Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:046/18
Data do Acordão:02/14/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ALEXANDRE REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24236
Nº do Documento:SAC20190214046
Recorrente:A............, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA - JUIZ 17 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
A……………… intentou acção declarativa no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa contra: 1ª Banco Espírito Santo SA; 2ª B…………; 3ª Novo Banco SA; 4° Fundo de Resolução; 5° Banco de Portugal; e 6ª CMVM - Comissão de Mercado de Valores Mobiliários. Pediu a condenação (solidária) dos RR a pagarem-lhe a quantia de € 434.570,10, acrescida de juros, para reparação dos danos que alegou resultarem do não cumprimento de contrato de intermediação financeira e, subsidiariamente, a declaração de nulidade desse contrato com a consequente restituição do capital investido, acrescido dos juros remuneratórios e de mora, bem como a ressarci-lo dos danos não patrimoniais que lhe foram causados, a liquidar posteriormente.
Para tanto, o A invocou uma causa de pedir complexa: no que concerne às 1ª e 2ª RR, alegou a violação de deveres contratuais e legais; à Novo Banco SA, a transferência para a mesma da responsabilidade (originária) da BES SA; ao Fundo de Resolução, (apenas) o facto de ser o único detentor do capital da Novo Banco SA; e ao Banco de Portugal e à CMVM o incumprimento dos deveres de supervisão bancária, a prestação de informações erróneas ao mercado e, em especial, a sua actuação no contexto da resolução do BES, nomeadamente, nas deliberações adoptadas em 3-08-2014, no âmbito da medida de resolução, e subsequentemente.
Os RR Banco de Portugal e CMVM arguiram a excepção da incompetência material do Tribunal para conhecer do pedido contra eles formulado, alegando que a competência para conhecer da sua eventual responsabilidade caberia sempre aos tribunais da jurisdição administrativa, e a segunda invocou, ainda, a inadmissibilidade processual do litisconsórcio e da coligação e de ilegitimidade passiva.
Em 1ª instância, o senhor Juiz julgou «verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta» do Tribunal, «em razão da matéria» e absolveu os RR da instância.
No âmbito da apelação interposta dessa decisão, a Relação de Lisboa manteve-a apenas quanto à absolvição da instância dos RR Fundo de Resolução, Banco de Portugal e CMVM, revogando-a no tocante à absolvição dos demais RR.
Não se conformando com a absolvição da instância dos referidos três RR, o A interpôs recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo a Formação deste prevista no art. 672º nº 3 do CPC ordenado a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos, considerando o disposto no art. 101º nº 2 do CPC, após manifestação de vontade expressa pelo A nesse sentido.
Foi determinada a convolação do interposto recurso de revista em recurso para este Tribunal de Conflitos e, na sequência, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o douto e detalhado Parecer de fls. 952 e ss, «no sentido de dever ser mantido o acórdão recorrido na parte em que declarou serem os tribunais administrativos os competentes para apreciar os pedidos formulados contra os [4º, 5º e 6ª RR]».

II. Apreciação

Conforme se retira do antecedentemente relatado, uma vez que o Tribunal da Relação julgou incompetente o tribunal judicial, por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (apenas) quanto aos RR Fundo de Resolução, Banco de Portugal e CMVM, a questão colocada nos autos confina-se a definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio em causa caberá aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.

