Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:05/20
Data do Acordão:03/02/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
DIREITO DE PROPRIEDADE
TRIBUNAIS COMUNS
Sumário:Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de uma providência cautelar em que se discutem direitos reais, nomeadamente, o direito de propriedade sobre um terreno.
Nº Convencional:JSTA000P27290
Nº do Documento:SAC2021030205
Data de Entrada:02/18/2020
Recorrente:A........... E MULHER B.......... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE BARCELOS – J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA UNIDADE ORGÂNICA 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos
1. Relatório

A………………… e mulher B……………, identificados nos autos, intentaram no Tribunal Judicial de Braga, Juízo Local Cível de Barcelos, providência cautelar de ratificação de embargo de obra nova, nos termos do art.º 397.º do CPC, contra a Junta de Freguesia de Airó, requerendo que "deve o presente procedimento cautelar ser julgado procedente e, em consequência, ratificado judicialmente o embargo de obra nova efetuado directamente pelo requerente no dia 13 de Setembro de 2019".
Em síntese, os requerentes alegam ser proprietários e legítimos possuidores do prédio urbano identificado no n.º 1 da p.i., o qual consubstancia um terreno para construção. Invocam a aquisição derivada, por escritura pública de doação outorgada em 28 de Agosto de 2003, e ainda a aquisição originária, por via da usucapião.
Mais alegam que o terreno foi registado na Conservatória do Registo Predial de Barcelos, sem qualquer ónus ou encargo, nomeadamente a cedência de qualquer parcela para construção de caminho ou estrada. Foram surpreendidos com um Edital da Junta de Freguesia de Airó a anunciar que se iria proceder à abertura de um caminho no "loteamento do …………....", para ligar uma parcela de terreno à estrada que confronta a Poente com a parcela dos requerentes, onerando o seu terreno, sem que tivessem dado autorização para tal, importando uma diminuição da área útil do terreno, violando o direito de propriedade dos requerentes. Acrescentam que o arruamento que se pretende construir nunca existiu. No dia e hora indicados no Edital, os requerentes fizeram-se representar pelo seu mandatário, que se dirigiu ao local e notificou pessoalmente o Sr. Presidente da Junta de Freguesia de Airó para suspender imediatamente a obra, por virtude de a mesma ficar suspensa por via de embargo extrajudicial a ser ratificado no prazo de 5 dias.
Na oposição apresentada pela Junta de Freguesia de Airó foi deduzida a excepção de incompetência em razão da matéria do Tribunal por entender que ela pertence aos tribunais administrativos. Além do mais, impugna a propriedade e posse por parte dos requerentes da parcela de terreno onde se situa a "Rua ………….", que se pretende arranjar, que o prédio dos requerentes se encontra encravado, sendo essa estrada o único acesso a esse terreno e que os requerentes ocuparam e cercaram, de forma ilegal, o terreno onde se situa a estrada e, por isso, já tinham sido interpelados para retirar a vedação que fechava a estrada.
Os requerentes responderam à excepção de incompetência material defendendo a competência dos tribunais judiciais por estar em discussão uma questão de direito privado, a ofensa seu direito de propriedade sobre o terreno.
Em 08.10.2019, no Juízo Local Cível de Barcelos, foi proferida decisão (fls. 57 a 62) que julgou procedente a excepção de incompetência material do tribunal e absolveu a requerida da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, a pedido do requerente, foi aí proferida decisão em 27.11.2019 (fls. 73 a 78) a declarar a incompetência material daquele Tribunal para conhecer do litígio.
Após trânsito em julgado, veio o requerente suscitar o conflito negativo de competência (fls. 84). A Senhora Juíza do TAF de Braga verificou a existência do conflito e ordenou a remessa dos autos a este Tribunal (fls. 86).
As partes, notificadas para efeitos do disposto no n. º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência para julgar a providência cautelar deverá ser atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Barcelos.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito

O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Barcelos e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Entendeu o Juízo Local Cível de Barcelos que, a questão em apreço não podia ser apreciada por aquele Tribunal por, em face da alínea i) do art.º 4.° do ETAF, estar atribuída a competência aos tribunais administrativos para as acções de reivindicação que têm por objecto situações em que entidades ocupam terrenos de particulares sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime, situações enquadráveis ainda no exercício do poder administrativo, mas que é exercido de forma ilegítima.
Remetido o processo ao TAF de Braga este, apoiando-se em jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que cita, concluiu que as relações emergentes do presente litígio não constituem relações jurídicas administrativas, verificando-se a incompetência em razão da matéria.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art.º 4.º do ETAF com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".

Entendeu o Juízo Local Cível de Barcelos que a competência cabia aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal nos termos da alínea i) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.
Sobre o alcance da alínea i) do n.º 1 do art.º 4.° do ETAF, em caso semelhante ao presente, decidiu este Tribunal dos Conflitos no Ac. de 23/05/2019, Proc. 48/18:
"Com a Reforma de 2015, a aI. i), do nº 1, do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a "condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime".
Sem entrar agora na análise das origens e da evolução do instituto (Cf., por todos, Carla Amado Gomes, Contributo para o Estudo das Operações Materiais da Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra Editora, 1999, págs. 298-345. Na jurisprudência, cf. o ac. do STJ de 05.02.2015, proferido no proc. nº742/10.2TBSJM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt) podendo, no essencial, afirmar-se que a "via de facto" corresponde a uma atuação material da Administração que, sem base legal (designadamente por ausência de atos jurídicos anteriores que legitimem essas operações materiais ou em que esses atos jurídicos são juridicamente inexistentes - v. Jorge Pação, ob. cit., pág. 194-195.), ofenda, de forma grave e manifesta, uma liberdade fundamental ou um direito de propriedade.
Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que "o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i), do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime." (V. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259.)
Defendendo a solução legal, agora consagrada no CPTA e no ETAF, explicava Vieira de Almeida (ln «"A Via de Facto", perante o juiz administrativo» comentário ao ac. do TCAS, de 22.11.2012, processo 5515/09, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 104, março/ abril de 2014, pág. 44.) que a «via de facto», enquanto atuação material manifestamente ilegal de um órgão da Administração, não deixa de ser uma atuação no âmbito do direito público, tal como o é uma atuação jurídica portadora de uma ilegalidade tão grave que implique a inexistência do ato ou a sua nulidade. Por isso, dizia aquele autor, não se pode afirmar que a «via de facto» coloca a Administração numa posição idêntica à do simples particular por ficar desprovida da posição de supremacia em que se encontra na atuação ilícita.
Não obstante, atendendo à configuração normativa da alínea i) do nº 1, do art. 4º, e como assinala Jorge Pação (ob. cit., págs. 194-198), podem colocar-se dúvidas sobre se a competência dos tribunais administrativos está apenas prevista para as situações em que a Administração exerce operações materiais sem que exista decisão administrativa prévia que a sustente, ou se são também situações de "via de facto" os casos em que esses atos jurídicos foram praticados e são juridicamente existentes mas que padecem de uma ilegalidade gravosa (v.g. indiscutível nulidade do ato de declaração de utilidade pública), bem como os casos em que a lei não outorga à entidade administrativa qualquer atribuição ou competência na matéria.
Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma "apropriação irregular", cuja diferença face à "via de facto" é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos.

Mas as dúvidas não se ficam por aqui.
Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i), do art. 4º, nº 1, do ETAF abrange, ou não, as ações reais, como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito invocado pelo autor.
Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº2).
Atente-se ainda que, conforme se determina naquele dispositivo legal, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº 3).
Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.
Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.
É esta, aliás, a posição de Carla Amado Gomes (Cf. "Temas e problemas da justiça administrativa", AAFDL, 2018, págs. 39-56 e "Via de facto e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título", in Revista do Ministério Público nº 15º Abril/Junho, 2016, págs. 89-109) ao defender que a competência da jurisdição administrativa para o conhecimento das situações de ocupação, sem título, de imóveis pela Administração, em 'via de facto' - que já se verificava antes de 2015 e que a alteração legislativa só veio reforçar (por se estar, ainda, perante autuações materialmente administrativas da Administração) - não prejudica a competência dos tribunais judiciais para os casos em que a questão da titularidade do bem for controvertida."
Afigura-se-nos ser esta a solução mais correcta, a qual é inteiramente transponível para o presente caso.
Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos.
Tal como se apresenta, deparamo-nos com uma situação em que há conflito quanto à titularidade do direito de propriedade sobre o terreno em causa. Os requerentes na sua p.i. alegam factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o terreno em causa, excluir o mesmo direito por parte da requerida. Por sua vez, a requerida defende que aquela área de terreno constitui uma estrada ou caminho público, que terá sido ocupada e vedada pelos requerentes de forma ilegal.
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, e, em situação semelhante à presente, o Ac. de 08.03.2017, Proc. 034/16, todos consultáveis in www.dgsi.pt).
A presente providência, presumivelmente, será seguida da propositura de uma acção de reivindicação de propriedade, e, como tem sido reafirmado pelo Tribunal dos Conflitos, as providências cautelares têm de ser propostas nos tribunais que forem competentes em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquelas são dependência (cfr. Ac. de 07.07.2009, Proc. 011/09 e de 08.03.2017, Proc. 034/16).
Assim, a competência material para conhecer da presente providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova cabe à jurisdição comum (art. 64° do CPC).
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente providência cautelar o Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Cível de Barcelos.
Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do art. 15°-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, a relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STJ, Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza tem voto de conformidade.

Lisboa, 2 de Março de 2021

Teresa de Sousa