Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0385/17.0BEMDL
Data do Acordão:04/18/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
DIREITOS REAIS.
POSSE DE PRÉDIO.
Sumário:A competência para conhecer de acção em que se discutem direitos reais cabe na esfera dos Tribunais Judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P32149
Nº do Documento:SAC202404180385
Recorrente:MUNICÍPIO DE VILA POUCA DE AGUIAR
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 385/17.0BEMDL

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
Município de Vila Pouca de Aguiar intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real – Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar, acção declarativa sob a forma de processo comum sumário, contra AA, formulando os seguintes pedidos:
a) Reconhecer-se que a Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar é legítima possuidora do Apeadeiro ..., e terreno contíguo;
b) Abster-se o R. da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização por parte da A. do referido Apeadeiro e terreno contíguo;
c) Reconhecer-se que o prédio em questão pertencente ao Domínio Público Ferroviário;
d) Cancelamento, a custas do R., do registo na Conservatória do Registo Predial do prédio objeto da presente Ação.
Em síntese, alegou que por protocolo de concessão de utilização de bens do domínio público ferroviário que assinou com a Rede Ferroviária Nacional REFER, EP (que deu origem, por fusão à Infraestruturas de Portugal), com início em 01.03.2005, foi concedida à Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar a utilização de diversos bens integrantes do domínio público ferroviário, os quais integram a antiga linha do Corgo, entretanto desactivada. Destes bens fazem parte os Edifícios de Passageiros, Habitações, Cais coberto e terrenos contíguos das diversas Estações e Apeadeiros da referida Linha, incluindo o Apeadeiro e terreno contíguo, de ..., sito na localidade ..., freguesia de Soutelo de Aguiar. Mais alegou que a partir da data em que este Apeadeiro e o terreno contíguo advieram à posse do A. implementou um plano de construção da Ciclovia Municipal de Vila Pouca de Aguiar, a qual tem vindo a ser executada de forma faseada. Desde o ano de 2006, procedendo a diversas obras nesse sentido.
No entanto, o R. veio a intentar acção que correu termos na Instância Local – Serviço de Competência Genérica – J1, de Vila Pouca de Aguiar em que pediu o reconhecimento como dono, exclusivo possuidor e proprietário de um prédio urbano com a área total de 1263m2, correspondente a 93m2 de área coberta e 1170m2 de área descoberta, invocando como título de aquisição derivada a compra verbal e aquisição originária por via de usucapião, intentando esta acção contra BB, sua irmã, e marido, que não contestaram. Em consequência veio a acção a ser julgada totalmente procedente, tendo o aqui R. sido reconhecido como dono, legítimo e exclusivo possuidor e proprietário do referido prédio urbano e procedido ao respectivo registo predial na Conservatória Predial de Vila Pouca de Aguiar, com data de 01.07.2016.
Com a presente acção vem o Município reivindicar a posse deste referido prédio que resulta do protocolo por si assinado, tendo tomado posse do prédio e procedido, no ano de 2015, à celebração de um protocolo com a Junta de Freguesia de Soutelo de Aguiar, tendo em vista a construção de um abrigo de passageiros, entretanto já executado, o que fez sem que ninguém contestasse a legítima posse que lhe foi conferida pela REFER através do referido protocolo, nomeadamente não se tendo o R. oposto por qualquer meio à posse do prédio pelo Autor, estando o Apeadeiro em causa descrito na caderneta predial urbana com o artigo matricial ...02, no Serviço de Finanças de Vila Pouca de Aguiar, constando como titular o Estado Português, tendo o R. plena consciência de que não era proprietário do imóvel em causa, sabendo que pertencia ao domínio público do Estado.

Em 20.09.2017, no Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar, foi proferida decisão (cfr. fls. 50 a 54) que julgou os tribunais judiciais incompetentes em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada, determinando a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (TAF de Mirandela), considerado o competente para o conhecimento da causa.
