Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:036/15
Data do Acordão:03/10/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SILVA GONÇALVES
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:É da competência dos Tribunais Administrativos - art. 4.°, n.° 1 als. b), g) e l), do ETAF - o julgamento da acção popular, proposta por particulares contra pessoa colectiva de direito público (Município) e pessoa colectiva de direito privado (sociedade comercial), fundada em responsabilidade civil extracontratual de ambas.
Nº Convencional:JSTA00069611
Nº do Documento:SAC20160310036
Data de Entrada:07/24/2015
Recorrente:A... E OUTROS, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE COIMBRA, INSTÂNCIA CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA, 2 SECÇÃO - J3 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO DE JURISDIÇÃO TCIVEL COIMBRA E TAF COIMBRA
Decisão: DECL COMPETENTE TAF COIMBRA
Área Temática 1:CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional:CONST76 ART211 N1 ART212 N3 ART235 N2 ART239 N1 ART242 ART52 N3.
ETAF02 ART4 N1 B G L ART1 N1.
L3/99 DE 13/01.
L 169/99 DE 18/09.
L 67/2007 DE 31/12.
L 83/95 DE 31/08 ART1 ART22 ART23.
CPTA02 ART10 N7.
Jurisprudência Nacional:AC TCF CF17/07 DE 2008/01/23.; AC TCF CF15/11 DE 2012/01/24.; AC TCF CF51/14 DE 2015/10/15.; AC TC REC965/96.; AC TC REC284/2003.; AC STA PROC01329/2002 DE 2002/10/31.; AC TCF CF2/10 DE 2011/03/29.; AC TCF CF 9/10 DE 2010/09/09.
Referência a Doutrina:MANUEL DE ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1976 PÁG91.
VIEIRA DE ANDRADE - JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 9ED PÁG55.
JONATAS MACHADO - A REFORMA DA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA PÁGS80 E 93.
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA - CPTA VOLI ETAF.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 36/15.
Acordam, em conferência, no Tribunal de Conflitos

I - RELATÓRIO.

1. A……………… e outros intentaram acção popular contra “Câmara Municipal de Cantanhede” e “B…………….., S.A.

2. Alegaram o seguinte:

- São moradores e donos de habitações na Rua ……., ……..;

- Em 1991, a 1ª ré destacou de um prédio rústico sito na ……….., uma parcela, autonomizada em prédio urbano, destinada ao Plano Parcial de Urbanização da …………;

- Em 27 de Julho de 2006, foi tomada deliberação pela 1ª ré de adjudicação do prédio urbano à C……………, Lda., para construção de unidade hoteleira, que entendem nula porque a empresa não tinha código de actividade económica (CAE);

- Em 28 de Agosto de 2006, foi outorgada a compra e venda do prédio e na escritura ficou a constar a obrigação de a compradora iniciar e concluir a construção nos prazos respectivos de doze (até 28.08.2007) e de trinta meses (até 28.02.2009), sob pena de operar “a resolução imediata da compra e venda”;

- Os prazos foram ultrapassados, em consequência do que entendem que o imóvel foi reintegrado no domínio municipal;

- Em 15 de Dezembro de 2009, foi tomada deliberação em reunião da 1ª ré a autorizar a transmissão do prédio à 2ª ré, que consideram inexistente e nula, por não poder autorizar a compradora a transmitir um bem que não lhe pertence;

- Em 10 de Dezembro de 2010, a compradora do prédio vendeu-o à 2ª ré, negócio que no seu entender nulo por incidir sobre prédio que não lhe pertencia, e sem prévia autorização camarária ficando esta sujeita aos mesmos prazos de início e termo da construção (até 15.12.2010 e até 15.06.2012);

- A obra iniciou-se em Setembro de 2011, muito além do termo do prazo previsto, e está parada desde 18 de Maio de 2012;

- Nesta data, encontra-se no local um “mono” de cimento e um lago, sem qualquer protecção, permitindo a entrada de crianças;

- Em 07 de Novembro de 2011 caducou o alvará de construção e, em 14 de Janeiro de 2013, a 2ª ré requereu a prorrogação do prazo para concluir a obra, o que a 1ª ré deferiu por oito meses até 07 de Julho de 2013, decisão nula, por não poder prorrogar prazo já caducado;