Como é consensual, a competência do tribunal afere-se pela pretensão do autor, compreendidos os respectivos fundamentos: a determinação da competência do tribunal para o conhecimento da pretensão deduzida pelo autor afere-se pelo quid disputatum, i. é, pelo modo como esta pretensão se apresenta estruturada, tanto quanto ao pedido em si mesmo, como aos respectivos fundamentos.
«Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, por força do disposto no art. 211º nº 1 da CRP [e, com idêntico alcance, os arts 40º nº 1 do da LOSJ (aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26/8) e 64º do CPC], e compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, como preceitua o art. 212º nº 3 da CRP e reafirma o art. 1º nº 1 do ETAF (aprovado pela Lei 13/2002 de 19/2).
Por conseguinte, a atribuição de competência à jurisdição administrativa depende da existência de uma relação jurídica em que um dos sujeitos, pelo menos, seja ente público - da administração, actuando no exercício de um poder público, com vista à realização de interesse público legalmente definido A função administrativa compreende o conjunto de actos destinados à produção de bens e à prestação de serviços tendo em vista a satisfação das necessidades colectivas, função que é desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas integradas na Administração Pública» (Ac. do T. Conflitos de 2/10/08. p. 12/08).) - regulado por normas de direito administrativo. Por isso, cabe aos tribunais administrativos a competência material para conhecer, nomeadamente, de pedidos indemnizatórios formulados pelo autor, com vista ao ressarcimento de danos que alegue ter sofrido em resultado de conduta ilícita de uma pessoa colectiva de direito público, assumida no âmbito de tal relação e, portanto, actuando no exercício de autoridade («A relação jurídica administrativa tem sido definida como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que regulam a relação de modo diferente de correspondentes relações privadas, por incluírem um poder da parte pública ou uma sujeição especial, determinadas pela necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público. No domínio dos contratos a relação jurídica administrativa surge como aquela que extravasa da regra comum de igualdade de posicionamento e de equilíbrio das prestações, através da concessão à parte pública de poderes de conformar ou alterar aspectos da relação, em especial respeitantes à execução, que excedem do direito comum dos contratos.» (Ac. do T. Conflitos de 04-06-13, p. 29/13).).
Nos termos do art. 4° do ETAF - a disposição invocada na decisão que está na origem deste "pré-conflito" -, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público [nº 1, f)], pertencendo «à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade» (n° 2).
Este Tribunal de Conflitos pronunciou-se em acórdãos recentes, uniforme e reiteradamente, no sentido da atribuição da competência material aos tribunais da jurisdição comum em diversos autos em que os demandantes ofereceram à acção uma configuração muito idêntica à aqui exibida pelo A, ou seja, em que vinham formuladas pretensões ressarcitórias com fundamentos análogos aos alegados nos presentes, mas com a radical dissemelhança de naqueles não haverem sido demandados o Banco de Portugal e a CMVM, ao invés destes [cf. acórdãos de 22-03-2018 (p. 56/17), 22-03-2018 (p. 50/17), 17-05-2018 (p. 52/17), 07-06-2018 (p. 61/17) e 08-11-2018 (p. 20/18), acessíveis na base de dados da dgsi.pt.].
Não pode deixar de ser aqui convocada essa orientação uniforme, sob pena de se pôr em causa a relativa previsibilidade e segurança na aplicação do direito, bem como o princípio da igualdade, consagrado no art. 13° da CRP - que exige que se tenha em consideração «todos os casos que mereçam tratamento análogo» (art. 8° nº 3 do CC).

