Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:038/14
Data do Acordão:12/09/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:HABITAÇÃO SOCIAL
RENDA APOIADA
MODIFICAÇÃO DO CONTRATO
Sumário:I – O regime da renda apoiada, previsto no DL nº 166/93, de 7/5, assenta em normas qualificáveis como de direito público.
II – Assim, visto que o litígio, tal como é configurado pela autora, carece da aplicação de normas de direito substantivo público que regulam aspectos do contrato constante do presente litígio, que são as normas do DL nº 166/93 referido, a competência para conhecer dos presentes autos subsume-se à previsão da alínea f), 2ª parte, do nº 1 do art. 4º do ETAF, cabendo à jurisdição administrativa conhecer da acção.
Nº Convencional:JSTA000P18352
Nº do Documento:SAC20141209038
Data de Entrada:07/16/2014
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES E DE COMARCA DE LOURES (2ª VARA DE COMPETÊNCIA MISTA) E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA
AUTOR: A............
RÉU: LOURES - MUNICÍPIO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

A………… intentou no TAC de Lisboa, em 17.06.2010, a presente acção que apelidou de acção administrativa comum, em que pede o reconhecimento da sua posição de arrendatária no contrato de arrendamento, do 1º andar, direito, do lote nº 24, da ………, celebrado, em 01.05.2000, no âmbito do Programa Especial de Realojamento, entre a Câmara Municipal de Loures, como primeira outorgante, e como segundos a Autora e B…………, com quem aquela, à data, vivia em união de facto.
Formula o pedido de que “venha o contrato de arrendamento a ser modificado em conformidade com a actual situação do agregado familiar”.
Em despacho saneador-sentença, de fls. 10 a 13 destes autos, veio o TAC de Lisboa a declarar a incompetência, em razão da matéria, daquele tribunal, sendo competente o Tribunal Judicial de Loures para decidir o litígio.
Transitada em julgado esta decisão foi o processo remetido ao Tribunal de Família e Menores da Comarca de Loures – 2ª Vara de Competência Mista, no qual foi proferido o despacho de fls. 14/15 dos autos, que declarou incompetente o tribunal, em razão da matéria, sendo competente o tribunal administrativo.
Este despacho também transitou em julgado, sendo suscitado a fls. 21 o conflito negativo de jurisdição, cujo conhecimento compete a este Tribunal dos Conflitos.

As partes notificadas para se pronunciarem sobre o conflito nada disseram.

A Exª Magistrada do MºPº junto deste Tribunal dos Conflitos emitiu parecer a fls. 40 e 41, no sentido de que a competência para o conhecimento da acção pertencer à jurisdição administrativa, de acordo com o disposto no art. 4º, nº 1, alínea f), 2ª parte do ETAF.

Cumpre decidir.

Em causa nos autos está o pedido de reconhecimento da posição de arrendatária da Autora no contrato de arrendamento, do 1º andar, direito, do lote nº 24, da ………, celebrado, em 01.05.2000, no âmbito do Programa Especial de Realojamento.
Tal pedido consubstancia a apreciação de questão respeitante ao parque de habitação social do Município de Loures.
No contrato de arrendamento aqui em causa (doc. de fls. 5 a 7) ficou estabelecido que:
- a renda seria calculada de acordo com o previsto no DL nº 166/93, de 7/5, actualizável nos termos previstos no mesmo diploma (cláusula 3ª);
- os segundos outorgantes – a Autora e B………… - obrigavam-se a declarar por escrito, no mês de Janeiro de cada ano, os rendimentos e composição do agregado familiar para efeitos de ajustamento da renda (cláusula 4ª);
- Em tudo o que não estivesse expressamente estabelecido no contrato, aplicava-se o previsto no DL nº 166/93 (cláusula 10ª).

Face a este enquadramento a questão aqui em causa é a de saber qual dos tribunais em conflito tem competência, em razão da matéria, para conhecer do litígio.
O art. 211º, nº 1 da CRP estabelece a regra de que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Por seu lado, o art. 212º, nº 3 da CRP delimita a jurisdição administrativa como a competente para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
E, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/20002, de 17/2, na redacção dada pela Lei nº 4-A/2003 de 19/2, no seu art. 4º, ao estabelecer a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na al. f) do seu nº 1 prescreve que “compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificadamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos de respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.
Por sua vez, o art. 66º do CPC (actual art. 64º do novo CPC) e o art. 18º, nº 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFT), aprovada pela Lei nº 3/99 de 13/01 (em vigor à data da interposição da acção), prescreve que aos tribunais judiciais cabe julgar todas as causas que não estejam especialmente atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Significa isto que, ou a competência para conhecer deste litígio está especialmente atribuída aos tribunais administrativos ou estaremos perante a competência residual dos tribunais judiciais.
Para a análise desta questão, há que referir que o problema da competência em razão da matéria de um tribunal para conhecer de um concreto litígio, se resolve tomando em conta a forma como os autores configuram a acção na dupla vertente do pedido e da causa de pedir.
Há, como tal, que analisar a forma como a aqui autora na sua petição inicial configura aqueles elementos da acção.
O pedido formulado pela autora e os respectivos fundamentos apontados têm a ver com o facto de ter cessado a co-habitação, em união de facto, entre a autora e o outro outorgante do contrato de arrendamento, sendo a autora que vem liquidando as despesas do locado, pagando as rendas, o que determina a formulação do pedido de modificação do contrato de arrendamento celebrado.
Como acima se disse, foi estabelecido pelas partes contratantes que ao contrato de arrendamento, cuja modificação se pretende, se aplica a disciplina do DL nº 166/93, em tudo o que não estiver expressamente previsto no contrato.
O DL nº 166/93 visou reformular e uniformizar os regimes de renda das habitações do arrendamento social, tendo por objecto o estabelecimento do regime da renda apoiada (cfr. art. 1º, nº 1).
O diploma não só fixou as regras técnicas da renda apoiada (cfr. art. 2º), como também, estabeleceu restrições e condicionalismos que apenas têm fundamento na função social subjacente à cedência das habitações elencadas no nº 2 do art. 1º, conferindo à Entidade locadora diversos poderes que excedem claramente os que existem nos arrendamentos de natureza jurídico-privada, como acontece com o previsto nos arts. 8º, 9º, nºs 2 e 3 e 10º, nºs 2 e 3.
Com efeito, a celebração do contrato em causa por parte do aqui réu visou a satisfação de um interesse público de proporcionar habitações a preços acessíveis a pessoas carecidas de meios para a procurar no mercado normal de arrendamento.
Daí que os termos do contrato possam ser unilateralmente alterados, nomeadamente em termos de actualização da renda, termos estes que não são permitidos aos particulares locadores. E essa aplicação deriva do interesse público subjacente à celebração dos contratos de arrendamento do referido réu.
Como se diz no acórdão de 14.03.2013, conflito 05/13, sobre o preceito do nº 2 do art. 10º, «…o decreto-lei chega ao ponto de prever a transferência dos arrendatários nos casos de subocupação das habitações sociais locadas (art. 10º, nº 2), e essa possibilidade de desunir os contratos do seu objecto corresponde a uma solução cuja excepcionalidade é típica do direito público; a qual justifica que, por extensão, enquadremos nessa área do direito a generalidade do regime do diploma».
Igualmente no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 25.09.2012, conflito nº 12/11, já se havia tomado posição no sentido de que o regime da renda apoiada, constante do DL nº 166/93, «é claramente um regime de direito público», sendo as suas normas «regras de direito administrativo» (cfr. ainda o acórdão de 05.03.2013, conflito nº 4/13).
Assim, visto que o litígio, tal como é configurado pela autora, carece da aplicação de normas de direito substantivo público que regulam aspectos do contrato constante do presente litígio, que são as normas do DL nº 166/93 referido, a competência para conhecer dos presentes autos subsume-se à previsão da alínea f), 2ª parte, do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Donde, a competência para conhecer da presente acção pertence à jurisdição administrativa.
Pelo exposto, acordam em resolver o presente conflito de jurisdição no sentido de que pertence aos Tribunais Administrativos e Fiscais a competência em razão da matéria para conhecer da acção em causa.
Sem custas.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2014. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Raul Eduardo do Vale Raposo Borges – José Francisco Fonseca da Paz – José Amílcar Salreta Pereira – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.