Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01/15
Data do Acordão:04/22/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDES DA SILVA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
DIREITO DE PROPRIEDADE
Sumário:I - A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pelos termos ou forma como o autor configura a acção, essencialmente definida pelo pedido e causa de pedir.
II - Formulando os autores, como pedido (principal), a condenação dos réus a reconhecerem que aqueles são donos e legítimos possuidores do prédio identificado, bem como a sua condenação a desocuparem, esvaziarem e restituírem o mesmo, livre e desonerado de pessoas e bens, a questão matricial traduz-se na reivindicação de propriedade privada.
III - O conhecimento da acção cabe na jurisdição do Tribunal comum, que é igualmente competente para conhecer dos pedidos subsidiários e/ou acessórios com aquele deduzidos.
Nº Convencional:JSTA000P18909
Nº do Documento:SAC2015042201
Data de Entrada:01/14/2015
Recorrente:A..... REPRESENTADA PELA SUA FILHA B.....E OUTROS, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 2º JUÍZO DE COMPETÊNCIA CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA MAIA E OS TAFS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 1/15.
Acordam no Tribunal de Conflitos:
I.
1.
A…….. e outros, (a primeira representada então por sua filha, B…….., e entretanto falecida na pendência da acção, com os seus herdeiros já habilitados para prosseguir na causa, ut fls. 1014), intentaram em 2013, no Foro Comum (ao tempo 2.º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial da Maia), acção declarativa, com processo ordinário, contra os RR. Município da Maia, representado pela Câmara Municipal da Maia, e Estado Português, representado pelo Ministério Público.

No despacho saneador conheceu-se da excepcionada (in)competência material, decidindo-se no sentido de que, contrariamente ao sustentado pelos demandados, era competente para conhecer do litígio o Tribunal comum.

2.
Inconformado com o assim ajuizado, o co-R. Município da Maia interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, pelo Acórdão prolatado a fls. 843-856, considerou o Tribunal Comum materialmente incompetente para apreciar a acção, e, julgando procedente a apelação, revogou o despacho recorrido e absolveu o R. da instância.

3.
Discordando desta deliberação, (que declarou ser materialmente competente o Tribunal Administrativo), os AA. interpuseram o presente recurso, nos termos do art. 101.º, n.º 2, do C.P.C.
(Apresentado no S.T.J., foi aí proferido o despacho de fls. 1044, determinando a remessa dos Autos a este Tribunal).

A motivação recursória encerra com a formulação deste quadro conclusivo:
• As jurisdições civis, o Tribunal da comarca da Maia/Póvoa de Varzim é o competente para julgar a acção e a reconvenção.
• Trata-se de uma acção de reivindicação e não de responsabilidade civil extra-contratual.
• E afirmada a competência da jurisdição comum para conhecer daqueles pedidos, típicos da acção de reivindicação, essa competência é global, pelo que deverão os Tribunais comuns conhecer de todos os pedidos.
• Há violação do art. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem porque o Tribunal da Relação não seguiu a Jurisprudência do Tribunal de Conflitos. Violou os princípios da legalidade, da segurança e certeza jurídica e da igualdade previstos nos arts. 1.º e 2.º da C.R.P. e no art. 6.º da Convenção.
• O Acórdão viola o princípio do acessorium cedit principali/acessorium principale sequitur: o acessório cede o lugar ao principal.
Trata-se de um princípio de direito civil que já vem dos Romanos, do Código de Justiniano.
Trata-se de uma pura acção de reivindicação em que o Tribunal de Conflitos sempre decidiu que era julgada nos Tribunais Cíveis, de comarca. Basta ver os artigos 1 a 46 e 53 a 74 da P.I.
A responsabilidade dos réus e o prejuízo dos autores emerge dessa ocupação ilegal, emerge da reivindicação, não tendo autonomia.
• Ao contrário do que diz o Acórdão, a Câmara agiu no exercício das suas funções de direito privado, no exercício de actos de gestão privada, como a mesma confessa.
• O que a Câmara celebrou, acordou ou as partes fizeram ou escreveram tem natureza privada. Um contrato-promessa, uma doação, etc., são contratos de direito privado e não público. E a Câmara também não alegou o contrário.
• Ao contrário do que decidiu a Relação, não é relevante a dicotomia gestão pública/gestão privada, mas uma relação jurídica administrativa em que haja ius imperii.
• A Câmara ou Estado não agiram investidos de ius imperii.
• Não há a convocação e aplicação de quaisquer regimes de direito público.
• O acórdão cita acórdãos do Tribunal de Conflitos que nada têm a ver com a presente acção.
• Tanto mais estranho que haja outra acção quase igual no mesmo Tribunal da Maia, intentada por outros lesados em outra parte do terreno ocupado, com os mesmos réus.
• Isto viola o princípio da igualdade, segurança jurídica e confiança nos Tribunais.
• Foram ainda violadas todas as disposições citadas no acórdão por errada interpretação e aplicação da Lei, que deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido das conclusões precedentes: arts. 211.º, n.º 1, da C.R.P., 64.º do C.P.C., 26.º da Lei n.º 582/2008 e 1.º e 4.º do ETAF.
• Deve declarar-se serem os Tribunais comuns, a jurisdição civil, no caso o Tribunal da comarca do Porto, rectius da Maia/Póvoa do Varzim, o competente para apreciar todos os pedidos, sem excepção.
• Assim decidem os Tribunais superiores uniformemente, conforme jurisprudência atrás citada.
O Tribunal de Conflitos (- Escreveu-se no original ‘Tribunal de Contas’, claramente por lapso.) revogará em conformidade o acórdão da Relação, declarando procedentes estas conclusões.
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O co-R. Município da Maia contra-alegou.
E concluiu, em síntese, que:
- A apreciação e decisão do pedido de restituição das parcelas de terreno em causa pressupõem o apuramento da validade da ‘autorização de utilização’ das ditas parcelas, constante do ‘Protocolo de Acordo’, o que implica necessariamente um julgamento sobre a validade e vigência desse acordo, assim como da alegada violação dos compromissos assumidos pelo R. Município, das vicissitudes ocorridas no decurso do processo de licenciamento da operação de loteamento, o que envolve a apreciação de um contrato/acordo de natureza/direito administrativo.
- A questão em causa surgiu no âmbito de uma relação jurídica administrativa, cabendo a sua apreciação aos Tribunais administrativos, conforme arts. 1.º e 4.º, n.º 1, f), do ETAF.
- Os AA. caracterizam a causa de pedir invocada como ‘ocupação ilegal’ ou ‘acto expropriativo de facto’, pelo que, tendo sido vítimas, enquanto proprietários, da conduta ilícita da Administração, têm o direito de pedir uma indemnização pelos prejuízos causados.
- O pressuposto da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos é - nos termos da invocada alínea g) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF - a existência de danos resultantes de uma conduta ilícita do ente administrativo, sendo por isso o tribunal de jurisdição comum incompetente ratione materiae para o conhecimento dos pedidos indemnizatórios formulados.
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O M.º P.º, em representação do co-R. Estado, também respondeu, (apenas) pugnando, em termos de questão prévia/inadmissibilidade do recurso, no sentido de que não há, no caso, qualquer conflito.

Preparada a deliberação, com prévia distribuição do projecto de solução pelos Exm.ºs Adjuntos, cumpre conhecer.

4.
Do thema decidendum.
Como flui do antedito, é questão posta a de saber qual a jurisdição competente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção: se a dos Tribunais judiciais/comuns ou a do Foro Administrativo.
______

