Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:09919/19.4T8LSB.L1.S1
Data do Acordão:02/24/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO JURISDIÇÃO
Sumário:I - Cabe à jurisdição administrativa e fiscal a competência para julgar uma execução instaurada pela Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução contra um agente de execução, destinada a obter a cobrança coerciva de contribuições a que os associados estão obrigados por virtude de normas administrativas que as impõem, e que tem por base a liquidação das quantias que a Ordem considera estarem em falta.
II - Está em causa o exercício de poderes públicos, traduzido na prática de “actos administrativos necessários ao desempenho das suas funções” e na aprovação de regulamentos exigidos pela prossecução das atribuições que lhe são cometidas.
Nº Convencional:JSTA000P27349
Nº do Documento:SAC2021022409919/19
Recorrente:TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DE LISBOA - JUÍZ 7
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA
Recorrido 1:ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO
Recorrido 2:A....................
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. A Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução instaurou junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 8 de Maio de 2019, uma ação executiva para pagamento de quantia certa contra AA, requerendo o pagamento coercivo das dívidas do executado perante a Caixa de Compensações, no valor de € 100.258,74, acrescida dos juros vincendos calculados à taxa legal desde 2 de Março de 2019 até efetivo e integral pagamento. Como título executivo, juntou uma certidão de dívida emitida pelo Conselho Geral da referida Ordem (n.º 4 do artigo 84.º dos respectivos Estatutos, aprovados pela Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro).
Pelo requerimento de fls. 10, o executado invocou a excepção de incompetência em razão da matéria, sustentando tratar-se de execução da competência dos tribunais administrativos, uma vez que “As relações jurídicas entre a OSAE e os seus associados são relações de natureza administrativa, entre as quais se incluem as questões relativas à Caixa de Compensações”.
A sentença de fls. 94, do Juízo de Execução do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, rejeitou a execução, concluindo que a competência para dirimir este tipo de litígio cabe aos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do disposto na al. n) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF:
Os atos da exequente, pessoa coletiva de natureza pública, respeitantes a atribuição de direitos e cobrança das suas receitas, através dos órgãos competentes para o efeito, incluindo as quotas e taxas, bem como as multas e outras receitas obrigatórias, são praticados no uso do seu poder de autoridade.
Desta forma se conclui que, em face da natureza do título apresentado à execução (uma certidão de dívida emitida por pessoa coletiva de direito público, no uso do seu poder de autoridade), a obrigação exequenda decorre de uma relação de direito público, respeitante a cobrança de taxas devidas à Caixa de Compensações.(…)
Assim, sendo a exequente uma pessoa coletiva de direito público e assumindo as relações entre esta e os seus membros a natureza de relações administrativa, há que concluir que a competência para dirimir este tipo de litígio recai nos tribunais administrativos e fiscais”
Inconformada, a exequente interpôs recurso da sentença. Pelo Acórdão de fls. 114 o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e manteve a sentença, reafirmando a competência dos tribunais administrativos e fiscais para a execução em causa.