Remetidos os autos ao TAF de Mirandela foi aí admitida a intervenção principal provocada da Infraestruturas de Portugal, SA e da IP Património, Administração e Gestão Imobiliária, SA, como associadas do Autor, e de CC, DD e EE, como associados do Réu.
O TAF proferiu decisão em 30.09.2023 a declarar a incompetência em razão da matéria daquele TAF para conhecer do objecto dos autos.
Após trânsito em julgado, veio o Sr. Juiz daquele TAF a suscitar a resolução do conflito, por despacho de 23.11.2023.
Os autos foram remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
As partes, notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º, da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, nada disseram.
O Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer em 11.01.2024, no sentido de que a competência para julgar a acção deverá ser atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela.
Entendeu o Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar que, no caso, o objecto da acção está ligado aos imóveis constituídos pelo apeadeiro e terreno contíguo de ..., sito na localidade ..., freguesia de Soutelo de Aguiar, concelho de Vila Pouca de Aguiar, que alegadamente integram o domínio público ferroviário e que se encontram na posse do Município de Vila Pouca de Aguiar, na qualidade de concessionário, no âmbito do contrato administrativo nº ......, celebrado entre este e a então REFER, EP, pelo que aquele objecto se reconduz ao reconhecimento de situações jurídicas directamente decorrentes de normas jurídico-administrativas que regem o domínio público. Acrescentou que da conjugação do disposto na alínea f) do nº 1 do art. 4º do ETAF e do art. 1º, nº 6 do CCP, é de concluir que o âmbito da competência da justiça administrativa abrange os contratos expressamente qualificados pela lei como administrativos, considerando como tal os contratos de objecto passível de acto administrativo, isto é, os que versam sobre a produção de efeitos jurídicos que a lei previu serem atingidos mediante a prática de um acto administrativo, contratos cujo regime substantivo esteja especificamente sujeito a normas de direito público e ainda aqueles que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito administrativo.
Assim, considerou que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal eram os competentes para dirimir litígios regulados pelo direito administrativo, o que seria o caso, sendo a jurisdição comum materialmente incompetente para conhecer da acção.
Remetido o processo ao TAF de Mirandela este, por sua vez, também se considerou incompetente em razão da matéria porque, “(…), embora seja indiscutível, quanto ao Autor, a sua natureza de pessoa colectiva pública, isso não é determinante para atribuir a competência à jurisdição administrativa para o conhecimento do litígio (cf. Acórdão do tribunal dos Conflitos, de 18-12-2013, proc. nº 018/13). Importa como já sublinhamos a relação jurídica tal como configurada pelo autor na acção, independentemente da qualidade dos sujeitos.
Posto isto, atentando no pedido formulado e na causa de pedir em que se estriba, é de concluir que estamos perante uma causa no âmbito dos direitos reais.
Ora, como tem sido preconizado de forma reiterada, pela jurisprudência, do Tribunal dos Conflitos, a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos tribunais judiciais (cf. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 02-12-2021, proc. nº 03802/20.8T8GMR.G1.S1, e a abundante jurisprudência nele citada).
A essa luz, verifica-se que os pedidos a) e b) são configurados pelo Autor de forma a reconduzi-los a uma acção de defesa da posse, a fim de obter essencialmente a manutenção da posse relativamente ao ... e terreno contíguo. O pedido c) consubstancia um pedido que tem por objecto a simples apreciação da afirmação da titularidade de propriedade no sentido de se reconhecer que pertence ao domínio público do estado em contraponto à reivindicação da propriedade privada que o Réu vem manifestando. O pedido d) configura uma pretensão consequente do pedido antecedente e tem enquadramento nos artigos 17º e 13º do CRPredial, lembrando que, no direito registral predial, apenas correm nos tribunais administrativos e nos termos da legislação processual administrativa as impugnações das recusas de emissão de certidões previstas no artigo 147º-C do CRPredial.
Como se vê, a pretensão tal como configurada, concerne ao domínio das acções reais, para as quais são competentes os tribunais judiciais.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [cfr. arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC, e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (cfr. arts. 212º, nº3, da CRP e 1º, n.º1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está contemplada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da providência, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Ora, o que o autor pediu ao Tribunal na presente acção foi que seja reconhecida a sua posse sobre o apeadeiro e terreno contíguo, sendo-lhe restituída, por contraposição ao direito de propriedade sobre tais bens de que o réu se arroga, alegando na sua contestação, tê-lo adquirido por compra e venda verbal e por usucapião. Pretende ainda o A. que o Réu se abstenha da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização dos imóveis por parte daquele, por o direito de propriedade dos referidos bens pertencer ao Estado, por se integraram no domínio público ferroviário, tendo-lhe advindo a respectiva posse através de um “protocolo” de concessão de utilização daqueles.
Face a estes pedidos, concluiu o Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar que se estava perante uma relação jurídica administrativa, sendo que a competência para apreciar tal acção cabe na alínea f) do nº 1 do art 4º do ETAF (na sua versão original), conjugado com o nº 6 do art. 1º do CCP.
No entanto, em nosso entender, o que está em causa, face à forma como a acção é configurada pelo autor, é um pedido de restituição de posse dos prédios em questão, posse esta que lhe adveio de um “protocolo” de concessão de utilização de bens do domínio público ferroviário que assinou com a Rede Ferroviária Nacional REFER, EP em 2005.
Com efeito, o objecto do litígio tal como o Autor o configura nada tem a ver com qualquer das regras de competência do art. 4º, nº 1 do ETAF, que delimita a competência material dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal. Como sublinham Mário Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha, in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 5ª ed., pág. 26, “(…) mais não está em causa do que aplicar o critério da existência (ou não) de um litígio sobre uma relação jurídica administrativa ou fiscal – entendida como uma relação regulada por normas de direito administrativa ou fiscal, que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada (…)”.
No caso dos autos, como bem refere o EMMP, o litígio não emerge directamente de uma relação jurídico-administrativa entre as partes na acção, e a circunstância de o Autor deter a posse sobre os imóveis através de um denominado “protocolo”, qualificável como contrato administrativo, com a eventual necessidade de a decisão de mérito da lide poder depender do pressuposto do conhecimento de uma qualquer vicissitude administrativa, configurando assim uma questão prejudicial de direito administrativo, nos termos previstos no art. 92º, nº 1 do CPC, não constitui circunstância susceptível de afectar a originária competência material do Foro comum (cfr., neste sentido o Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 22.04.2015, Proc. nº 01/15).
Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos pelo que se conclui que a relação material controvertida, tal como é caracterizada pelo autor, não se inscreve em nenhuma das alíneas do nº 1, do art. 4º, do ETAF.
Tal como se apresenta, deparamo-nos com uma causa no âmbito dos direitos reais já que aquele alega factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de posse sobre o Apeadeiro e o terreno contíguo em causa, pedindo, além do mais, “[a]bster-se o R. da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização por parte da A. do referido Apeadeiro e terreno contíguo”.
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, consultáveis in www.dgsi.pt e os mais recentes de 02.12.2021, Proc. nº 03802/20.8T8GMR.G1.S1 e jurisprudência nele indicada, e de 15.02.2023, Proc. nº 014/21). Neste último estando em discussão o direito real de propriedade sobre um imóvel, sumariou-se, nomeadamente que: “Este Tribunal dos Conflitos tem entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais não se inclui no art. 4º do ETAF, devendo estas ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual.”.
Assim, uma vez que também na presente acção não estamos perante um litígio subsumível na previsão do referido art. 4º do ETAF, e nem este se pode qualificar como emergente de uma relação jurídica administrativa para cujo conhecimento seja competente a jurisdição administrativa, antes estando em causa no dissídio uma relação de direito privado, a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum (cfr. art. 64º do CPC).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real – Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar.
Sem custas (nº 2 do art. 5º da Lei nº 91/2019).

Lisboa, 18 de Abril de 2024. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.