Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:065/13
Data do Acordão:04/29/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MELO LIMA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
RENDA SOCIAL
FALTA DE PAGAMENTO
Sumário:Os tribunais administrativos são os competentes para conhecer de uma acção declarativa sob a forma de processo sumário por falta de pagamento de rendas no âmbito da habitação social e de rendas condicionadas
Nº Convencional:JSTA00068681
Nº do Documento:SAC20140429065
Data de Entrada:12/19/2013
Recorrente:EMGHA - GESTÃO DE HABITAÇÃO SOCIAL DE CASCAIS, E.M., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TAF DE SINTRA E O 1 JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES E DE COMARCA DE CASCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TCIV CASCAIS TAF SINTRA
Decisão:DECL COMPETENTE TAF SINTRA
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO
Legislação Nacional:CONST76 ART211 N1 N2 ART212 N3
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1
LOFTJ99 ART18 N1
L 52/2008 DE 2008/08/28 ART26 N1 N2
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC049/13 DE 2013/12/11
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA II PAG566-567
Aditamento:
Texto Integral: Processo nº: 65/13 - Conflito Negativo de Jurisdição
Acordam em conferência no Tribunal de Conflitos:
I

1. EMGHA - GESTÃO DA HABITAÇÃO SOCIAL DE CASCAIS, E.M., S.A. instaurou, pelo 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Cascais, ação declarativa, sob a forma de processo sumário, contra A……………., pedindo:

a) Seja declarado resolvido o Acordo de Cedência celebrado entre a A. e o R. em 16/02/2004, com fundamento na falta de pagamento de 68 prestações mensais;
b) O R. seja condenado a entregar à A. a parte do fogo cedida, totalmente livre e devoluta;
c) O R. seja condenado a pagar à A. a quantia de € 9.230,19, correspondente a 68 prestações mensais em atraso;
d) O R. seja condenado a pagar à A. o montante devido a título de prestações vincendas, desde a data da apresentação a juízo da p.i. até à data em que se considerar resolvido o Acordo de Cedência em causa;
e) O R. seja condenado a pagar à A. a indemnização devida pela ocupação da parte do fogo cedida, desde a data em que se considerar resolvido o Acordo de Cedência até à efetiva restituição da mesma;
Subsidiariamente, para o caso de se entender que o Acordo de Cedência constitui um verdadeiro contrato de arrendamento, pede:
a) Seja declarado resolvido o Acordo de Cedência celebrado, em 16.02.2004, entre a A. e o R., com fundamento na falta de pagamento de 29 rendas;
b) O R. seja condenado a entregar à A. o locado totalmente livre e devoluto de pessoas bens e em bom estado de conservação, tal como o encontrou;
c) O R seja condenado a pagar à A. o montante devido a título de 29 rendas vencidas e não pagas, no valor total de €2.637,90;
d) O R. seja condenado a pagar à A. o montante devido a título de rendas vincendas, desde a data da apresentação da p.i. em juízo, até a data em que se considerar resolvido o referido acordo;
e) O R seja condenado a pagar à A. a indemnização devida pela ocupação do locado desde a data em que se considerar resolvido o Acordo de Cedência até à efetiva restituição do mesmo.

2. Alegou, em síntese: (i) Ser gestora do parque habitacional do Município de Cascais, legítimo proprietário da fração que foi, em parte, dada de arrendamento ao R., por virtude do protocolo de Cooperação que juntou aos autos; (ii) Naquela qualidade, cedeu ao R., em 01.05.2004, um quarto na referida fração autónoma para sua habitação, ao abrigo do Decreto-Lei n° 166/93, de 7 de maio, pelo valor mensal de € 29,25, atualmente de € 165,00, sendo que o R. não pagou as prestações de março, julho a setembro e novembro e dezembro de 2006, janeiro a março e maio a dezembro de 2007, e janeiro a dezembro de 2008.

3. Por decisão de 07.10.2011, aquele 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Cascais declarou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido e, em consequência, absolveu o R. A……………. da instância.

4. EMGHA - GESTÃO DA HABITAÇÃO SOCIAL DE CASCAIS, E.M.,S.A. instaurou, então, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra ação administrativa comum, sob a forma de processo sumário, contra A…………….., pedindo:

a) Seja declarado resolvido o Acordo de Cedência celebrado, em 16.02.2004, entre a A. e o R., com fundamento na falta de pagamento de 68 prestações mensais;
b) O R. seja condenado a entregar à A. a parte do fogo cedida totalmente livre e devoluto de pessoas bens e em bom estado de conservação, tal como o encontrou;
c) O R. seja condenado a pagar à A. o montante total de € 9.230,19, correspondente a 68 meses de prestações em atraso;
d) O R. seja condenado a pagar à A. o montante devido a título de prestações vincendas, desde a data da apresentação a juízo da p.i. até à data em que se considerar resolvido o Acordo de Cedência em causa;
e) O R seja condenado a pagar à A. a indemnização devida pela ocupação da parte do fogo cedida desde a data em que se considerar resolvido o Acordo de Cedência até à efetiva restituição da mesma.
f) O R. seja condenado a pagar à A. a quantia de € 177,12, a título de juros de mora vencidos de 29 prestações vencidas e não pagas até à presente data, bem como a quantia correspondente aos juros de mora vincendos sobre as demais prestações mensais, calculados à taxa legal aplicável até efetivo e integral pagamento.

Subsidiariamente, para o caso de se entender que o Acordo de Cedência constitui contrato de arrendamento propriamente dito, pede:
a) Seja declarado resolvido o Acordo de Cedência celebrado, em 16/02/2004, entre a A. e o R., com fundamento na falta de pagamento de 68 rendas;
b) O R. seja condenado a entregar à A. o locado totalmente livre e devoluto de pessoas bens e em bom estado de conservação, tal como o encontrou;
c) O R. seja condenado a pagar à A. o montante total de € 9.230,19, correspondente a 68 rendas vencidas e não pagas;
d) O R. seja condenado a pagar à A. o montante devido a título de rendas vincendas, desde a data da apresentação a juízo da p.i. até à data em que se considerar resolvido o Acordo de Cedência em causa;
e) O R. seja condenado a pagar à A. a indemnização devida pela ocupação do locado desde a data em que se considerar resolvido o Acordo de Cedência em apreço até efetiva restituição do mesmo;
f) O R seja condenado a pagar à A. a quantia de € 177,12, a título de juros de mora vencidos de 30 rendas vencidas e não pagas até à data, bem como a quantia correspondente aos juros vincendos calculados à taxa legal até efetivo e integral pagamento.

5. Por decisão de 14.11.2013, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra deliberou:

«(...) julgo incompetente este tribunal administrativo de círculo de Sintra, em razão da matéria e da jurisdição, para conhecer da presente ação e dos respetivos pedidos condenatórios, por ser competente o tribunal comum, em face da natureza privada das relação jurídica contratual concreta e das consequentes normas; sendo que, para casos de contratos administrativos de arrendamento para habitação, respetivo despejo e execução das dívidas, sempre seria competente a própria proprietária do imóvel CMC/Autora, em face das normas especiais que lhe atribuem tal poder de autoridade, e do processo de execução fiscal respetivo, e não este tribunal»

Pari passu, ordenou a subida dos autos ao venerando STA - Tribunal de Conflitos.

6. O Excelentíssimo Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto Parecer no qual concluiu ser de atribuir ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a competência para conhecer e julgar a ação, fundamentado em que «no caso, por detrás de tudo está a deliberação da Câmara Municipal de Cascais de 2.2.2004 em celebrar com o R. um contrato de arrendamento de parte da habitação em causa, no âmbito da habitação social e de rendas condicionadas», pelo que, acrescenta, «acompanhamos a fundamentação da decisão do Tribunal Judicial de Cascais (1° Juízo Cível) constante de fls. 32/41 destes autos, que, no fundo segue a jurisprudência constante dos Acs. deste Tribunal de Conflitos n°s 12/11 de 25.09.2012; n° 4/13 de 05.03.2013; n°25/13 de 26.09.2013 e do recente Ac. 49/13 de 11.12.2013 (num caso idêntico).»
7. Porque uma e outra decisões transitaram em julgado, configura-se a existência de um conflito negativo de jurisdição que compete a este Tribunal de Conflitos resolver, reconduzindo-se a questão decidenda a saber e definir qual das jurisdições em confronto – administrativa ou comum – é a competente.

8. Sem vistos, mas com distribuição prévia do projecto de acórdão, cumpre decidir.
II
1. Sendo ponto incontroverso, como se entende, que a competência de um tribunal para dizer o direito (iuris dictio) se determina já em função da causa petendi e dos fundamentos da ação — dizer, ali, o facto jurídico concreto donde o A. pretende ter derivado o direito a tutelar (M. Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, Coimbra Edit. 1963, pág. 297); aqui, “os fundamentos de facto (que) hão-de compreender e englobar a causa de pedir, mas vão além dela.” (Paulo Cunha, Processo de Declaração, 1º, págs. 112 e 114) -, já em função do petitum - o benefício e/ou o efeito jurídico imediato e/ou a providência jurisdicional que se pretende obter pela acção -, importará tomar em primeira linha de consideração quer o quadro fáctico sob que se desenha o litigio chegado a juízo, quer a pretensão formulada no peticionado.
No que a esta concerne, bastará atentar nos pedidos principal e subsidiário formulados nas ações sucessivamente intentadas, ora no Tribunal Judicial de Cascais, ora no Tribunal Administrativo de Sintra, acima deixados enunciados.
No que ao quadro fáctico concerne, acolhe-se o acervo delineado na decisão proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Dizer, então:

1) Em 16/02/2004, a ora Autora (A), «EMGHA - Empresa de Gestão do Parque Habitacional do Município de Cascais - EM, com sede na Avª Engº Adelino Amaro da Costa, n° 89, Freguesia e Concelho de Cascais, número de contribuinte ……………, representada pelo Presidente do Conselho de Administração (...), por delegação da Câmara Municipal de Cascais, nos termos da cláusula 2ª do Protocolo assinado em 23 de Novembro de 1998, adiante designado como cedente, e A……………., solteiro, NIF ………….., (...), adiante designado como cessionário» celebraram o seguinte denominado «Acordo de Cedência de parte de casa com direito de serventia de cozinha e casa de banho», de fls. 28-29, que se transcreve: «É cedido, nos termos da deliberação da Câmara Municipal de Cascais, na sua reunião de 02 de Fevereiro de 2004, a utilização de parte de casa, designado por quarto n° 2 com direito de serventia de cozinha e casa de banho, relativo ao fogo correspondente à fracção r/c Esq, do prédio sito na Bº ………… Lote ……, ………., Quarto ….., ………… Freguesia de ………………, Concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ………….., sob o art. N°--, e isento de licença de utilização nos termos da lei, e do qual a representada da cedente é proprietária, nos termos e condições seguintes:
1ª A licença é concedida pelo prazo de um ano, com início em 1 de Maio de 2004, renovável automaticamente por iguais e sucessivos períodos se a cedente não comunicar o contrário, por escrito, com a antecedência mínima de 90 dias;
2ª O cessionário, caso seja sua pretensão renunciar à licença concedida, pode fazê-lo, mediante pré-aviso escrito de 30 dias;
3ª O cessionário pagará a prestação mensal de 29,25 Euros (…), calculada nos termos do Decreto-Lei nº 166/93, de 07 de Maio;
4ª O cessionário é obrigado a declarar bienalmente os seus rendimentos, a fim da
atualização anual da renda ser efetuada com base na variação percentual para esse ano do Salário Mínimo Nacional, conforme o estabelecido no nº 4 do art° 8° do Decreto-Lei n° 166/93, de 07 de Maio;
5ª O pagamento da renda será efetuado nos Serviços de Tesouraria da EMGHA - EM, até ao dia 08 do mês a que respeitar;
6ª Ao cessionário é expressamente proibido proceder a quaisquer obras ou instalações que modifiquem as condições de utilização da parte de casa que vai ocupar, sem autorização por escrito da EMGHA-EM, assim como consentir na sua ocupação, no todo ou em parte, por pessoas estranhas;
7ª O cessionário obriga-se a conservar em bom estado, como atualmente se encontram, as instalações e canalizações de água, luz, aquecimento, esgotos e demais equipamentos da área cedida, pagando à sua custa todas as reparações, bem como a manter ainda em bom estado os respetivos soalhos, pinturas, vidros, portas, janelas e estores;
8ª O cessionário obriga-se, de igual modo, a cumprir integralmente as disposições da Postura de Habitação Municipal, aprovada pelas deliberações respetivamente da Câmara Municipal de Cascais em 09 de Abril de 1992 e da Assembleia Municipal em 1 de Junho de 1992, cujo teor consta de fotocópia anexa ao presente Acordo, e que se considera para todos os devidos efeitos legais como fazendo parte integrante deste;
9ª Fica autorizado a habitar a parte de casa cedida pelo presente Acordo, a seguinte pessoa:
A……………;
10ª O cessionário pode ser desalojado quando se verifique que não tem necessidade de ocupar a parte de casa cedida ou se torne indigno do direito de ocupação que lhe é concedido, em especial:
a. Quando deixar de efectuar o pagamento da renda dentro dos trinta dias posteriores à data do respetivo vencimento;
b. Se vier a possuir casa própria e tenha a possibilidade legal de a ocupar;
c. Quando pelo seu comportamento provoque distúrbios ou prejudique os outros cessionários residentes no mesmo fogo;
d. Quando se recuse a mostrar a parte de casa cedida ao representante da EMGHA EM.;
e. Quando não mantiver em bom estado a parte de casa cedida;
f. Quando proceda de forma a criar risco para a segurança ou salubridade do prédio;
g. Quando habitem na parte de casa cedida, pessoas não autorizadas pelo presente Acordo de Cedência A Cedente (…) O Cessionário (…), Cascais, 16 de Fevereiro de 2004.»
2) Em 24/01/2011, o MUNICÍPIO DE CASCAIS e a ora exequente EMGHA - GESTÃO DA HABITAÇÃO SOCIAL DE CASCAIS, EM, SA, celebraram o acordo de fls. 20/55, designado «CONTRATO-PROGRAMA DEFINIÇÃO DE ORIENTAÇÕES NA EXPLORAÇÃO DO PARQUE HABITACIONAL MUNICIPAL», na sequência de outros acordos, nomeadamente de 23 de Novembro de 1998, e de 9 de Maio de 2002, nele referido, cujo teor dou por reproduzido e do aditamento de 01/06/2004;
3) A ora A instaurou contra o R, a acção de despejo n° 9564/08.OTBCSC (v 8, 9, 30, 31, 33, da PI), no Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, 1° Juízo Cível, com os mesmos fundamentos e pedidos da presente acção administrativa.
4) O tribunal de Cascais julgou-se incompetente, por despacho de 07/10/2011, fls. 32/ss, em razão da matéria, considerando competentes os TAF, nos termos do artigo 4-1-f), do ETAF.
5) A presente ação deu entrada neste TAC, em 23/03/2012 — fls. 2 e 3»

2. Suscitada uma questão de conflito (in casu, negativo) de competência entre tribunais, impõe-se ter presente, em primeira linha, o ordenamento judiciário que fundamentará o âmbito da discussão e, a final, o sentido da decisão.
Consabidamente, a lei jusfundamental consagrou o princípio da pluralidade de jurisdições, ou dizer a existência de diferentes categorias de tribunais sob um critério de repartição de competências de modo que as funções judiciais são atribuídas a vários órgãos enquadrados em jurisdições diferenciadas e independentes entre si.
É assim, que a Constituição da República se, por um lado, dispõe no art. 211° n°1 que «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais», acrescentando no n°2 do mesmo dispositivo, que «Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas», dispõe, por outro, no art. 212.°, n.° 3, que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações administrativas e fiscais».
Já no âmbito da lei ordinária, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF], aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 29 de fevereiro, se, num primeiro momento, define numa fórmula ampla que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (Art. 1°/1), enumera, depois, por mera indicação do objeto (sic, “nomeadamente”), os litígios cuja apreciação lhes compete. [Art. 4° n°1 als. a) a n)]
Pari passu, na assunção daquele papel residual dos Tribunais Judiciais decorrente da antedita norma constitucional, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.° 3/99, de 13 de janeiro) [LOFTJ] ora dispõe que «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» (De igual modo, o art. 64º do CPC), ora «determina a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica»
[Art.18°/1 e 2; Vide, ainda: Lei n.° 52/2008, de 28 de Agosto, Art. 26°/1 e 2]
Voltando à Lei Fundamental, impõe-se ter presente que logo aí se previne a existência de conflitos de competência: «A lei determina os casos e as formas em que os tribunais previstos nos números anteriores se podem constituir, separada ou conjuntamente, em tribunais de conflitos» (Art. 209°/3)
Subjaz ao presente processo uma questão de conflito negativo de competência, vale dizer, um conflito de jurisdição em que dois tribunais - Tribunal Judicial de Cascais (1° Juízo Cível) e Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra -, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, declinam o poder de conhecer da mesma questão, sendo certo que sobre uma e outra decisões, adrede proferidas, ocorreu o trânsito em julgado.
Integrando-se o 1º Juízo Cível de Cascais na categoria dos Tribunais Judiciais, logo no aludido âmbito residual, importará realçar a função que compete e distingue o Tribunal Administrativo.
Reproduzindo o texto constitucional, o ETAF atribui-lhe o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Punctum saliens, a referência às relações jurídico-administrativas (ou fiscais).
Ponto relativamente ao qual julga-se pertinente e bastante lembrar, aqui, os ensinamentos de Gomes Canotilho e Vital Moreira:
Esta qualificação transporta duas dimensões caraterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art. 4º)
O conceito de relações jurídico-administrativas deve ser entendido neste contexto como uma referência à possibilidade de alargamento da jurisdição administrativa a outras realidades diversas das tradicionais formas de atuação (ato, contrato e regulamento), complementando aquele critério. Pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público, _cuja caraterística essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado. Trata-se de um conceito suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do “novo direito administrativo”, mas que não pode deixar de ser entendido como complementar da tradicional dogmática das formas de atuação administrativa.»
(CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA, Vol. II, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, págs. 566-567 [Negrito e sublinhado do Relator])

3. Como bem assinalou o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, este Tribunal de Conflitos foi já chamado a resolver questões similares à questão ora em mãos.
Sendo de anotar, como igualmente refere aquele Digno Magistrado, a coerência jurisprudencial no sentido das decisões proferidas.
Assinala, e com inteira justeza o faz, a identidade com o caso decidido no Ac. 49/13 de 11.12.2013. (Acórdão, onde se recolhe relativamente à fundamentação da ação: (i) por um lado, a cedência, «nos termos da deliberação da Câmara Municipal de Cascais, na sua reunião de 02 de Fevereiro de 2004, (d)a utilização de parte de casa, designado por quarto n.º………… com direito de serventia de cozinha e casa de banho, relativo ao fogo correspondente a fracção ……….., do prédio sito no B.º de ……….. Lote ……… Quarto …….., Bairro de ……… Freguesia de ………....»; (ii) por outro, o abandono e o não pagamento das prestações acordadas, por parte do cessionário.)
Identidade óbvia e relativamente a cuja fundamentação/decisão aqui se adere:

«Resulta da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF que «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham por objeto: e) questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei especial que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público».
No teor literal desta norma, para além do mais, serão da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios relativos à «execução de contratos» relativamente aos quais exista «lei especial» que os submeta ou admita que sejam submetidos» a um «procedimento pré-contratual regulado por normas de direita público».
A sujeição, ou possibilidade de sujeição destes contratas a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, determinada por «lei especifica» é o critério de administratividade relevante para atribuir à jurisdição administrativa a competência para conhecer dos litígios derivados destes contratos, nomeadamente os relacionados com a respetiva execução. Na opinião de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «a alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público. A previsão do preceito compreende claramente litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas os contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas, quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais» (Obra citada, p. 165.), pelo que «desde que a formação de um contrato esteja submetida a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as ações que dele possam vir a emergir devem ser objeto de uma ação a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais - e isto porque se trata de um contrato público, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo nos termos do CCP.» (Obra citada, p. 166.)
Por seu turno, resulta da alínea f) do n.º 1 daquele artigo 4.º do ETAF que «compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham nomeadamente por objeto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de ato administrativo, de contratos especificadamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos do respetivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».
De acordo com o autor acima referido, estão abrangidos pela jurisdição administrativa «os contratos que apresentem alguma das três notas de administratividade a que se reporta o artigo 4.º, n.º 1, alínea f) do ETAF: a) Os “contratos com objeto passível de ato administrativo” ou relativos ao “exercício de poderes públicos”, que determinam a (ou se comprometem à futura) produção de efeitos correspondentes à prática, pelo contraente público, de um ato administrativo unilateral (cfr. artigo 1.°, n.º 6, alínea b) do CCP); b) Os contratos cujo regime substantivo das relações entre as partes é total ou parcialmente regulado por normas de direito administrativo: b’ Em primeiro lugar os contratos administrativos típicos, como tal previstos e regulados por normas específicas do Direito Administrativo (artigo 1.°, n.º 6, alínea a), do CCP), o que compreende (...) b” Em segundo lugar os contratos que “confiram ao contraente privado direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público” (...); c) Os contratos que, sendo uma das partes contraente público (nos termos dos artigos 3.º e 8.º do CCP) ou um concessionário atuando no âmbito da concessão, as partes tenham optado, de modo expresso e inequívoco, por qualificar como administrativos ou por submeter a um regime de Direito Administrativo (...)» (Manual de Processo Administrativo, 2013, Almedina, p.p. 162 e 163.).
Especifica, deste modo, esta alínea f) do n.° 1 do artigo 4.º que, entre outros, cabem no âmbito da jurisdição administrativa os litígios relacionados com contratos públicos que tenham um «objeto passível de ato administrativo», os contratos administrativos típicos, os contratos que confiram ao contraente privado «direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público» e os contratos em que, sendo uma das partes contraente público, «as partes tenham optado, de modo expresso e inequívoco por os qualificar como administrativos ou por os submeter a um regime de Direito Administrativo».
A atribuição à jurisdição administrativa dos conflitos relacionados com estes contratos pressupõe que se individualize a categoria de contrato público que serve de fundamento àquela atribuição, não bastando uma referenciação genérica a contratos por maior ou menor que seja a dimensão administrativa do regime que os enquadre.
2 - O “acordo de cedência de parte de casa com direito de serventia de cozinha e de casa de banho”, dada a natureza bilateral que o carateriza e a afirmação de direitos e obrigações para as partes, pode ser considerado um contrato, e, atentos os objetivos de natureza pública que visa realizar, a natureza de disciplina jurídica que o enquadra e natureza de uma das partes, não pode deixar de ser considerado um contrato administrativo atípico.
Este acordo titula as condições em que se efetiva o direito à ocupação da casa por parte do Réu, discriminado o complexo de obrigações que o onera derivadas desta ocupação e os inerentes direitos da Autora.
Importa, contudo, que se tenha presente que o direito do Réu a ocupar essa parte da casa não nasce do contrato, mas sim da deliberação da Câmara Municipal que lhe atribuiu esse direito, deliberação essa que é o fundamento do mencionado acordo.
Por outro lado, no contexto das obrigações que oneram o cessionário da parte da casa, aqui Réu, destaca-se o dever de pagamento das rendas, em conformidade com o regime decorrente do Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio, e a obrigação de facultar os elementos que permitam a atualização das mesmas de acordo com aquele diploma.
Para além disso, a ocupação da parte da casa em causa ocorre nos quadros da Postura de Habitação Municipal, que é assumida como anexo ao mencionado acordo, tendo tal ocupação uma natureza claramente precária, expressa, entre outros, no direito da cedente a não renovar o contrato, nomeadamente, quando ocorram situações que justifiquem o “desalojamento” do cessionário previstas na cláusula 10.ª, que consagra e adapta soluções previstas no Decreto n.º 35106, de 6 de Novembro de 1945, em cuja vigência o contrato foi celebrado.
O contrato em causa mostra-se, assim, enquadrado nos seus elementos essenciais por disciplina de natureza pública, quer no que se refere ao regime de desocupação do imóvel, quer no regime da fixação e actualização das rendas, quer na sujeição aos parâmetros decorrentes da Postura de Habitação Municipal, daí emergindo o complexo de obrigações que caraterizam a situação do Réu.
3 - Numa primeira abordagem, a sujeição do contrato a segmentos de direito público poderia apontar para a sua integração na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF e consequente atribuição aos Tribunais Administrativos da competência para conhecer dos litígios derivados do mesmo. Foi, de alguma forma, essa a solução que foi encontrada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Cascais.
A verdade é que o despacho proferido naquele Tribunal não concretiza o tipo de contrato que motivaria a subsunção àquela alínea do referido artigo 4.º do ETAF, nomeadamente, em que categoria dos contratos ali previstos se subsumiria o «acordo de cedência» dos autos.
Como se referiu, o direito à ocupação da parte da casa a que se refere o presente processo tem origem na deliberação da Câmara Municipal de 2 de Fevereiro de 2004, que atribuiu ao Réu uma licença relativa àquela ocupação.
Esta deliberação culminou um procedimento de natureza administrativa no contexto do qual o Município averiguou do preenchimento por parte do aqui Réu dos requisitos que fundamentaram a atribuição do direito à ocupação daquela parte do imóvel, na realização dos objetivos de natureza pública inerentes ao realojamento dos moradores de barracas, nos quadros da disciplina emergente do Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de Maio, relativo à execução do Programa PER (Programa Especial de Realojamento).
No fundo, através desse procedimento o Município escolheu a parte com quem veio a ser celebrado pela Autora, por delegação do Município, o acordo de cedência em causa.
Ora, a existência deste procedimento administrativo poderia permitir que se equacionasse a atribuição da competência para conhecer dos litígios que emergem da respetiva execução, no caso a desocupação da parte do imóvel por incumprimento por parte do Réu das condições que rodearam a adjudicação da mesma, à jurisdição administrativa, em conformidade com o disposto na alínea e) do artigo 4.° do ETAF.
Na verdade, a escolha do cessionário da parte da casa a adjudicar, no fundo o co-contraente privado, derivou de um procedimento que culminou com a deliberação da Câmara relativa à atribuição do direito à ocupação da casa que veio a ser enquadrado pelo referido acordo. Trata-se de um procedimento administrativo que culmina na prática de um ato administrativo - a deliberação da Câmara - que materializa por sua vez o concreto direito do Réu à ocupação da parte da casa e que tem natureza pré-contratual relativamente à celebração do acordo de cedência que vai formalizar as condições em que a ocupação do imóvel e a respetiva cessação podem ocorrer.
Importa, contudo, ponderar se este procedimento pode ser considerado um procedimento pré-contratual relevante para os efeitos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, o que depende de se considerar que a sujeição a esse procedimento decorre de «lei específica» que sujeite a celebração do contrato a este tipo de procedimento.
À adjudicação da parte da casa a que se referem os autos está subjacente o alojamento de cidadãos que se encontravam instalados precariamente em “barracas”, não havendo elementos que permitam afirmar ter-lhes sido aplicado o procedimento concursal previsto no artigo 8.º do Decreto-Lei 797/76, de 6 de Novembro, que esteve subjacente à decisão proferida no Conflito 025/12, decorrente do acórdão deste Tribunal de 14 de Março de 2013, ou qualquer outro de natureza análoga, não podendo encontrar-se naquele diploma a «lei específica» a que se refere a citada alínea e) do n.° 1 do artigo 4.º do ETAF.
Apesar de ter sido determinada a notificação da Autora para fazer juntar aos autos o procedimento que fundamentou a adjudicação da casa pelo Município, veio a ser junto apenas a proposta de deliberação do Município de que derivou aquela adjudicação.
Pode, assim, concluir-se no sentido de que não decorrem dos autos elementos seguros que permitam fundamentar na referida alínea e) do n.° 1 do artigo 4.º do ETAF a atribuição à jurisdição administrativa da competência para conhecer do litígio que é objeto do presente processo.
Daí não decorre que a competência para conhecer do presente litígio não deva ser atribuído à jurisdição administrativa.
4 - Na verdade, tal como acima se referiu, o «acordo de cedência» que está em causa formalizou a adjudicação da parte do imóvel ao Réu, concretizando as obrigações decorrentes daquela cedência, nomeadamente, o pagamento de um quantitativo mensal à Autora, como contraprestação dessa cedência.
Analisado esse acordo não se constata no mesmo algo que não seja a concretização de dispositivos de natureza administrativa relacionados com as condições em que a ocupação do imóvel ocorreria.
Por outro lado, ao tempo em que o referido acordo de cedência foi outorgado ainda estava em vigor o Decreto n.° 35 106, de 6 de Novembro de 1945, que previa no seu artigo 1.º que a ocupação das habitações em causa seria concedida «a título precário, mediante licença da entidade proprietária, sob a forma de alvará».
A atribuição das casas era deste modo feita por ato administrativo - a licença - sujeito a uma forma especial - o alvará -, não tendo uma qualquer dimensão contratual.
Acresce que as condições que enquadravam a cedência eram as definidas por via legal ou regulamentar, limitando-se a licença a concretizar essas condições, assumindo claramente a natureza de um ato administrativo.
No caso dos autos, apesar do recurso a uma forma de titulação que se aproxima do arrendamento de direito privado, materializada na assinatura de um documento — o acordo de cedência —, com natureza contratual e que acaba por substituir o alvará, nada impedia que essas condições fossem desde logo definidas, unilateralmente, pelo Município através de ato administrativo, no uso dos poderes que lhe assistem relativamente à gestão do património municipal.
Ou seja, o complexo de obrigações que decorrem do referido acordo para o cessionário poderia integrar um ato administrativo que as concretizasse, identificando igualmente os inerentes direitos e obrigações que assistem ao Município, ou à aqui Autora.
Deste modo, estamos perante um contrato cujo objecto «é passível de ato administrativo», o que legitima a atribuição à jurisdição administrativa da competência para conhecer os litígios que do mesmo derivem, nos termos da alínea f) do artigo 4.º do ETAF.»
III
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em julgar a jurisdição administrativa competente, em razão da matéria, para o conhecimento desta acção.

Sem custas.

Lisboa, 29 de Abril de 2014. – Joaquim Maria Melo de Sousa Lima (relator) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Mário Belo Morgado – António Bento São Pedro – Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor – Alberto Acácio de Sá Costa Reis.