2. Notificada, a exequente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, defendendo a revogação do acórdão recorrido e a prossecução dos termos da execução no Juízo de Execução. Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes:
«A. Constitui título executivo bastante a certidão de dívida passada pelo conselho geral da OSAE no que se refere a quotas, e às taxas devidas à Caixa de Compensações, aplicando-se à cobrança coerciva de taxas ou outras quantias as regras do Código de Processo Civil (n.º 3 e n.º 4 do artigo 84.º do seu Estatuto).
B. É fundamental assentar na distinção das soluções estabelecidas no n.º 2 do artigo 207.º do Estatuto da OSAE, que determina que das decisões definitivas tomadas em matéria disciplinar cabe recurso contencioso para os tribunais administrativos e no n.º 3 do artigo 84.º, onde se optou por omitir remissão similar.
C. É que, com as referências que introduziu, no n.º 3 do artigo 84.º da OSAE, às regras do Código de Processo Civil – que não é o mesmo que o conceito de “lei processual civil”, contido no n.º 5 do artigo 157.º do ETAF – quis o legislador, não apenas determinar a aplicação do regime geral do processo de execução, mas também submeter estas situações ao bloco de legalidade do Código de Processo Civil e, portanto, à jurisdição dos tribunais cíveis.
D. Até porque, se a sua intenção fosse, apenas, a de subordinar esta categoria de processos de execução, no quadro da jurisdição administrativa e fiscal, às normas em matéria de tramitação no domínio processual civil, bastar-lhe-ia o silêncio, uma vez que tal solução já decorreria de quanto estatui o n.º 5 do artigo 157.º do CPTA.
E. É muito relevante, para o esforço interpretativo requerido, sublinhar que o nº 4 do artigo 43.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, estabelece que a cobrança coerciva dos créditos resultantes provenientes das quotas e das taxas cobradas pelos serviços prestados pelas associações públicas profissionais segue o processo de execução tributária.
F. E que disposição de idêntico teor é replicada, v. g., pelo n.º 1 do artigo 155.º do Estatuto da Ordem dos Médicos e pelo artigo 120.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros.
G. Ora, no caso da OSAE, o legislador quis expressamente consagrar uma solução distinta daquela, o que resulta claro da comparação entre a solução constante do n.º 3 do artigo 84.º do Estatuto da OSAE e aquela que é acolhida naquelas normas.
H. Uma solução diferenciada em termos de normas procedimentais – o Código de Processo Civil em vez do Código do Procedimento e Processo Tributário -, mas também em termos de competência material de apreciação – os tribunais cíveis, em vez dos tribunais fiscais.
I. As relações estabelecidas entre a OSAE e os seus associados, que sejam devedores da Câmara das Compensações, não devem reconduzir-se, sem mais, à categoria de relações jurídico-administrativas.
J. As associações públicas profissionais constituem, em simultâneo, manifestação de vontade do poder público, que as institui, e do princípio da liberdade de associação, pelo que, em tudo quanto não for incompatível com a natureza pública que apresentam, compartilham do regime comum das associações.
K. Daí que, nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, as suas decisões estão sujeitas ao contencioso administrativo, apenas, quando em causa estejam o exercício de poderes públicos.
L. Diferentemente, o controlo da juridicidade das demais decisões, que não apresentem essa marca distintiva, caberá a outras categorias de tribunais, isto é, os comuns.
M. Em matéria de cobrança de dívidas dos associados, OSAE não exerce poderes de autoridade, encontrando-se numa situação jurídica similar à de outras associações privadas (ou entidades comparáveis), uma vez que não dispõe de poderes coercivos para tornar a cobrança efectiva, no caso de não ocorrer o pagamento voluntário das mesmas.
N. E o facto de as certidões de dívida emitida pelo Conselho Geral da OSAE constituírem título executivo não é, por si só, sinal da presença de uma relação jurídica administrativa, pois que isso também ocorre com entidades de direito privado, sujeitas ao processo de execução da competência dos tribunais cíveis, como no caso, v.g., das actas das reuniões de condomínio.
O. Não tem qualquer relevância, para a questão “sub judicio”, a invocação da jurisprudência sobre as relações entre a CPAS e os seus beneficiários, já que esta, diferentemente da OSAE, não tem natureza associativa – não sendo, portanto, subsumível ao conceito de associação pública profissional -, uma vez que resulta, em exclusivo, de uma decisão unilateral do Estado, assumindo a natureza de instituição de previdência.
P. Pelo que todos os actos praticados pela CPAS traduzem, “ex natura”, o exercício de poderes públicos, sujeitos, por isso, à necessária apreciação dos tribunais administrativos e fiscais.
Q. Assim sendo, a decisão recorrida violou o disposto no n.º 3 do artigo 84.º do Estatuto da OSAE, que dispõe que à cobrança das dívidas à Caixa de Compensações se aplicam as regras do Código do Processo Civil e, consequentemente, a sua subordinação à jurisdição dos tribunais comuns, violação que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 852.º, também do CPC.»
O executado AA contra-alegou, sustentando o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e a improcedência do recurso, concluindo desta forma:
«a) O presente recurso visa a revogação do acórdão que havia confirmado a decisão do Tribunal de 1.ª Instância.
b) As instâncias declararam a sua incompetência, em razão da matéria, para tramitar a ação executiva sub judice.
c) A incompetência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais decorre, desde logo, do factodeestarmos na presença da cobrança coerciva, através dos tribunais, do pagamento de uma putativa taxa que se sustenta na relação jurídico-administrativa entre a exequente e o executado.
d) A norma do art.º 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa é clara:
– “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
e) Acresce que a norma da alínea n) do n.º1 doart.º4.º do ETAF é inequívoca ao determinar:
– “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração”.
f) Tampouco, no contexto das competências em razão da matéria fixadas, no ETAF ou na Lei da Organização do Sistema Judiciário, haveria base legal – em rigor, constitucional – para dirimir, no contexto de uma execução, como a destes autos, um incidente de embargos.
g) Um incidente de embargos onde se suscitassem questões exclusivamente do foro jurídico-administrativo e/ou tributário, como, entre outras, (i) a ilegalidade e inconstitucionalidade a vários níveis da legislação que suporta as “taxas” cujo pagamento a exequente persegue ou (i) a caducidade do direito de exigir o pagamento das taxas e prescrição de tal pagamento.
h) São matérias notoriamente de direito administrativo e tributário.
i) A norma do art.º 84.º, n.º 3 do EOSAE apenas esclarece que no processo de cobrança coerciva se aplicarão as regras do processo civil, em linha com a norma do próprio CPTA, no art.º 157.º, n.º 5, o que identicamente ocorre com o CPPT, onde se encontram inúmeras remissões expressas para o CPC [além da aplicação subsidiária do mesmo, nos termos do art.º 2.º, alínea e)].
j) Mais, as normas de processo civil, mesmo que em bloco aplicadas, não têm uma única norma de atribuição de competência em razão da matéria.
k) O Código de Processo Civil regula a tramitação das ações que correm nos tribunais, questão significativamente diversa da determinação de quais as ações que correm nos tribunais.
l) Ou seja, mesmo fazendo uma aplicação literalíssima da remissão do art.º 84.º, n.º 3 do EOSAE teríamos como conclusão, no que tange à competência em razão da matéria, o mesmíssimo resultado, já que o âmbito e objeto do CPC não visam regular ou dalguma forma dilucidar essa questão.
m) A jurisprudência dos nossos tribunais superiores, em consonância com o que resulta da doutrina, tem sido clara na conclusão de que este tipo de litígios está sujeito à ordem jurisdicional dos tribunais administrativos.
n) Entre outros, os seguintes arestos:
(i) Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 20.09.2012, Proc. n.º 07/12;
(ii) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.01.2018, Proc. n.º 6611/17.8T8CBR.C2;
(iii) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.03.2019, Proc. n.º 19570/17.8T8LSB.L1-6;
(iv) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.03.2017, Proc. n.º 17398/15.9T8LRS.L1-2.
a) Em suma, são competentes para dirimir quaisquer questões, entre ordens profissionais e respetivos associados, os tribunais administrativos e fiscais, por clara determinação legal da Constituição (art.º 212.º, n.º 3 da CRP) e da lei ordinária [alínea n) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF], aqui se incluindo a tramitação da presente ação executiva.
b) Devem por isso improceder todas as conclusões do recurso da exequente.»