II.
Fundamentação
1.
De Facto.
Importa reter - além das ocorrências de facto, de natureza e comprovação processual, descritas no precedente relatório, e que se têm aqui por reeditadas - mais o seguinte:
- O pedido formulado pelos AA., a final, é do seguinte teor:
I
a). Condenar-se os réus a reconhecerem que os autores são donos e legítimos possuidores da totalidade dos prédios identificados nos artigos 9.º e seguintes da P.I.
b). Declarar-se que a sua detenção parcial pelos réus é ilegal, por não terem qualquer título que os legitime;
c). Ser declarado nulo o protocolo de acordo e quaisquer outros celebrados entre o R. Município e os autores, por vício de forma, por ser(em) insusceptível (eis) de transmitir a propriedade, e, em consequência,
d). Serem declarados ineficazes os Protocolos e acordos celebrados entre os autores e o R. Município, em virtude de anterior nulidade do/s negócio/s celebrados/s entre o R. Município e os AA. e, se não fosse caso disso, subsidiariamente e relativamente a I, c) e d)
e). Serem declarados nulos todos os negócios, dada a incapacidade mental da primeira autora.
f). Ainda subsidiariamente, ser declarada a resolução do/s Protocolo/s outorgados entre os AA. e o R. Município, com fundamento em incumprimento por parte dos RR. e/ou alteração anormal das circunstâncias.
II
E, em todos os casos, condenar-se os Réus:
a). A desocupar, esvaziar e restituir aos autores os prédios livres e desonerados de pessoas e bens e no estado em que se encontravam à data da sua ocupação, e, em simultâneo, condenar-se ambos os Réus, solidariamente, a pagar aos autores o valor de 14.345.396,85 €, que é o equivalente aos juros legais desde a reserva até à data, ou no justo valor.
b). Ou, se a restituição não fosse possível, condenar-se ambos os RR, solidariamente, a pagar aos AA. o valor dos terrenos correspondente em dinheiro, que é o valor dos terrenos no montante de 6.006.240,00 €, e juros legais sobre aquele seu valor desde a reserva, no montante de 14.345.396,85 €, tudo somando 20.351.636,85 €, ou subsidiariamente condenar os réus, solidariamente, a pagar o justo preço dos terrenos ocupados, acrescido dos justos juros.
c). E, em todos os casos, ainda devem ser condenados os réus, solidariamente, a pagar uma indemnização pela reserva e ocupação, desde 1981-1982 até à efectiva restituição do imóvel, a fixar equitativamente, ou naquela que se vier a liquidar.
III
a). E se os pedidos anteriores não fossem procedentes, serem os RR. condenados, com fundamento em enriquecimento sem causa, a restituir aos AA. os referidos terrenos, livres e desonerados e no estado em que se encontravam à data da sua ocupação e, solidariamente, a pagar uma indemnização pela reserva e ocupação, desde 1981-1982 até à efectiva restituição dos terrenos, no valor equivalente de juros às sucessivas taxas legais, no montante de 14.345.396,85 €, ou, subsidiariamente, no valor a fixar equitativamente ou naquele que se vier a liquidar.
b). Ou se a restituição não fosse possível, condenar-se a pagar, solidariamente, o valor correspondente em dinheiro, que é o valor do terreno no montante de 6.006.240,00 €, e juros legais sobre aquele valor desde a reserva no montante de 14.345.396,85 €, tudo somando 20.351.636,85 €.
c). Ou quando assim se não entendesse, condenar-se os RR., solidariamente, a pagar o justo preço do terreno ocupado, acrescido dos juros legais no valor de 20.351.636,85 €, desde a data da reserva, ou ainda subsidiariamente, condenar-se os RR., solidariamente, a pagar noutro valor dos terrenos e nos juros a fixar equitativamente ou a liquidar.
d). E, em todos os casos, ainda devem os RR. ser condenados solidariamente a pagar uma indemnização pela reserva e ocupação, desde 1981-1982, até à efectiva restituição do imóvel, a fixar equitativamente ou naquela que se vier a liquidar.
IV
Bem como devem os RR, em qualquer caso, ser condenados, solidariamente, a pagar aos AA. a quantia de 32.553,62 € a que se referem os artigos 247.º a 257.º desta peça.
V
Em todos os casos, condenar-se os R.R., solidariamente, a pagar aos AA. o prejuízo tido com o terreno sobrante, no valor de 6.446.715,65 (...), ou, subsidiariamente, noutro calculado equitativamente ou a liquidar.
VI
Em todos os casos, condenar-se os RR., solidariamente, a pagar à primeira autora a quantia de 100.000,00 € por danos morais, a que se referem os artigos 242.º e ss. ou noutra quantia a fixar equitativamente ou a liquidar e relativamente aos outros quatro autores a quantia de 50.000,00 para cada um (artigo 245.º), ou noutra quantia a fixar equitativamente ou a liquidar.
VII
a). E, em todos os casos, condenar-se os RR., solidariamente, a pagar juros legais de mora relativamente a todas as quantias atrás mencionadas que se forem vencendo, desde 15.10.2013 ou desde a citação, ou desde a sentença, até à data da efectiva restituição e pagamento.
VIII
Sempre, e para o caso de se entender que a sanção não é automática, deve condenar-se os RR., solidariamente, a pagar uma sanção pecuniária compulsória correspondente à taxa de 5% ao ano sobre o valor da dívida, e ainda no caso de eventual não restituição dos terrenos, desde o trânsito em julgado da sentença, nos termos do art. 829. º -A, n.º 4, e outros, do Cód. Civil.
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2.
O Direito.
2.1 - Enquadramento normativo (Breve nota).