Vejamos.
Considerando o pedido do A, em si mesmo, e os respectivos fundamentos, a sua pretensão em obter a condenação de todos os RR a pagar-lhe, solidariamente, uma indemnização estrutura-se, por um lado, quanto às 1ª e 2ª RR, na obrigação decorrente da violação de deveres contratuais e da prática de factos tidos por ilícitos, enquanto em relação à 3ª R (Novo Banco SA), apenas na alegada transferência para a mesma da responsabilidade (originária) da BES SA e, por sua vez, o fundamento da responsabilidade do Fundo de Resolução (4° R) pela satisfação de tal obrigação repousaria, simplesmente, no facto de, por força da supra aludida medida de resolução adoptada pelo Banco de Portugal, ser ele o único detentor do capital do Novo Banco.
Por outro lado, o alargamento dessa suposta responsabilidade solidária ao Banco de Portugal e à CMVM (5° e 6ª RR) já se estribaria, muito diferentemente, no incumprimento dos deveres de supervisão bancária, na prestação de informações erróneas ao mercado e nos actos cometidos no contexto da resolução do BES, nomeadamente, nas deliberações adoptadas, logo em 3-08-2014 (medida de resolução) e subsequentemente.
Portanto, no caso em apreço, da análise do pedido formulado na acção e das respectivas causas de pedir resulta que o A acciona a responsabilidade civil contratual e extracontratual das 1ª a 3ª RR, pelo que o conhecimento do pedido contra estas dirigido, incidindo sobre relações inequivocamente privatísticas, compete à jurisdição comum, por não dever nem poder ser deduzido na jurisdição administrativa. Conclusão que se estendeu à 3ª R (Novo Banco SA) porque o A, embora sem a envolver na prática de qualquer dos factos ilícitos em que fundamenta a constituição da obrigação de indemnizar das duas primeiras RR, estrutura a respectiva responsabilidade na sua alegada qualidade de sucessora nos direitos e obrigações da 1ª R (BES SA).
Quanto aos demais RR, Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Fundo de Resolução, são todos pessoas colectivas de direito público, como resulta do art. 1° da Lei Orgânica do primeiro (Lei 5/98, de 31/1), do art. 1° dos Estatutos da segunda (DL 5/2015, de 8/1) e, quanto ao último, do art. 153º-B do RGICSF (DL 298/92, de 31/12, com a actualização da Lei 23-A/2015, de 26/03).
Ora, relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da acção feita pelo A, suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu e que fundam os direitos que pretende exercer - consistentes no ressarcimento de tais danos - em actos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida, se fundamentam na falta de cumprimento dos deveres - essencialmente de supervisão - que sobre eles impendiam, tendo em conta as funções determinadas pela lei.
Especificamente quanto ao Fundo de Resolução, que vem demandado, apenas, com base na titularidade do capital do «Novo Banco» - e, igualmente, sem que lhe seja imputado qualquer concreto facto ilícito -, não só essa titularidade tem origem na aludida medida de resolução bancária decretada pelo Banco de Portugal, como a sua responsabilidade apenas se poderia estribar na sua qualidade de instrumento (dependente) da entidade pública junto da qual funciona para lhe prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução pela mesma adotadas (cf. art. 153°-C do citado RGICSF), ou seja, no caso em apreço, para a execução das deliberações do Banco de Portugal concernentes à medida de resolução tomada em relação ao BES no exercício de funções públicas e na prossecução de um interesse público.
Todavia, no que concerne a este R, considerando o estritamente alegado quanto à fundamentação da sua demanda - ser ele o único detentor do capital do Novo Banco - e o uniformemente decidido nos precedentes arestos deste Tribunal, deve concluir-se que também cabe aos tribunais judiciais a competência para conhecer a pretensão deduzida contra o mesmo.
É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4° do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos (Mário Aroso de Almeida [Em "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 3ª ed., pp. 253-254] refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio».).
Como uniformemente foi ponderado nos arestos deste Tribunal precedentemente referenciados, a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513° do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária» [cit. acórdão de 22-03-2018 (p. 56/17)].
Em suma, no caso concreto, apenas em parte concordamos com o ajuizado pela Relação de Lisboa, pois a configuração da acção feita pelo A mostra que, enquanto relativamente aos 1ª a 4° RR a questão em que se funda a obrigação de indemnizar solicitada é, essencialmente e apenas, de direito privado, já quanto aos 5° e 6ª RR está em apreço uma questão emergente de uma relação jurídica administrativa, regulada por normas de direito administrativo, atributivas de prerrogativas de autoridade.

III. Decisão

Nos termos expostos, decidimos atribuir a competência, em razão da matéria, para conhecer do objecto desta acção aos tribunais judiciais, quanto a Banco Espírito Santo SA, B…………, Novo Banco SA e Fundo de Resolução, e aos tribunais administrativos, quanto a Banco de Portugal e Comissão de Mercado de Valores Mobiliários.

Lisboa, 14 de fevereiro de 2019. – António Alexandre dos Reis (relator) – José Francisco Fonseca da Paz – António Leones Dantas – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – José Inácio Manso Rainho – José Augusto Araújo Veloso.