O recurso foi admitido, pelo despacho de fls. 147-a).

2. Foi proferido o seguinte despacho pela relatora, a fls. 153:

«1.Pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 114, de 5 de Março de 2020, foi mantida a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução, Juiz 4, de fls. 94, que rejeitou a execução instaurada pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução contra AA, com o fundamento de serem competentes os “tribunais administrativos e fiscais”.
A Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução interpôs recurso de revista, que foi admitido pelo despacho de fls. 147 a).
2. Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 101º do Código de Processo Civil, nestes casos “o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal dos Conflitos”.
Sendo aplicável a Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), remeta o processo a Sua Excelência o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 18.º e no n.º 2 do artigo 2.º da mesma Lei.»

Este despacho foi notificado às partes, em cumprimento do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de fls. 154, que igualmente determinou que se seguissem os termos previstos na Lei n.º 91/2019.

3. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de dever ser confirmado o acórdão recorrido, por se tratar de uma execução da competência dos tribunais administrativos e fiscais, “atento o especial relevo da obrigatoriedade legal da constituição da relação jurídica existente entre a exequente e o executado, a natureza jurídica e os fins visados pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução”.

4. O executado, AA, veio reclamar do despacho de fls. 153, sustentando que a reclamação deve ser acolhida e, “em consequência:
a) Ser o despacho reclamado declarado nulo ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1. al. d) do CPC, com fundamento no facto de a Senhora Juiz Conselheira Relatora ter decidido questão sobre a qual não podia ter tomado conhecimento sem prévia notificação às partes para, querendo, se pronunciarem e, em consequência, ser determinado (i) a notificação das partes para, de forma sucessiva, se pronunciarem sobre a remessa e (ii) a anulação de todo o subsequente processual ao despacho de 28.09.2020;
b) Subsidiariamente, improcedendo a alínea antecedente, ser o despacho reclamado por ilegal, em face da argumentação adrede explicitada, mais se decidindo rejeitar o recurso em face da formação de caso julgado do acórdão do TRL de 05.03.2020”.

Apresentou esta reclamação ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, conjugado com o artigo 679.º do mesmo Código e, em requerimento dirigido ao Tribunal dos Conflitos, juntou cópia da reclamação e veio requerer a suspensão do processo enquanto não fosse decidida a reclamação, por constituir “causa prejudicial, nos termos do art. 272,º, n.º 1 do CPC".
A recorrente pronunciou-se no sentido da rejeição da reclamação.

A reclamação foi apreciada na revista, sendo entretanto suspenso o processo no Tribunal dos Conflitos (despacho de fls. 212).
Por acórdão transitado em julgado, a reclamação foi indeferida. Em breve síntese, decidiu-se não ser fundada a arguição de nulidade, por se tratar de um caso de “manifesta desnecessidade” de contraditório prévio (n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil), uma vez que “o n.º 2 do artigo 101.º do Código de Processo Civil é claro e taxativo, ao determinar que, se a Relação considerar o tribunal judicial onde corre a acção incompetente por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal dos Conflitos” e que “a clareza do texto legal obsta a que se possa ter o despacho reclamado como contendo uma decisão surpresa”; que o n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Civil (dever de correcção da via processual erradamente seguida pela parte) fundamenta a admissibilidade da convolação); que o recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa foi tempestivamente interposto; que não ocorre qualquer “violação dos princípios da auto-responsabilidade das partes e da preclusão”.

Julga-se portanto terminada a suspensão do processo no Tribunal dos Conflitos.
Cumpre conhecer do recurso.

5. A matéria de facto relevante para o julgamento do presente recurso consta do relatório deste acórdão.
Está apenas em causa determinar se a execução de que se trata é da competência dos Tribunais Judicias – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) –, como sustenta a recorrente, ou dos Tribunais Administrativos e Fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, como entende o recorrido e se decidiu, quer em primeira instância, quer no acórdão recorrido.
No caso, tendo em conta que a execução foi instaurada em 8 de Maio de 2019, a versão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais a considerar é a anterior à entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, relevando a que resultou das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.
O sentido geral dessas alterações encontra-se claramente exposto na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 331/XII, da qual viria a resultar a Lei n.º 100/2015, de 19 de Agosto, que autorizou o Governo a alterar, entre outros diplomas, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: “No domínio das alterações introduzidas ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), a inovação mais significativa incide sobre a definição do âmbito da jurisdição administrativa, no artigo 4.º. Com efeito, a partir do entendimento de que o quadro legislativo deve evoluir no sentido de atribuir aos tribunais administrativos a competência para julgar os litígios que, pela sua natureza, têm por objeto verdadeiras relações jurídico-administrativas, mas também numa perspetiva equilibrada, que salvaguarde ponderosas razões de ordem prática (…)”. É com esta intenção que deve ser interpretado o acrescentamento da al. o) ao n.º 1 do artigo 4º do Estatuto – “Compete à jurisdição administrativa e Fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a 1. (…) o) Relações jurídicas administrativas e Fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
Está em causa uma execução baseada numa Certidão de Dívida emitida pelo Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, que constitui o título executivo, no qual se atesta que o executado “não procedeu ao pagamento de facturas relativas às taxas liquidadas a título de permilagem dos valores recebidos no âmbito das funções de agente de execução, e devidas à Caixa de Compensações” da referida Ordem – cfr. n.º 4 do artigo 84.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução. Aprovado pela Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro.

Não resulta do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução se uma execução instaurada pela Ordem contra um seu associado, baseada num título executivo extra-judicial emanado da própria Ordem, no qual se atesta uma dívida de contribuições devidas à Ordem, se incluiu ou não no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal; nem tão pouco da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais.
Decorre todavia do disposto no n.º 5 do artigo 157.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que as execuções contra particulares, baseadas em títulos executivos (que não sejam sentenças) “produzidos no âmbito de relações jurídico-administrativas que careçam de execução jurisdicional, correm nos tribunais administrativos, mas, na ausência de legislação especial, regem-se pelo disposto na lei processual civil”. O n.º 3 do artigo 84.º dos Estatutos da Ordem, ao remeter para “as regras do Código de Processo Civil” a “cobrança coerciva de taxas ou outras quantias devidas à Ordem”, apenas repete esta regra para as execuções assentes em títulos executivos extrajudiciais emitidos “no âmbito de relações jurídico-administrativas”; desta definição das regras aplicáveis à execução nada resulta quanto à determinação da jurisdição competente.
Cumpre portanto determinar se está em causa um litígio cujo objecto respeita a uma relação jurídica administrativa entre a Ordem e os seus associados, condição necessária para que o litígio pertença à jurisdição administrativa e fiscal (artigo 1.º e al. o) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e seja da competência dos tribunais administrativos (n.º 5 do artigo 157.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