Há conflito de jurisdição sempre que, como se proclama no n.º 1 do art. 109.º do C.P.C., dois ou mais Tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão, dizendo-se o conflito positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

Os conflitos de jurisdição são resolvidos, conforme os casos, pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal dos Conflitos.
A sua resolução pode/deve ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal, quando dele se aperceba, por qualquer das partes ou pelo M.º P.º - arts. 110.º, n.º 1 e 111.º, n.ºs 1 e 2, ambos do C.P.C.

No caso, os AA. interpuseram recurso do identificado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, invocando fazê-lo ao abrigo da previsão constante do art. 101.º, n.º 2, do C.P.C., na qual, sob a epígrafe ‘Fixação definitiva do tribunal competente’, se dispõe que … [se] a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal dos Conflitos.

Discutindo-se se a competência pertence ao tribunal judicial/comum ou ao tribunal administrativo, a questão - assim constituída objecto desta intervenção do Tribunal dos Conflitos nos termos da referida hipótese legal - não configura propriamente um verdadeiro conflito negativo de jurisdição, no desenhado figurino do n.º 1 do falado art. 109.º (sempre do C.P.C., quando não conste outra origem).
Realmente não houve pronúncia diferente de autoridades em conflito sobre a sua competência, só o tendo feito o tribunal da 1.ª Instância e a Relação.
Entendemos, não obstante - acompanhando jurisprudência já firmada neste Tribunal (- Cfr., entre outros, o Acórdão de 3.11.2004, Proc. 012/04, consultável em www.dgsi.pt) -, que a intervenção do Tribunal dos Conflitos, ao abrigo da citada norma, tem antes uma função preventiva de conflitos de jurisdição (‘prevenção de conflito futuro’, nas expressivas palavras de Alberto dos Reis, C.P. Civil Anotado).

Fica, pois, legitimada a suscitação do conflito, por esta via.
(...E, consequentemente, respondida/solucionada, desde já, a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, colocada pelo M.º P.º na contra-alegação, conforme sobredito).

2.2 - Da competência.
A questão a resolver consiste, como se equacionou, em determinar qual o Foro competente.
A competência material, enquanto medida da jurisdição de cada Tribunal, afere-se, como é consabido e pacífico, em função do modo como o autor configura a acção, mais concretamente pelos termos em que se mostra estruturada e formulada a pretensão/pedido (o «quid diputatum», nas sábias palavras de Manuel de Andrade (- ‘Noções Elementares de Processo Civil’, Coimbra Editora, 1976, pg. 91. )) e os seus fundamentos/causa de pedir, entendida esta como o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido(- Apud Antunes Varela e Outros, ‘Manual de Processo Civil’, 2.ª edição, pg. 245. ).
(Cfr., por todos, o paradigmático Acórdão do S.T.J., de 14.5.2009, acessível em www.dgsi.pt, citado a propósito no Acórdão deste Tribunal, tirado no Conflito n.º 13/13, de 20 de Junho, em cujos termos, como nele se sumaria, ‘a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.’).

A regra, nesta matéria da competência ratione materiae - com assento Constitucional (art. 211.º/1 da C.R.P.) e reflexo na legislação ordinária, ut arts. 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e 64.º do CPC -, é a de que os Tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
A sua competência é, pois, genérica mas residual.
Aos Tribunais Administrativos e Fiscais compete (art. 212.º/3 da C.R.P.) o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, com o âmbito da sua jurisdição especificamente delineado no art. 4.º do actual ETAF.
E, concretamente, ante a previsão do seu n.º 1, alínea g), cabe-lhe a competência para a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.

2.3 - Concretizando.
Enquanto na decisão plasmada no despacho saneador (sobre que versa o Acórdão sub specie) se considerou que os AA. …vêm fundamentalmente deduzir uma acção de reivindicação, à qual acoplaram um pedido indemnizatório - com a consequente declaração da competência material do tribunal comum -, a Relação entendeu, em suma, que…o que está em causa é o conhecimento dos pedidos indemnizatórios formulados pelos Autores, derivado da alegada ocupação ilícita dos seus prédios pelos RR., pelo que compete aos tribunais da jurisdição administrativa o seu conhecimento.
Achou-se, enfim, que está em causa a apreciação de um litígio que assenta na responsabilidade civil extracontratual dos RR.

