Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:071/17
Data do Acordão:04/12/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
COIMA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Sumário:I – A fase judicial do processo de contra-ordenação não se inicia com a interposição do recurso de impugnação da decisão administrativa que aplica a coima, mas com a apresentação pelo Ministério Público dos autos ao juiz, caso em que aquela decisão se converte em acusação.
II – Atendendo à nova redacção do artigo 4º, nº 1, alínea i) do ETAF, que, nos termos do artigo 15º, nº 5 do DL nº 214-G/15, de 2/10, entrou em vigor em 01.09.2016, compete aos tribunais da jurisdição administrativa o conhecimento da impugnação judicial apresentada na câmara municipal em 31.05.2016, e remetida pelo Ministério Público ao tribunal em 19.09.2016.
Nº Convencional:JSTA000P23150
Nº do Documento:SAC20180412071
Data de Entrada:12/13/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE LISBOA OESTE, JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE SINTRA - JUIZ 3 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA, UNIDADE ORGÂNICA 3
RECORRENTE: A..., LDA
RECORRIDO: CÂMARA MUNICIPAL DE SINTRA
Recorrido 1:*
Votação:MAIORIA COM 2 VOT VENC
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos


Em 31.01.2014, A…………., Lda, com sede na Rua …………., nº ………., Mem Martins, Sintra, foi autuada por ter procedido à abertura e manter em funcionamento um estabelecimento de creche, sem que possuísse licença de utilização para essa actividade, pelo que teria cometido a contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 4º, nº 5 e 98º, nºs 1, alínea d) e 4, do DL nº 555/99, de 16/12, na redacção dada pelo DL nº 26/2010, de 30/3 [RJUE] - cfr. fls. 2.
Pela decisão do Presidente da Câmara de Sintra, de 30.05.2016, foi condenada ao pagamento de uma coima no montante de 5000,00 €, por tal infracção – cfr. fls. 81 a 83.
A arguida interpôs, em 31.05.2016, recurso de impugnação judicial, nos termos do artigo 59º do DL nº 433/82, de 27/10 – cfr. fls. 88 a 92.
Em 19.09.2016, o Ministério Público deu entrada em juízo, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Oeste – Sintra, do referido recurso de impugnação judicial de contra-ordenação, nos termos constantes de fls. 107 dos autos, aqui dados por integralmente reproduzidos.
Em 08.11.2016, a Senhora Juíza da Secção de Pequena Criminalidade declarou-se incompetente em razão do valor da coima [por o valor da coima poder variar entre € 1.500,00 e € 250,000], apenas sendo aquela instância competente para coimas de valor igual ou inferior a € 15.000,00. E determinou a remessa dos autos à Instância Local Criminal daquele Tribunal, por ser a competente, nos termos da alínea e) do nº 1 do art. 130º da Lei nº 62/2013, de 26/8 – cfr. fls. 111.
Na instância Local Criminal do mesmo Tribunal, por decisão 01.12.2016, de fls. 115 a 117 dos autos, foi decidido que o recurso de impugnação judicial era extemporâneo, atento o disposto nos artigos 59º, nº 3 e 60º do DL nº 433/82, de 27/10, rejeitando-se o referido recurso por intempestivo.
Não se conformando com esta decisão de rejeição do recurso, por intempestividade, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), conforme fls. 123 a 132.
Por acórdão de 16.05.2017, a fls. 168 a 175, o Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido a ser substituído por outro que, admitindo a impugnação judicial em questão, determinasse o seu prosseguimento.
Por despacho de 26.06.2017, a Instância Local Criminal declarou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do recurso, sendo competentes os tribunais da jurisdição administrativa, face ao disposto no art. 15º, nº 5 do DL nº 214-G/2015, de 2/10 e art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) - cfr. fls. 185/186.
Após trânsito, foi o processo remetido ao TAF de Sintra – cfr. fls. 189.
Por despacho de 31.10.2017, a fls. 191 a 194, o TAF de Sintra declarou-se incompetente para conhecer do recurso de impugnação contra-ordenacional, “uma vez que o mesmo deu entrada no tribunal criminal, onde foi introduzido pelo Ministério Público, aí foi recebido pelo tribunal criminal, aí foi decidido, nos termos supra referidos, e aí foi anulada a decisão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que o mandou admitir e prosseguir, continuando a ser competente o comum criminal de Sintra”. E, suscitou o conflito negativo de jurisdição entre o TAF de Sintra e a Comarca de Lisboa Oeste, Instância Local Criminal de Sintra, tendo a decisão transitado em julgado.

Remetido o processo a este Tribunal dos Conflitos a Exma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer a fls. 204/205, no sentido de que deverá ser considerado o TAF de Sintra o tribunal competente para apreciar o recurso.

Cumpre decidir.
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre a Instância Local Criminal de Sintra e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar a impugnação judicial apresentada pela arguida, na Câmara Municipal de Sintra, em 31.05.2016 e remetida pelo MP ao tribunal em 19.09.2016.
Entendeu a Instância Local Criminal de Sintra que, face ao disposto no art. 15º, nº 5, do DL nº 214-G/2015, de 2/10, a nova redacção do art. 4º, nº 1, al. l), do ETAF - que atribuiu aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a competência para apreciação das impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo – que entrou em vigor em 01.09.2016, tendo o processo sido remetido a juízo pelo Ministério Público em 19.09.2016, aquele tribunal criminal era incompetente, em razão da matéria, sendo competentes os tribunais da jurisdição administrativa.
Por sua vez o TAF de Sintra para onde o processo foi remetido, considerou-se incompetente, por entender que aquele tribunal criminal já se tinha considerado competente, proferindo decisão de rejeição do recurso por intempestividade, pelo que teria transitado a decisão sobre a competência não podendo ser novamente suscitada.
Ora, não é isso que resulta dos autos, conforme a marcha do processo supra indicada.
Com efeito, após o processo lhe ter sido remetido pela Secção de Pequena Criminalidade, estando em causa apenas a competência face ao valor das coimas aplicáveis, a instância criminal de Sintra apenas apreciou a questão da tempestividade da impugnação da decisão de aplicação da coima, concluindo pela extemporaneidade da mesma, por decisão de 01.12.2016. Desta decisão recorreu a arguida para o TRL que revogou tal decisão considerando tempestivo o recurso de impugnação e ordenando o prosseguimento do processo.
Só após a baixa do processo à primeira instância foi declarada a incompetência em razão da matéria dos tribunais criminais, com fundamento no art. 15º, nº 5 do DL nº 214-G/2015, pela decisão de 26.06.2017, ora em conflito.
Quer dizer, até à decisão de 26.06.2017 não havia no processo qualquer decisão que tivesse apreciado a competência do Instância Local Criminal, nem sequer por despacho tabelar, sendo certo que mesmo este despacho genérico de que “o tribunal é competente” (inexistente no caso), não faz caso julgado sobre essa matéria, por não conter qualquer fundamentação de facto e de direito, não constituindo uma verdadeira decisão judicial.
Ora, atento o disposto no art. 32º, nº 1 do 1 do C.P.Penal, aplicável ex vi do art. 41º do DL nº 433/82, a incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente, até ao trânsito da decisão final, determinando a remessa do processo ao tribunal competente (cfr. art. 33º, nº 1 do C.P.Penal).
Assim, a declaração de incompetência proferida pela Instância Criminal é tempestiva e válida, estando também em consonância com a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, quanto à data que releva para determinar o tribunal competente em razão da matéria – a data da apresentação a juízo do processo de impugnação de coima pelo MP, ocorrida, no caso em apreço, em 19.09.2016 -, face ao disposto no nº 5 do art. 15º do DL nº 214-G/2015.
Com efeito, sobre esta matéria já se pronunciou este Tribunal dos Conflitos em vários acórdãos, v.g., de 01.06.2017, Conflito nº 5/17, de 28.09.2017, Conflito nº 26/17 e da mesma data, Conflito nº 24/17 e de 11.01.2018, Conflito nº 45/17, todos no sentido de que é a introdução em juízo do feito a julgar, que corresponde à data em que os autos são apresentados no tribunal, que marca o momento em que a competência se fixa, e com a qual concordamos.
Assim, no acórdão proferido no Conflito nº 26/17 escreveu-se o seguinte:
«Nos termos do art.º 38.º, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013), a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, salvo os casos especialmente previstos na lei, sendo também irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou se lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa. Por sua vez o art.º 5.º, n.º 1, do ETAF, estabeleceu que “a competência os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”. Na ausência de qualquer regulamentação expressa no RGCO e no C.P.Penal, terá de se atender, com as necessárias adaptações resultantes da natureza do processo em causa, ao que dispõem os citados artºs. 38.º e 5.º, n.º 1 e considerar que o tribunal competente é o que teria competência no momento da propositura da causa.
A impugnação judicial da decisão administrativa que aplica uma coima é dirigida ao juiz que a irá conhecer, mas é apresentada à autoridade administrativa que proferiu essa decisão (art.º 59.º, nºs. 1 e 3, do RGCO).
Mesmo depois da apresentação da impugnação judicial, o processo continua sob a alçada da entidade administrativa, da qual pode nem sequer sair, pois esta tem a faculdade de revogar a decisão que aplicou a coima até ao momento do envio dos autos ao MP (art.º 62.º, n.º 2, do RGCO).
Após o envio dos autos pela autoridade administrativa, não ao tribunal competente, mas ao MP, cabe a este decidir se os faz presentes ao juiz, caso em que a decisão que aplicou a coima se converte em acusação (art.º 62.º, n.º 1, do RGCO) e se inicia a fase judicial do processo de contra-ordenação.
O legislador do RGCO distinguiu, assim, duas fases distintas do processo: a administrativa e a judicial. A primeira, inicia-se com a participação das autoridades policiais ou fiscalizadoras ou mediante denúncia particular, enquanto a segunda só se inicia com a apresentação, pelo MP, dos autos ao juiz, acto que tem o valor de acusação.
Nestes termos, a interposição do recurso de impugnação judicial não é um acto praticado em juízo, pois sendo apresentado perante a autoridade administrativa e aí permanecendo até que seja enviado ao MP, insere-se na fase administrativa do processo de contra-ordenação.
Por isso, tal como se entendeu no recente Ac. deste Tribunal de 1/6/2017 - Conflito n.º 05/17, é a introdução em juízo do feito a julgar, que corresponde à data em que os autos são apresentados no tribunal, que marca o momento em que a competência se fixa.
Portanto, e uma vez que, no caso vertente, o processo só entrou em juízo após 1/9/2016 são os tribunais da jurisdição administrativa os competentes para o apreciar (art.º 4.º, n.º 1, al. l), do ETAF, na redacção do DL n.º 214-G/2015).»
Assim, atendendo à data da remessa a juízo do processo de impugnação da coima é o TAF de Sintra o competente em razão da matéria para o apreciar.

Pelo exposto, acordam em julgar que a competência para a referida impugnação judicial cabe aos tribunais administrativos.
Sem custas.

Lisboa, 12 de Abril de 2018. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – António Bento São Pedro – Fernanda Isabel de Sousa Pereira – Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira (seguindo a declaração de voto de vencido apresentada pelo Senhor Conselheiro Leones Dantas) – António Leones Dantas (Vencido, com declaração de voto junta).

Conflito n.º 71/17

Não posso subscrever o presente acórdão essencialmente pelas razões que constam do voto de vencido que proferi no acórdão do processo n.º 28/17, de 20 de dezembro de 2017, disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.

Na verdade, continuo a entender que o recurso de impugnação do processo das contraordenações não tem qualquer relevo relativamente à fixação da competência para a intervenção judicial no processo das contraordenações, que, diga-se, até não se esgota nos atos que derivam da interposição do recurso.

A interposição do recurso de impugnação dá origem apenas a uma fase do processo, eventual, profundamente interligada com a chamada fase administrativa e que nada tem a ver com as ações do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais em vigor, ou com o recurso de impugnação do anterior Contencioso Administrativo.

O processo das contraordenações, tal como o processo penal que tem como direito subsidiário, nos termos do artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações, existe a partir do momento que sobre a notícia da infração a autoridade competente determina a instauração do processo.

O presente processo deveria, pois, prosseguir seus termos perante a jurisdição que já era competente antes da entrada em vigor das alterações ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de que derivou a atribuição a esta jurisdição da competência para intervir nesta área.

Lisboa, 12 de Abril de 2018.

António Leones Dantas