- Em 08 de Fevereiro de 2013, foi aprovada em reunião da Câmara a revisão do Plano de Urbanização da ………… continuando antes disso a valer o originário Plano dos anos 70, encontrando-se o hotel projectado em pleno REN, perímetro florestal e dunas;

- Quando adquiriram as suas casas, a 1ª ré garantiu aos autores que as partes traseiras dos prédios não poderiam ser alvo de construções ou edificações, o que foi violado com a construção do hotel;

- A omissão camarária e as ilegalidades cometidas constituem uma violação clara ao ambiente, à qualidade de vida, à saúde pública e ao domínio público;

- O prédio tem de ingressar novamente no domínio público;

- Toda a situação tem causado danos aos autores, que sofreram e angústia por causa dos filhos e netos, têm medo de assaltos (visto que a estrutura alberga toxicodependentes), perderam qualidade de vida e viram desvalorizar o seu prédio.

3. Pediram, na declaração das nulidades e ilegalidades invocadas, o seguinte:

A) Seja o prédio declarado revertido para o património municipal;

B) Seja ordenada a demolição da estrutura existente no local a expensas das rés;

C) Sejam os autores indemnizados pelos danos patrimoniais e não patrimoniais reclamados.

4. O Ministério Público e a 1ª ré contestaram e excepcionaram a incompetência dos tribunais comuns.

5. Foi proferida decisão a declarar a incompetência do Tribunal de Cantanhede e a competência dos Tribunais Administrativos.

6. Os autores recorreram e o Tribunal da Relação confirmou a decisão.

7. Inconformados, os autores interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

8. Foram apresentadas respostas ao recurso.

9. O relator do acórdão recorrido, por decisão singular transitada, não admitiu o recurso de revista e ordenou, porque ‘trata-se de uma questão de incompetência absoluta, mais concretamente, de incompetência em razão da matéria”, a remessa do recurso ao Tribunal de Conflitos.



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II – FUNDAMENTAÇÃO.

10. No recurso de revista interposto para o Supremo Tribunal de Justiça (2.° Volume, fls. 194 a 197) os recorrentes suscitaram duas questões:

- A nulidade da sentença da 1ª instância; e

- A competência dos tribunais comuns.

Sobre a admissão do recurso recaiu o despacho proferido pelo tribunal da Relação (2.° Volume, fls. 206 e 207) que, na consideração de que a questão a decidir era a segunda questão (trata-se de uma questão de incompetência absoluta), decidiu não admitir o recurso de revista (...) ordenando-se a remessa dos autos ao tribunal de conflitos.

Os recorrentes não reclamaram dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça - artigo 643.°, n.° 1 do Novo Código de Processo Civil (2013) - tendo em vista a admissibilidade parcial do recurso de revista quanto à primeira questão, a da nulidade da sentença por violação prévia do contraditório.

Donde, aquele despacho transitou em julgado — artigo 628.° do NCPC.

E a competência do Tribunal de Conflitos, que se circunscreve aos casos contemplados na lei - artigo 209.°, n.° 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP), artigos 59.° do Decreto n.° 19 243, de 16-01-1931, 101.°, n.° 2 e 110.°, n.°s. 1 e 3, ambos do NCPC -, não a abrange, mas apenas, para o que aqui interessa, o recurso da decisão do Tribunal da Relação que julgue o tribunal judicial incompetente por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa.

Assim, porque a primeira questão ultrapassa a competência do Tribunal de Conflitos, e, ademais, os recorrentes não reclamaram para o STJ da decisão do Tribunal da Relação que sobre ela não admitiu o recurso de revista e, por isso, transitou, cumpre resolver apenas a segunda questão recursiva.

11. A factualidade com relevo para a resolução desta questão é a supra referida em sede de relatório.

Em face dela, a 1ª instância e a Relação decidiram que a competência pertence aos tribunais administrativos, por, em suma, estarem verificadas, à luz do objecto do processo, as previsões das alíneas b), g) e l) do art. 4.° do ETAF.

Cremos que se decidiu com acerto.

Vejamos.



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Saber se o poder de julgar a causa pertence ao tribunal comum (Tribunal de Cantanhede) a que está afecta, ou a um outro tribunal especial (Tribunal Administrativo), tribunais entre si de diferente espécie ou ordem, é uma questão de competência em razão da matéria - v. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 1º, 2ª edição, Coimbra editora, pág. 109 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, I Vol., revisto e actualizado, edição AAFDL, pág. 323.

A aferição da competência em razão da matéria, porque de pressuposto processual condicionante do conhecimento do mérito da causa se trata, faz-se à luz do objecto do processo, isto é, da causa de pedir e do pedido formulados no articulado inicial, sem cuidar da respectiva procedência - v. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1976, pág. 91; Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 28-09-2010, processo n.° 2/10 de 29-03-2011, processo n° 2510, de 02-03-2011, processo 9/10 e de 09-09-2010, proc. 011/10, in www.itij.pt.

No seguimento, os autores alegam que, com base nas ilegalidades de três deliberações camarárias; na reversão do prédio para o vendedor Município de Cantanhede (1ª ré) por, segundo o contrato, a empresa compradora não ter cumprido os prazos de início e de finalização da obra de urbanização parcial da ………..; na nulidade da venda do prédio (alheio) pela mesma compradora a uma outra empresa (2ª ré); na incidência do projecto de urbanização do prédio sobre área de REN; na promessa feita pelo Município aos moradores da ………… de que nas traseiras dos seus prédios nada seria construído; e, na não conclusão da construção, existindo agora um mono em cimento e uma lagoa, foram violados o direito à saúde e à qualidade de vida e o ambiente, em consequência do que, (i) devem “ser declaradas as nulidades e ilegalidades invocadas”, (ii) deve ser declarada a reversão do prédio para a 1ª ré e (iii) devem as rés ser condenadas a destruir a construção inacabada e a pagar indemnizações compensatórias dos danos.

Cumpre também notar que a acção foi proposta por um conjunto de particulares, moradores na ……., contra pessoa colectiva de direito público (embora venha mencionada como 1ª ré a Câmara Municipal de Cantanhede, deve entender-se que quem figura como 1ª ré é o Município de Cantanhede, pois é ele quem detém personalidade jurídica e judiciária daquela autarquia local, cf. Acórdão do STJ de 22.10.2015, processo n.° 212/06.3TBBSBG.C2.S1, in www.itij.pt) e contra pessoa colectiva de direito privado, ao abrigo da Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto (rectificada pela Declaração de Rectificação n.° 4/95, de 12.10, não sendo aplicáveis as alterações introduzidas pelo DL n.° 214-G/2015, de 02/10) que consagra o direito de acção popular.

Pois bem.

À data em que a acção foi proposta, 20 de Abril de 2013 – cf. fls. 22 e arts. 267.°, n.° 1 e 150.°, n.° 1, parte final, ambos do CPC, na redacção pre-vigente, determinante da fixação da competência - arts. 22.°, n.° 1, da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ) e 5.°, n.° 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção dada pela rect. 14/2002, de 20.03, rect. 18/2002, de 12.04, Lei n.° 4-A/2003, de 19.02, Lei n.° 107-D/2003, de 31.12, Lei n.° 1/2008, de 14.01, Lei n.° 2/2008, de 14.01, Lei n.° 26/2008, de 27.06, Lei n.° 52/2008, de 28.08, Lei n.° 59/2008, de 11.09, D.L. n.° 166/2009, de 31.07, Lei n.° 55-A/2010, de 31.12 e Lei n.° 20/2012, de 14.05, não sendo aplicáveis as alterações introduzidas pelo DL n.° 214-G/2015, de 02/10), aos tribunais judiciais competia a jurisdição em todas as matérias não atribuídas a outras ordens judiciais - artigo 211.°, n.° 1 da CRP, 66.° do Código de Processo Civil (CPC), na redacção anterior à Lei n.° 41/2013, de 26 de Junho e 18.°, n.° 1, da LOFTJ, e, aos tribunais administrativos competia, numa primeira delimitação material, o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais - artigo 212.°, n.° 3 da CRP e 1.°, n.° 1 do ETAF.

A lei não definia (como não define), porém, o que fossem relações administrativas.

Vieira de Andrade acertadamente referiu “Esta questão sobre o que se entende por “relação administrativa”, sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa”, no sentido estrito tradicional da “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração ...” (in Justiça Administrativa, 9ª Edição, Almedina, Coimbra, página 55).

Também Jónatas Machado salienta que “a doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídico-administrativas as relações interpessoais e inter administrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo. Assim entendida, a relação jurídica administrativa pode desdobrar-se num complexo acervo de posições jurídicas substantivas e procedimentais, favoráveis e desfavoráveis, activas e passivas” (“Breves Considerações em torno do âmbito da Justiça Administrativa”, in “A Reforma da Justiça Administrativa”, págs. 80 e 93).

Se a densificação do conceito de relação administrativa parece impor-se, por constituir, na lei, o primeiro patamar de delimitação material da competência dos tribunais administrativos, certo é que o ETAF, num segundo patamar, mais propriamente no artigo 4.°, n.° 1, delimita essa mesma competência pelo elenco de vários litígios abrangidos pela jurisdição (salvo as excepções dos números 3 e 4), prescindindo ou pressupondo aquele conceito.

Na compatibilização destes comandos normativos, escreve Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de OliveiraQuanto à questão de saber da conformidade material das cláusulas «aditivas» e «subtractivas» da competência dos tribunais administrativos, por referência ao âmbito natural da sua jurisdição (consagrado no citado art. 212.º/3 da CRP), respondeu-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 93/ VIII, apresentada pelo Governo à Assembleia da República — e que deu origem ao ETAF -, que a Constituição não estaria a instituir aí uma reserva material absoluta de competência dos tribunais administrativos, que impedisse o legislador ordinário de atribuir a outras jurisdições o julgamento de questões administrativas, e à jurisdição administrativa o julgamento de questões não administrativas” (in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos - Volume I - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”, Almedina, em anotação ao artigo 1.°), notando, acrescidamente, estes autores que tem sido esse o entendimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.°s 965/96 e 284/2003) e do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 31.10.2002, processo n.° 1329/2002) e da doutrina maioritária.

O carácter relativo, aberto ou geral da norma constante dos artigos 212.°, n.° 3 da CRP e 1 °, nº 1 do ETAF - aquele primeiro patamar - permite, pois, que ao invés de se discretear sobre o conceito de relação administrativa e se problematizar a recondução da relação em litígio ao mesmo, desde já se discuta a sua subsunção a algum ou alguns dos litígios previstos no artigo 4.°, n.° 1 do ETAF - segundo patamar, suficiente para a afirmação da competência da jurisdição administrativa.

Aqui aportados, o artigo 4.°, n.° 1 als. b), g) e l) do ETAF prevê o seguinte:

Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração; (...)

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; (...)

l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional.”

Ao questionarem a legalidade das deliberações tomadas pela 1ª ré — (i) de adjudicação do prédio urbano a empresa sem Código de Actividade Económica, tendo em vista a urbanização parcial da ………..; (ii) de autorização de transmissão do prédio pelo comprador à 2ª ré, e (iii) de prorrogação de um prazo contratualmente já decorrido —, cujas nulidades expressamente pedem sejam declaradas (“e serem declaradas as nulidades e ilegalidades invocadas” - cf fls. 10) como fundamento quer da responsabilidade civil dos réus quer da reversão do prédio para o Município, os autores pretendem, para efeito da previsão da alínea b), a fiscalização de actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo.

Com efeito, (i) as deliberações são actos jurídicos (a terminologia é precisa e não equivale a actos administrativos, caso em que se suscitariam dúvidas, cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29.04.2003, in www.itij.pt), no sentido dado por Marcello Caetano de “toda a conduta (humana) voluntária, quer consista em acção quer em omissão, que produza efeitos na Ordem jurídica, ainda que esses efeitos não tivessem sido queridos pelo agente” (in Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, 10ª. edição, pág. 422); emanaram de pessoa colectiva de direito público (mais especificamente de órgãos desta), ou seja, “aquela que nasça da necessidade de realização de interesses públicos, isto é, interesses que sejam considerados fundamentais para a existência, conservação e desenvolvimento da sociedade política” (Marcello Caetano, ob. cit. pág. 182) como são os Municípios - cf. ainda os artigos 235.°, n.° 2, 239.°, n.° 1 e 242.°, todos da CRP); e, por fim, as deliberações foram reguladas/enformadas por normas de direito administrativo, enquanto “sistema das normas jurídicas que regulam a organização e o processo próprio de agir da Administração Pública e disciplinam as relações pelas quais ela prossiga interesses colectivos podendo usar de iniciativa e do privilégio da execução prévia” (Marcello Caetano, ob. cit. pág. 43), no que se inclui a Lei n.° 169/99, de 18 de Setembro (alterada pela Lei n.° 5-A/2002, de 11.01, Rect. N.° 4/2002, de 06.02, Rect. n.° 9/2002, de 05.03, Lei n.° 67/2007, de 31.12 e Lei Orgânica 1/2011, de 30.11), que estabeleceu o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias.

Também os autores assumem que a 1ª ré, pessoa colectiva de direito público repita-se, incorreu em responsabilidade civil extracontratual perante eles, já que, por via das ilegalidades cometidas (que se traduzem naqueles actos administrativos e na omissão do exercício do direito de reverter o prédio urbano para o seu património, concretizadores da ilicitude), permitiram o início da construção de um hotel que, sobre área de REN e inacabado, atentou e atenta contra o ambiente e a saúde e a qualidade de vida dos autores (danos), legitimando-os a pedirem a sua demolição e o pagamento de indemnizações compensatórias correspondentes, com fundamento legal na responsabilidade civil extracontratual das rés abstractamente prevista nos artigos 52.°, n.° 3 da CRP, nos artigos 1.°, 22.° e 23.° da Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto e Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro.

Nesta perspectiva, o litígio tem por objecto, como previsto naquela alínea g), questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público e visa também, para o efeito daquela alínea l), promover a cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, qualidade de vida, quando cometidas por entidades públicas, sem que se tenha notícia de constituírem ilícito penal ou contra-ordenacional. Como se pode ler, a este propósito, na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 93/VIII, apresentada pelo Governo à Assembleia da República, e que deu origem ao ETAF, “Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns. A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado”. Escreveu-se, a este respeito também, no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 23.01.2008, processo n.° 17/07, in www.itij.pt, que “A jurisdição administrativa passa, assim, a ser a competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado”. E ainda no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 24.01.2012, processo n.° 15/11, se entendeu que “II — São competentes os tribunais administrativos para apreciar uma acção em que o autor pretende de uma pessoa colectiva de direito público uma indemnização com fundamento em responsabilidade civil extracontratual emergente de um acto administrativo”, o que quadra bem na causa.

Não restam, à luz do exposto, dúvidas, tal como concluíram as instâncias e sem necessidade de outras considerações, que a competência para conhecer do objecto da acção compete aos Tribunais Administrativos.

Por último, não constitui impedimento à atribuição da competência aos Tribunais Administrativos, o facto de também ter sido demandada uma pessoa colectiva de direito privado, como bem resulta do artigo 10º, n.º 7 do artigo 10º do CPTA (cf. ainda o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 15.10.2015 (processo n.° 051/14), in www.itij.pt).


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III - DECISÃO.

Em face do exposto, acorda-se em julgar competente para conhecer da ação em causa a Jurisdição Administrativa.

Sem custas - art. 4.°, n.° 1, al. b), do Regulamento das Custas Processuais.

Concluindo:

É da competência dos Tribunais Administrativos - art. 4.°, n.° 1 als. b), g) e l), todos do ETAF - o julgamento da acção popular, proposta por particulares contra pessoa colectiva de direito público (Município) e pessoa colectiva de direito privado (sociedade comercial), fundada na responsabilidade civil extracontratual de ambas, traduzida, quanto à primeira, na prática, entre outros, de actos jurídicos ilegais regulados pelo direito administrativo (deliberações camarárias) que determinaram a permissão da construção, iniciada e abandonada, de um Hotel pela segunda, materializada num “mono” em cimento e num lago próximo da residência dos autores que, por considerarem violar o ambiente e o direito à saúde e à qualidade de vida, pedem a sua condenação no pagamento de indemnizações, na demolição e na reversão do prédio para o domínio público.

Lisboa, 10 de Março de 2016. – António da Silva Gonçalves (relator) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – João Luís Marques Bernardo – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – José Tavares de Paiva – António Bento São Pedro.