(Assim seria se realmente os AA. demandassem os RR. em busca de um ressarcimento indemnizatório resultante de conduta ilícita dos mesmos).
Analisada, todavia, a estruturação da petição/pedido, na configuração dada à relação jurídica controvertida, constata-se que os AA. visam primordialmente (seja, a título principal) a condenação dos RR. - … uma vez obrigados previamente a reconhecerem que aqueles são donos e legítimos possuidores da totalidade dos prédios identificados e que a sua detenção parcial pelos RR. é ilegal, por falta de qualquer título que a legitime — ... a desocupar, esvaziar e restituir aos demandantes os ditos prédios, livres e desonerados de pessoas e bens e no estado em que se encontravam à data da sua ocupação.
Apenas para a hipótese de a restituição não ser possível é que se pede, subsidiariamente, nas várias formulações sucedâneas, a condenação dos RR. no pagamento do valor dos terrenos correspondente em dinheiro, para além dos juros legais, ou no justo valor, desde a reserva até à data e, acessoriamente, no pagamento de uma indemnização pela reserva e ocupação desde 1981-1982, e ainda no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, mas tudo sempre… até à efectiva restituição do imóvel. (Sublinhado nosso).

(O cumulado pedido de indemnização por danos morais, comungando embora dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, não tem autonomia a se, antes se perfilando, na economia da acção, como um efeito da pretensa violação do direito de propriedade.
Não se vê razão bastante para que não seja considerado no âmbito da mesma jurisdição comum, que é assim global.
Tal circunstância irreleva, pois, em termos da determinação da competência material do Tribunal).

Ante os factos essenciais que enformam a causa petendi e os pedidos principais/dominantes deduzidos pelos AA., (de que tudo o mais depende, afinal), mostra-se delineada uma típica acção de reivindicação - art. 1311.º/1 do Cód. Civil.
(A acção de reivindicação, típica manifestação do direito de sequela, tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela - Apud Antunes Varela/Pires de Lima, em anotação ao art. 1311.º do Cód. Civil Anotado, Vol. III, pg. 100).

É perante esta equação que se determina, como se disse, a competência do Tribunal, sendo geralmente entendido e aceite que a tutela dos direitos correspondentes cabe na competência material dos Tribunais comuns.

E não é a circunstância de uma das partes ter feição pública (utilizando as palavras de um excerto do Acórdão deste Tribunal de 18.12.2013, Proc. 018/13, n.º convencional JSTA000P16764, in dgsi.pt), ou o facto de ter sido cumulado com o pedido principal um pedido indemnizatório, ou ainda a necessidade de o conhecimento do mérito da acção implicar o apuramento da validade da ‘autorização de utilização’ constante do falado ‘Protocolo de Acordo’, que impõem concluir-se que as questões decidendas emergem de uma relação jurídica administrativa e, menos - ao contrário do sustentado na fundamentação jurídica do Acórdão sujeito - que o que está em causa é o conhecimento dos pedidos indemnizatórios formulados...
Acresce que a eventual necessidade de a decisão do mérito da lide poder depender do pressuposto conhecimento de uma qualquer vicissitude administrativa - … configurando assim uma questão prejudicial de direito administrativo, nos termos previstos no art. 92.º/1 do C.P.C. -, não constitui circunstância susceptível de afectar a originária competência material do Foro comum.

Em resumo e conclusão:
Ante o exposto, a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum, não podendo manter-se o ajuizado no Acórdão recorrido.
III.
DECISÃO
Termos em que, concedendo provimento ao recurso, se delibera revogar o Acórdão impugnado, com repristinação da decisão que considerou materialmente competente o Tribunal comum.
Sem custas.
***
Lisboa, 22 de Abril de 2015. - Manuel Augusto Fernandes da Silva (relator) - José Francisco Fonseca da Paz - Hélder João Martins Nogueira Roque - Maria Benedita Malaquias Pires Urbano - Fernanda Isabel de Sousa Pereira - José Augusto Araújo Veloso.