Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01574/20.5T8CSC.S1
Data do Acordão:01/20/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO JURISDIÇÃO
Sumário:I - Considera-se proposta quando o requerimento de injunção foi expedido para o Balcão Nacional de Injunções a acção que tenha sido distribuída no Tribunal para o qual foi posteriormente remetida e distribuída.
II - Não sendo aplicáveis as alterações introduzidas no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais pela Lei n.º 118/2019, de 12 de Setembro, é da competência dos Tribunais Tributários uma acção instaurada por uma empresa concessionária do abastecimento de água, destinada a obter a cobrança de dívidas resultantes do consumo de água ao prédio.
Nº Convencional:JSTA000P27344
Nº do Documento:SAC2021012001574/20
Recorrente:TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA-UNIDADE ORGÂNICA 2
TRIBUNAL JUD. DA COMARCA DE LISBOA OESTE – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CASCAIS-JUIZ 2
Recorrido 1:ADC - ÁGUAS DE CASCAIS, S.A
Recorrido 2:CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO SITO NA RUA .............., ... - TORRE DO PINHAL
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal dos Conflitos

Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. Em 30 de Agosto de 2019, AdC – Águas de Cascais, S.A., requereu no Balcão Nacional de Injunções uma injunção contra a Administração do Prédio……, pedindo o pagamento de € 1.118,48 (€ 879,32 de capital, € 23,95 de juros de mora vencidos, € 164,21 de despesas de cobrança e € 51,00 de taxa de justiça paga), acrescido dos juros vincendos até integral pagamento. Juntou para o efeito facturas não pagas, correspondentes ao fornecimento de água [“diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, contador padrão) instalado no mesmo prédio, ao abrigo” do contrato identificado no requerimento de injunção, “por força do qual a primeira pode facturar ao segundo o serv. de fornecimento de água prestado pela Rte ao prédio”.
Enviado o processo para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra em 18 de Dezembro de 2019, e em 9 de Janeiro seguinte por correio, por se ter frustrado a notificação do requerido, o processo foi distribuído a 10 de Janeiro de 2020.
A fls. 22, foi proferida decisão julgando “a jurisdição administrativa e fiscal e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra incompetentes, em razão da matéria, para conhecer da presente acção”, por ser da competência dos Tribunais Judiciais, por já se encontrar em vigor (desde 11 de Novembro de 2019) na data em que “os autos de injunção foram distribuídos em Tribunal ”, 10 de Janeiro de 2020, “a actual redação da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF" , segundo a qual está excluída daquela jurisdição a “apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva”.
AdC – Águas de Cascais, S.A. requereu a remessa do processo para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local de Cascais; Tribunal este que igualmente se julgou incompetente, pela decisão de fls. 33, por entender que a presente acção é da competência da “ordem administrativa e fiscal”, por força do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “quer na versão em vigor à data da celebração do contrato dos autos, quer na redação” da Lei 114/2019; “consequentemente, existe conflito de jurisdição”.
O Tribunal suscitou, assim, o conflito (negativo) de jurisdição; e o Ministério Público junto do mesmo proferiu parecer concordando com esta decisão, observando que não está em causa um litígio emergente de uma relação de consumo “mas de um acto unilateral da empresa, no exercício dos poderes públicos que lhe foram concessionados”, não excluídos da jurisdição administrativa e fiscal pela al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redacção resultante da Lei n.º 114/2019.

2. Remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, por despacho do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça foi determinado que se seguissem os termos resultantes da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.
As partes e o Ministério Público foram notificadas deste despacho; o Ministério Público pronunciou-se no sentido de a acção ser da competência dos Tribunais Judiciais, uma vez que a al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais exclui da jurisdição administrativa e fiscal os “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva”.
Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.

3. Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; dentro destes, o artigo 49º define a competência dos tribunais tributários.
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal de Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.

4. Ambos os tribunais em conflito referiram uma alteração introduzida no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” (al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, da qual veio a resultar a Lei n.º 114/2019, consta expressamente que se “Esclarece(…) que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
A Lei 114/2019 entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo.
Tratando-se de uma alteração respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal, a aplicação no tempo dessa exclusão não atinge as acções pendentes, de acordo com o disposto no artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O mesmo princípio consta, aliás, do n.º 2 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, preceito incluído no Título V, relativo aos Tribunais Judiciais, e que prevê duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente (recorde-se que no requerimento de injunção indica-se como “tribunal competente para distribuição o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra).
Interessa portanto determinar quando se considera proposta ou pendente a acção que veio a ser distribuída no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra na sequência do requerimento de injunção.
Pese embora a decisão de fls. 22 ter considerado relevante para o efeito o momento da distribuição do processo no Tribunal, 10 de Janeiro de 2020, entende-se, tal como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Março de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 30249/14.2YIPRT.G1.S1, que releva a “data em que o requerimento de injunção foi apresentado junto do Balcão Nacional de Injunções”. O Balcão Nacional de Injunções é uma secretaria judicial de âmbito nacional, destinada a “assegurar a tramitação do procedimento de injunção” (artigo 1º da Portaria n.º 220-A/2008, de 4 de Março), e essa natureza não releva para que, caso a injunção venha a resultar numa acção, se tenha como data da propositura apenas a da distribuição em tribunal, diferentemente do que sucede com o comum das acções, que se consideram pendentes “logo que seja recebida na secretaria a respectiva petição inicial” (n.º 1 do artigo 259.º do Código de Processo Civil e artigo 78.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos); o que, em caso de apresentação “por transmissão electrónica de dados”, significa a “respectiva expedição” (n.º 1 do artigo 144.º do Código de Processo Civil, ressalvado pelo citado artigo 259.º, n.º 1, aplicável nos tribunais administrativos e fiscais, artigo 23.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos). Basta pensar que a data de propositura da acção releva por exemplo para efeitos de caducidade e que a interrupção da prescrição – que em geral ocorre com a citação do réu (n.º 1 do artigo 323.º do Código Civil), se tem como verificada, se a citação não for realizada no prazo de 5 dias após ter sido requerida (após a propositura da acção), não sendo imputável ao autor a ultrapassagem desse prazo (n.º 2 do citado artigo 323.º); solução diferente poderia prejudicar o requerente/autor, que apenas controla a data em que apresenta o requerimento de injunção.
Não são pois aplicáveis as alterações que a Lei n.º 118/2019 introduziu no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, valendo portanto a versão anterior desse preceito.

