Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:041/15
Data do Acordão:02/04/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ RAINHO
Descritores:JUNTA DE FREGUESIA.
CONTRATO DE TRABALHO.
COMPETÊNCIA.
Sumário:Compete aos tribunais judiciais conhecer da acção em que se pede a declaração de ilicitude do alegado despedimento e a reintegração da Autora ao serviço de uma Freguesia quando o que se alegou não caracteriza um “contrato individual de trabalho da Administração Pública” ou um “contrato de trabalho em funções públicas”, mas simplesmente e por defeito, um contrato individual de trabalho. (*)
Nº Convencional:JSTA00069559
Nº do Documento:SAC20160204041
Data de Entrada:10/22/2015
Recorrente:A..., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE COIMBRA, FIGUEIRA DA FOZ, INSTÂNCIA CENTRAL - 2 SECÇÃO TRABALHO - J1 E O TAF DE COIMBRA - UNIDADE ORGÂNICA 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO JURISDICIONAL TAF COIMBRA - SECÇÃO DE TRABALHO DA INSTÂNCIA CENTRAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Decisão:DECL COMPETENTE SECÇÃO DE TRABALHO DA INSTÂNCIA CENTRAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Área Temática 1:DIR ADM CONT
Legislação Nacional:CONST05 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 N1 ART4.
CPC13 ART64.
L 35/14 DE 2014/06/20 ART12.
L 62/13 DE 2013/08/26 ART40 ART144 N1.
L 59/08 DE 2008/09/11.
L 12-A/08 DE 2008/02/27.
L 23/04 DE 2004/06/22 ART8.
Jurisprudência Nacional:AC STJ DE 2008/11/06
Referência a Doutrina:MANUEL DE ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1979 PAG91.
VIEIRA DE ANDRADE - A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 9ED PAG54-58 PAG117-118.
GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA 3ED PAG815.
FREITAS DO AMARAL - CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOLII 2ED PAG167-168.
AROSO DE ALMEIDA E FERNANDES CADILHA - COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2ED PAG17.
FERNANDES CADILHA - DICIONÁRIO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO 2007 PAG117-118.
GOMES CANOTILHO - RELAÇÕES JURÍDICAS POLIGONAIS, PONDERAÇÃO ECOLÓGICA DE BENS E CONTROLO JUDICIAL PREVENTIVO - REVISTA JURÍDICA DO URBANISMO E DO AMBIENTE N1 JUNHO1994 PAG55 SEGS.
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA - CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS VOLI PAG26-27.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

I - RELATÓRIO

A………………… deduziu oportunamente, perante o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra e em autos de ação declarativa de condenação com processo sob a forma especial de impugnação judicial da regularidade e ilicitude do despedimento (processo n° 646/15.2BECBR), a Freguesia de ....., peticionando que fosse declarada a ilicitude do seu despedimento e que fosse a Ré condenada:

a) a reintegrar a Autora, com respeito pela sua antiguidade, categoria profissional e demais direitos e regalias auferidos antes do despedimento;

b) a pagar, a título de férias e subsídio de férias relativo ao ano de 2015 e subsídio de natal que se venceram em 1 de janeiro de 2015, a quantia de €1.800,00;

c) a pagar a quantia de €3.000,00 a título de subsídio de natal relativo aos últimos cinco anos;

d) a pagar a quantia de €3.000,00 a título de subsídio de férias relativo aos últimos cinco anos;

e) a pagar a quantia de €3.000,00 a título de danos não patrimoniais;

f) a pagar as remunerações e os respetivos subsídios que se vierem a vencer desde 30 dias antes da instauração da ação, até ao trânsito em julgado da sentença, à razão de €600,00 por mês;

g) a pagar juros sobre esta última quantia.

Por decisão de 20 de julho de 2015, considerou-se o tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido da Autora. Entendeu-se a propósito que a jurisdição competente era a da ordem dos tribunais judiciais.

A Autora propôs então perante a Secção de Trabalho da Instância Central da Figueira da Foz, Comarca de Coimbra, ação (processo n° 1285/15.3T8FIG) contra a Ré nos mesmos precisos termos.

Por decisão de 2 de setembro de 2015, considerou-se o tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido da Autora. Entendeu-se a propósito que a jurisdição competente era a da ordem administrativa e fiscal.

As decisões transitaram em julgado.

Vem suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição assim formado.

O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da competência estar atribuída aos tribunais judiciais.


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Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

Dos Factos:

Na sua petição inicial a Autora alegou, no que importa para a presente decisão, o seguinte:

- Em 1 de fevereiro de 2007, mediante documento denominado “Acordo de atividade ocupacional”, contratou com a Ré proporcionar a esta, no âmbito do projeto ocupacional por si organizado, tarefas úteis à coletividade no domínio de serviços indeterminados;

- O contrato teve a vigência de 1 ano, terminando a 31 de janeiro de 2008;

- A remuneração fixada correspondia a um subsídio complementar de 20% em acréscimo à prestação mensal de desemprego que a Autora se encontrava a receber;

- Terminado o contrato relativo ao Plano Ocupacional, a Autora continuou a exercer as mesmas atividades de atendimento ao público e funções administrativas na Junta de Freguesia de .....;

- Em março de 2008, por indicação da Ré, a Autora passou a desempenhar a sua atividade profissional no Posto de Correios e Posto de Turismo da freguesia de ....;

- Tal atividade traduzia-se em rececionar cartas, encomendas, pagamentos e vales de correios, pagamentos de Segurança Social, em suma, todo o expediente normal de posto de correios;

- No Posto de Turismo efetuava visitas guiadas à Zona Histórica de ....., nomeadamente à Fonte, Igreja, Casa de Jaime Cortesão, Moinho, Museu do Grupo Típico de ....., Janelas Manuelinas e várias capelas da vila de......;

- O horário de trabalho era de segunda a sexta-feira, entre as 9h e as 12h30 e entre as 14h e as 18h;

- A retribuição mensal era de €600,00;

- Toda a atividade da Autora era supervisionada e dirigida pela Junta de Freguesia de .... (presidência e restantes membros), entidade responsável quer pelos correios, quer pelo Posto de Turismo, ambos a funcionar em edifícios da Junta de Freguesia;

- A Autora exerceu a sua atividade exclusivamente a favor da Ré;

- Em 2 de março de 2015 a Ré fez cessar sem mais a sua relação com a Autora, que assim foi despedida.

Como sustentáculo jurídico da sua pretensão invocou a Autora unicamente normas do Código do Trabalho.

Do Direito:

Como tem sido uniformemente entendido, a competência é determinada pela forma como se apresentam desenhados a causa de pedir e o pedido (o quid decidendum), sendo desinteressante para o efeito qualquer prognose ou juízo quanto ao mérito da pretensão deduzida (irrelevância do quid decisum). Nas palavras de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91) “A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.
Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º n° 1 da CRP). Já aos tribunais administrativos e fiscais compete o conhecimento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 212°, n° 3 da CRP). A jurisdição dos tribunais judiciais é, pois, constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída competência nas áreas não reservadas a outras ordens ou categorias judiciais, princípio este que é reafirmado no art. 64° do CPCivil e no art. 40°, n° 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n° 62/2013). Concordantemente, afirma no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ETAF, (art. 1°, n° 1) que “Os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça (...) nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”. E, de igual modo, no art. 144º, n° 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário reitera-se que “Aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência do tribunal administrativo decorrerá, assim, da circunstância do litígio emergir de uma relação jurídica administrativa. Sem dúvida que o ordenamento jurídico actualmente vigente eliminou o critério da natureza pública ou privada do ato de gestão que gera o pedido como o critério aferidor da competência.
Questão está em saber o que deve entender-se por relação jurídica administrativa, conceito este que pode admitir vários sentidos, até mesmo o meramente subjetivo, de sorte que, e no limite, poder-se-ia ver uma relação jurídico administrativa aí onde simplesmente fosse parte no litígio uma pessoa coletiva de direito público (v. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 9ª ed., p. 54). É consensual, porém, que tal expressão conceitual deve ser interpretada no sentido estrito e tradicional de relação jurídica de direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração (v. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 55).
Em comentário ao art. 212° da CRP, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª, edição, pág. 815) aduzem que “Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n° 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
Segundo Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, II, 2.ª ed., pp. 167 e 168), é administrativa “toda a relação entre sujeitos de direito, públicos ou privados, que atuem no exercício de poderes ou deveres públicos conferidos por normas de direito administrativo”. Para Vieira de Andrade (ob. cit., pp. 57 e 58), são relações jurídicas administrativas “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha (Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, 2ª ed.. p. 17) entendem que “uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada”. Fernandes Cadilha (Dicionário de Contencioso Administrativo, 2007, pp. 117 e 118) afirma que “Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração,) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjetiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou interorgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa coletiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (quanto às características de uma relação jurídica deste tipo, Gomes Canotilho, “Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n° 1, Junho 1994, págs. 55 e ss.)”.
Ainda assim, parece ser de entender que no art. 4º do ETAF se quis alargar (bem como restringir) o âmbito nuclear da competência enquanto baseada na relação jurídico- administrativa, de modo que se poderá porventura sustentar que a competência da jurisdição administrativa abrange automaticamente (isto é, sem que ocorra o pressuposto da existência de uma efetiva relação jurídica administrativa, pelo menos em sentido objetivo e funcional) certas outras situações. O assunto prestar-se-á a dúvidas legítimas (v. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 55, 117 e 118), mas é neste sentido que se tem direcionado (ao que sabemos, sem grande controvérsia) a jurisprudência (v., entre outros, o Ac. do STJ de 6.11.08 [respetivos considerandos], disponível em www.dgsi.pt). Dentro ainda desta linha, aduzem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (Código de Processo no Tribunais Administrativos, vol. I. pp. 26 e 27) que “É preciso, porém, não confundir os fatores de administratividade de uma relação jurídica com os fatores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa, pois, como já se disse, há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado. E também fez o inverso: também atirou relações onde existiam fatores indiscutíveis de administratividade para o seio de outras jurisdições”.
Uma das situações em que não seria evidente uma manifestação de relação jurídica administrativa tal como caraterizada à luz dos contributos doutrinários acima expostos, é precisamente aquela que se refere aos litígios emergentes, na terminologia da Lei n° 23/2004, de “contrato individual de trabalho da Administração Pública” (ou, numa terminologia mais atual, de “contrato de trabalho em funções públicas”). Talvez por isso o legislador se tenha sentido na necessidade de suprimir dúvidas e, como assim, de dirigir expressamente à jurisdição administrativa e fiscal a competência para a apreciação de litígios que tais. De facto, da alínea d) do n° 3 do art. 4° do ETAF resultava a contrario que a apreciação dos litígios emergentes dos contratos de trabalho que conferiam a qualidade de agente administrativo estava cometida à jurisdição administrativa e fiscal, da mesma forma que atualmente resulta da referida norma (na redação da Lei n° 59/2008) que é da competência da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes de contrato de trabalho em funções públicas (mas já não a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público). Por agente administrativo e por trabalhador em funções públicas entende-se o trabalhador que, cumpridas as especificas condições de admissão ao serviço público e que é sujeito às particularidades estabelecidas na legislação respetiva (atualmente regula para o caso sobretudo a Lei n° 35/2014), estabelece uma relação laboral com pessoas coletivas públicas e para a prossecução dos fins compreendidos nas atribuições destas.
Perante este conjunto de vetores jurídicos, vejamos o caso vertente.
Segundo decorre do alegado pela Autora nos termos acima expostos, o suposto contrato de trabalho iniciou-se tácita e informalmente em 1 de fevereiro de 2008, exercendo então a Autora (como já vinha fazendo ao abrigo de anterior “acordo de atividade ocupacional”, entretanto extinto por ter atingido o seu termo final), mediante uma retribuição, atividades de atendimento ao público e funções administrativas na Junta de Freguesia, passando pouco depois a exercer a sua atividade no Posto de Correios e no Posto de Turismo da freguesia, tudo sob a supervisão e direção da Junta.
Ora, esta singela factualidade poderá sem dúvida caracterizar um contrato de trabalho. Porém, e mesmo dando de barato que a atividade da Autora possa ser vista como resolvendo-se em última instância numa função de ordem pública e inserível nas atribuições administrativas da Ré, não representa a mesma factualidade nem uma situação de relação jurídica administrativa no sentido acima assinalado, nem uma situação de “contrato de trabalho da Administração Pública’’ em particular. Quanto à primeira hipótese a conclusão parece óbvia, pois que nada se encontra no que foi alegado factualmente que induza à ideia de que se tratou de um contrato regulável, sob o ponto de vista material, por normas de direito administrativo e que tivesse subjacente deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público que não se colocam no âmbito da contratação laboral jurídico-privada. E quanto à segunda hipótese, há que dizer que o que vem alegado pela Autora denega logo à partida a ideia de que se firmou um “contrato de trabalho da Administração Pública”. Isto é assim porque (e abstraindo das demais condições legais que à data eram exigidas para o acesso ao serviço público por via de contrato de trabalho), o contrato não revestiu a forma escrita, pelo que, contrariamente a tudo o que vem pressuposto pela própria Autora na sua demanda (a Autora parte logicamente do princípio de que se está perante um contrato válido), tratar-se-ia de um contrato nulo (v. art. 8° da citada Lei n° 23/2004) e, como tal, insuscetível de dar respaldo a um despedimento em sentido jurídico (e é de um despedimento ilícito que se queixa a Autora).
Deste modo, face aos termos factuais como a ação vem desenhada ou fundamentada, ou seja, face à sua causa de pedir e pedido consequente, não se insere na jurisdição administrativa e fiscal a competência para apreciar o litígio em causa. Na realidade, e como acaba de ser dito, o que foi alegado não caracteriza uma relação jurídica administrativa nem um “contrato individual de trabalho da Administração Pública” ou um “contrato de trabalho em funções públicas”, mas simplesmente, e por defeito, um comum contrato individual de trabalho.
Donde, é à jurisdição judicial, e dentro desta à laboral, que compete apreciar a causa.
Não é de mais, entretanto, renovar aqui o que acima se referiu: a competência do tribunal é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão. Nesta medida, e contrariamente ao que decorre implicitamente da decisão que foi proferida no Tribunal do Trabalho, não interessa, para os estritos fins da determinação da competência, trazer à discussão a legislação subsequente (referimo-nos à Lei n° 12-A/2008, de 27 de fevereiro, entretanto revogada, e à Lei n° 35/2014, de 20 de junho) que, segundo uma possível interpretação, poderá ter convertido o alegado contrato de trabalho num contrato em funções públicas: Note-se que não se está a pôr em dúvida que para os dissídios decorrentes de um contrato deste tipo a jurisdição administrativa e fiscal seria a competente (alínea d) do n° 3 do art. 4º do ETAF e art. 12° da Lei n° 35/2014). O que se diz, simplesmente, é que não é isso que está aqui em causa. Na realidade, uma coisa é a competência do tribunal, outra coisa, muito diferente, é o direito material ou substantivo aplicável ao litígio, direito este que cabe ao tribunal competente determinar e aplicar independentemente da sua natureza privada ou pública.

Segue-se pois que a competência material para apreciar o litígio em questão está deferida aos tribunais da ordem comum ou judicial, e não aos da ordem administrativa e fiscal.


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III - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Tribunal dos Conflitos em decidir, resolvendo assim o conflito negativo de jurisdição, que é competente para o conhecimento da ação em causa a jurisdição comum (Secção de Trabalho da Instância Central da Figueira da Foz).

Regime de custas:

Não há lugar a custas.


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Lisboa, 4 de fevereiro de 2016. – José Inácio Manso Rainho (relator) - Maria Benedita Malaquias Pires Urbano - Ana Luísa Passos Martins da Silva Geraldes - José Augusto Araújo Veloso - Francisco Manuel Caetano - José Francisco Fonseca da Paz.