6. A Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução é expressamente qualificada por lei como uma pessoa colectiva pública (n.º 2 do artigo 2.º dos Estatutos), de natureza associativa, representativa dos solicitadores e agentes de execução (n.º 1 do mesmo artigo 1.º). É uma associação pública profissional, na acepção do artigo 2.º da Lei n.º 2/2013.
Sempre cumpriria, aliás, os requisitos exigidos para se ter como pessoa colectiva pública: é criada por lei, prossegue interesses públicos (cfr. o artigo 3.º do Estatuto) e as competências dos seus órgãos são de exercício necessário, estando-lhe cometido o exercício de poderes públicos (cfr. novamente o n.º 2 do artigo 1.º do Estatuto) – cfr. Vital Moreira, Administração Autónoma e Associação Autónoma e Associação, Coimbra, 1997, pág. 476 e segs. e 485 e segs. Referindo a natureza dualista das Associações Públicas, diz a págs. 490: “(…) estão sujeitos ao direito público pelo menos os aspectos que integram a vida institucional da corporação (…) Cabem aí nomeadamente os seguintes aspectos: (…) a função certificativa, a função normativa, a fixação de tarifas e honorários ”.
Ora o presente litígio desenrola-se entre a Ordem e um particular no âmbito de relações jurídicas administrativas, ou seja, de relações disciplinadas por normas de Direito Administrativo – o Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução e os regulamentos que definem a “forma de cálculo, liquidação e pagamento” das “receitas da Caixa de Compensações” (ponto 7. do requerimento executivo, que identifica os regulamentos pertinentes). Como escreve Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa – Lições”, 17ª Edição, Almedina 2019, pág. 47), «A consideração da dimensão substancial revela-se na medida em que a justiça administrativa tem, por determinação constitucional, uma matéria própria: integra os processos “que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Esta noção de “relação jurídica administrativa”, para efeitos de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa, deve abranger a generalidade das relações jurídicas externas ou intersubjectivas de carácter administrativo, seja as que se estabeleçam entre os particulares e os entes administrativos, seja as que ocorram entre sujeitos administrativos”.
O mesmo entendimento se pode ver, a título de exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Outubro de 2009, www.dgsi.pt, proc. 0484/09: “III - Para efeito de inclusão no contencioso administrativo, devem considerar-se relações jurídicas administrativas externas ou interpessoais: a) as relações jurídicas entre a Administração e os particulares, incluindo: i) as relações entre as organizações administrativas e os cidadãos (ditas «relações gerais de direito administrativo»), mas também; ii) as relações entre as organizações administrativas e os membros, utentes ou pessoas funcionalmente ligados a essas organizações (as chamadas «relações fundamentais» no contexto das «relações especiais de direito administrativo») e; iii) as relações entre entes que actuem em substituição de órgãos da Administração (no contexto do exercício privado de poderes públicos, por exemplo, os tradicionais concessionários, capitães de navios ou de aeronaves, federações de utilidade pública desportiva, a que se juntam hoje múltiplas entidades credenciadas para o exercício de funções de autoridade) e os particulares; b) as relações jurídicas administrativas, incluindo: i) as relações entre entes públicos administrativos, mas também,; ii) as relações jurídicas entre entes administrativos e outros entes que actuem em substituição de órgãos da Administração, e ainda; iii) certas relações jurídicas entre órgãos de diferentes entes públicos (quando a circunstância de se tratar de órgãos de pessoas colectivas distintas puder ser considerada decisiva ou dominante para a caracterização da relação, como, por exemplo, no caso da delegação de atribuições.” (transcrição do ponto III do sumário), ou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Março de 2019, www.dgsi.pt, processo n.º 2468/15.1T8CHV-A.G1.S1: “Do exposto, pode concluir-se, na senda de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que para podermos afirmar que estamos ante uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos: (i) por um lado, um dos sujeitos há-de ser uma entidade pública ou se for privada deve atuar como se fosse pública; e (ii) por outro lado, os direitos e os deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo ou referir-se ao âmbito substancial da própria função administrativa. Será, pois, à luz do conceito de relação administrativa acima delineado que as diversas alíneas do artigo 4.º do ETAF devem ser lidas e interpretadas, posto que, conforme se deixou dito, face aos artigos 212.º, n.º 3, da CRP, e 1.º, n.º 1, do referido Estatuto, essencial para que a competência seja deferida aos tribunais administrativos é que o litígio se insira no âmbito de uma relação dessa natureza, o mesmo é dizer numa relação onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.
A presente execução tem por objecto a cobrança coerciva pela Ordem de contribuições a que os associados estão obrigados por virtude de normas administrativas que as impõem e tem por base a liquidação das quantias que a Ordem considera estarem em falta. Está em causa o exercício de poderes públicos, traduzido na prática de “actos administrativos necessários ao desempenho das suas funções” e na aprovação de regulamentos exigidos pela prossecução das atribuições que lhe são cometidas (cfr. ainda o n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 2/2013).

7. A presente execução corresponde assim a um litígio que respeita a “relações jurídicas administrativas” e é, por isso, do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (al. o) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, dentro desta jurisdição, da competência dos tribunais administrativos (n.º 5 do artigo 157.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
O recurso não pode, pois, ter provimento.

Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 14.º e no n. º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, especifica-se que é competente o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (artigos 9.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 16.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio).

11. Assim, decide-se:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Determinar que é competente para a presente execução o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Sem custas (n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

A relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STA, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa, votou favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2021

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza