direito substantivo que prevê a aplicação e sujeição ao regime específico da responsabilidade do Estado e demais entes públicos.
Consequentemente, o tribunal competente para apreciar a questão vertida nos presentes autos é o tribunal administrativo (cf. art. 4º, n.º 1, g) do ETAF) e não o tribunal judicial pelo que se conclui pela incompetência, em razão da matéria, desta Secção Cível da Instância Central para a apreciação do litígio em presença..
Por sua vez o TAF do Funchal também se considerou incompetente em razão da matéria, além do mais, citando para o efeito jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, em situação idêntica, apreciada no Acórdão de 03.11.2020, Proc. nº 07/20, referindo nomeadamente que,Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Ora, o que a autora pediu ao Tribunal na presente acção foi que seja reconhecida e declarada a sua propriedade sobre o terreno e que a ré reponha e restitua no estado em que se encontrava no momento imediatamente anterior ao início dos trabalhos de execução da conduta de água, pedindo-se igualmente, a condenação da ré em indemnização pelos prejuízos patrimoniais sofridos pela privação do uso da parcela de terreno e outros danos patrimoniais a liquidar em execução de sentença.
(…)
Com efeito, a matéria alegada pelo autor visa em primeira linha, alicerçar o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel e a condenação do R. na sua restituição. Por sua vez o R. alega que o terreno em causa integra o domínio público, para, por esta via, justificar a ocupação.
Estamos, assim, perante uma típica ação de reivindicação (cfr. art. 1311º do Cód. Civil), pelo que a competência para apreciar a pretensão do autor, cabe aos tribunais judiciais, e não à jurisdição administrativa (art. 64º do CPC). . (Neste sentido cf. o ac. deste Tribunal dos Conflitos, de 13.12.2018, proc. 43/18, …)”.
Assim, e seguindo esta jurisprudência decidiu o TAF que a competência para conhecer do litígio trazido a juízo cabe à jurisdição comum, ocorrendo a excepção de incompetência material, pelo que se absolveu a Ré da instância.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais, invocando as Autoras ser de sua propriedade o prédio em causa nos autos, visando, para além do reconhecimento da sua propriedade, alegando factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o prédio em causa, que consideram ter sido violado pela Ré e ser indemnizadas por todos os prejuízos sofridos devido à ocupação levada a efeito pela Ré. Esta, por sua vez, contrapõe, a tal pretensão do reconhecimento do direito de propriedade que a A. C……. não se opôs a essa ocupação no momento em que a mesma ocorreu e que a A. A……… adquiriu o prédio em 2006 (a sua metade), ou seja, em momento posterior à execução da obra, já estando o mesmo, no momento da aquisição, na situação em que actualmente se encontra.
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, todos consultáveis in www.dgsi.pt).
No acórdão de 23.05.2019, Proc. nº 048/19, em situação equiparável à presente, expendeu-se o seguinte: «(…) Com a alteração promovida em 2015, o artigo 4.º n.º 1 do ETAF encontra-se agora estruturado como se de uma enumeração taxativa se tratasse, ainda que esta natureza de elenco fechado seja meramente aparente, por força da “cláusula aberta” constante da alínea o), determinando a extensão da jurisdição às “relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
(…)
Com a reforma de 2015, a al. i), do nº 1 do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto sem título que as legitime”. (…)
Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que “o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i) do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime (v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259).
(…) Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma “apropriação irregular”, cuja diferença face à “via de facto” é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos.
Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4º, nº 1 do ETAF abrange, ou não as ações reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor.
Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2).
Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.
Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.»
Ora, é precisamente esta a situação dos autos, pelo que a competência para conhecer do objecto do litígio cabe aos Tribunais Judiciais (cfr. art. 64º do CPC).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Instância Central Cível do Funchal, Juiz 1.
Sem custas.

Lisboa, 1 de Junho de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.