5. A questão de saber se cabe na jurisdição administrativa e fiscal uma acção na qual uma empresa concessionária do serviço municipal de distribuição de água pretende a condenação de um condomínio no pagamento de dívidas respeitantes ao fornecimento de água ao prédio, “correspondente à diferença entre o total de água medido pelos conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, padrão) instalado no mesmo prédio” (requerimento executivo), ao abrigo de contrato celebrado entre ambos (cfr. fls. 16), foi já apreciada por diversas vezes pelo Tribunal dos Conflitos, que na generalidade dos casos concluiu tratar-se de questão da competência dos tribunais tributários (cfr., a título de exemplo, os acórdãos de 9/11/2010, proc. n.º 17/10, de 25 de Junho de 2013, proc. n.º 033/13, de 30 de Outubro de 2014, proc. n.º 047/14, de 13 Novembro de 2014, proc. n.º 041/14, de 4 de Novembro de 2015, proc. n.º 124/14, de 7 de Novembro de 2019, proc. n.º 021/19, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
A requerente é uma empresa concessionária do Sistema Municipal de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais do Município de Cascais, por contrato de concessão celebrado com o Município e cujas obrigações e direitos se encontram definidos pelo Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto (Regime Jurídico dos Serviços Municipalizados de Abastecimento Público de Águas, de Saneamento de Águas Residuais e de Gestão de Resíduos Urbanos), pelo contrato de concessão (disponível em aguasdecascais.pt) e pelo Regulamento dos Serviços de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais do Município de Cascais, publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 50, de 11 de Março de 2011.
Seguindo de perto o que se decidiu no acórdão de 25 de Junho de 2013, citado na decisão de fls. 33 e disponível em www.dgsi.pt, proc. n.º 033/13, está em causa uma acção que «emerge do litígio provocado pela exigência ao condomínio, pela empresa concessionária do abastecimento de água, de um preço fixo por um contador totalizador que colocou no edifício, como contrapartida do serviço. A imposição deste encargo a estes contadores reveste a natureza de questão fiscal por resultar de “resolução autoritária que impõe aos cidadãos o pagamento de uma prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas”. Igualmente a questão de saber se é devida a tarifa pela água contada por um contador totalizador colocado fora e antes do circuito dos contadores dos consumidores de um prédio em regime de propriedade horizontal releva de normas legais e regulamentares sobre a prestação deste serviço público que são normas de direito público e extravasam do regime comum dos contratos. Além disso são matérias que relevam da natureza fiscal segundo o critério que acaba de enunciar-se.
Aliás, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário parece aceitar esta competência tal como decorre do recente Acórdão de 10-04-2013, P. 015/12, onde se decidiu: “No domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que, o termo “preços” utilizado naquela Lei equivale ao conceito de “tarifas” usado nas anteriores Leis de Finanças Locais e a que a doutrina e jurisprudência reconheciam a natureza de taxas, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal”. No caso referido estava em apreciação a cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal, mas a cobrança de dívidas a uma concessionária parece poder ser vista no mesmo enquadramento e com a mesma solução, quando no Acórdão se inclui o próprio diferendo sobre o preço da água – fixado segundo regras de direito público em regime excluído da concorrência – como aspecto submetido à competência dos tribunais tributários, mesmo quando se reconhece que o concessionário não dispõe da possibilidade de recorrer à execução fiscal.
Podemos pois concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio, tal como se concluiu nos aludidos Conflitos 14/06 e 17/10, são os tribunais administrativos e fiscais através dos tribunais tributários, face ao disposto no artigo 49.º n.º 1 al. c) do ETAF.»

6. Nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o presente litígio pertence ao âmbito da Jurisdição Administrativa e Fiscal e, de acordo com a al. c) do artigo 49.º do mesmo Estatuto, é da competência dos Tribunais Tributários. Como se escreveu no acórdão de 17 de Julho de 2014, acima citado, «(…), atendendo a que este litígio assenta na exigência do pagamento de consumos de água, e demais encargos relativos à disponibilização dum contador totalizador, a questão suscitada reveste uma natureza fiscal entendendo-se como tal, “todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas”, conforme se decidiu no acórdão de 9/11/2010, proferido no conflito nº 17/10, e que seguiu a posição já antes assumida no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 26/09/2006, Processo n.º 14/06.»

7. Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, decide-se que é competente para a acção na qual é autora AdC – Águas de Cascais, S.A., e réu o condomínio do Prédio……, o Juízo Tributário Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra (artigos 50.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 19.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, artigos 1.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio).

Sem custas.

A relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STA, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa, votou favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.

Lisboa, 20 de Janeiro de 2021
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza