Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:018/18
Data do Acordão:06/07/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:CONCESSÃO DE SEPULTURA
TITULARIDADE DO ALVARÁ
Sumário:A acção que visa alterar a titularidade de um alvará de concessão de sepultura, emitido por uma junta de freguesia, por alegado erro na identificação do titular, é da competência dos tribunais da jurisdição administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P23393
Nº do Documento:SAC20180607018
Data de Entrada:03/15/2018
Recorrente:A MAGISTRADA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE VIANA DO CASTELO - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MONÇÃO E O TAF DE BRAGA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 18/18-70.

I. Relatório
1. A……, casada com B………. - identificados nos autos - intentaram no «Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo - Instância Local de Monção» acção cível, em processo comum, contra C………. e esposa D………., e E………. e esposa F………. - todos já identificados nos autos - pedindo ao tribunal o seguinte:
A) Declare que a titular da «concessão do terreno nº………, situado no talhão ………, para edificação de sepultura perpétua», que é objecto do «Alvará nº196, de 13.08.2006, da Junta de Freguesia de Pias», é a AUTORA, e, em conformidade, condene os réus a reconhecer essa titularidade e que não têm qualquer direito ou expectativa sobre essa concessão;
B) Condene os réus a reconhecer que foi a autora que pagou exclusivamente a dita concessão, para dela ser a única titular;
C) Condene os réus a assinar tudo quanto for necessário para regularizar o referido alvará junto das entidades administrativas competentes, a fim de a autora constar como sua única titular.
2. A autora, segundo decorre da petição inicial, pretende através desta acção cível «regularizar» a seguinte situação: - foi deliberado pela Junta de Freguesia de Pias [Monção], na sua reunião ordinária, mensal, de 09.07.2006, «conceder uma parcela de terreno no cemitério da freguesia, correspondente à sepultura nº………, a G…………», e, em conformidade, foi emitido o «alvará nº196 com data de 13.08.2006»; - acontece que, diz, apesar de ter sido ela, autora, a solicitar verbalmente essa concessão e a pagá-la à Junta de Freguesia de Pias, através de cheque, o dito alvará foi emitido não em seu nome, como deveria, mas em nome da sua mãe, entretanto falecida; - e por isso mesmo se geraram problemas relativamente à herança da sua mãe, pois será ela, e não a herança, a titular da concessão.
3. Os demandados contestaram, advogando o julgamento de improcedência da acção por nada haver a apontar ao «acto administrativo de concessão», e, em «reconvenção», formularam, agora em seu próprio favor, pedidos semelhantes aos deduzidos pela autora.
4. O «Tribunal Judicial» onde a acção declarativa de condenação foi intentada - Comarca de Viana do Castelo, Instância Local de Monção -, aquando do despacho saneador, julgou a jurisdição comum incompetente, em razão da matéria, para apreciar e decidir o litígio, fazendo-o com a seguinte fundamentação [folhas 21 a 24 dos autos]:
[…]
«Portanto o direito que a autora pretende fazer valer nesta acção funda-se na invalidade de um acto tipicamente administrativo, praticado pela Junta de Freguesia, pois considera que o alvará não foi devidamente emitido em seu nome.
Tanto assim é que a autora alega que se dirigiu à Junta para tentar resolver a situação, tendo-lhe sido negada a sua pretensão. Pretende agora a autora que os réus sejam judicialmente condenados a assinar tudo quanto for necessário a regularizar o acto administrativo de emissão de alvará junto das entidades administrativas competentes.
Daí que a pretensão da autora não se prenda com o acervo hereditário, mas com a validade do acto - considera que o alvará deveria ter sido emitido em seu nome a não da sua mãe.
Ora, estão em causa, portanto, actos e normas de direito público.
[…]
Donde é forçoso concluir que o conhecimento da acção e reconvenção compete aos tribunais da jurisdição administrativa.
Assim se decidiu, e entre outros, no AC do TRG de 11.09.2012, Rº29/09: «São competentes os tribunais administrativos para o conhecimento do pedido da acção e reconvenção pelos quais se pretende, reciprocamente, o reconhecimento da titularidade de direito administrativo de concessão de ocupação da parcela de terreno em cemitério e das demais pretensões que dele sejam dependentes».
[…]
O litígio em apreço cabe na previsão do artigo 4º, nº1 alíneas a) e b) do ETAF.
Assim sendo, ao abrigo dos artigos 64º, 96º alínea a), 97º nº1, 99º nº1, e 100º, todos do CPC, e 1º, nº1, e 4º, nº1, alíneas a) e b), do ETAF, entende-se que este foro não é materialmente competente para apreciar a questão, a qual, outrossim, deverá ser apreciada no Tribunal Administrativo.»
[…]
5. Remetidos os autos ao «Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga», também este se declarou incompetente, «em razão da matéria», por entender que a apreciação da mesma caberia, antes, à «jurisdição comum» [ver folhas 29 a 31 dos autos].
Fê-lo, essencialmente, com esta fundamentação:
[…]
«Ora, a competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o respectivo pedido e causa de pedir.
Face ao objecto da presente lide como vem configurado pela autora, à luz do disposto no artigo 4º, nº1, do actual ETAF, constata-se que a relação material controvertida não cai no âmbito da jurisdição administrativa.
Com efeito, ressalta da petição inicial estarmos perante caso regulado exclusivamente pela lei civil e não pelo direito administrativo, sendo patente que a autora não traz a juízo um litígio emergente de qualquer relação jurídico-administrativa, nem de qualquer contrato administrativo não estando em causa a apreciação da validade da decisão administrativa que concessionou a dita sepultura à mãe da autora e dos réus.
Importa, assim, concluir ser este Tribunal Administrativo materialmente incompetente para apreciar a presente acção, considerando-se verificada a excepção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria.»
[…]
6. Enviados os autos ao Tribunal de Conflitos, o Ministério Público requereu a resolução do conflito negativo de competência, mas não se pronunciou sobre o sentido de resolução do mesmo [folhas 2 a 5 dos autos].
7. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar, e decidir, o conflito negativo de jurisdição.

II. De facto
Com pertinência para a resolução deste «conflito negativo de jurisdição» damos como provados os seguintes factos:
1- A «petição inicial» junta a folhas 8 a 10 dos autos, instruída com 9 documentos, deu entrada na «Instância Local de Monção - Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo»;
2- Na mesma, era formulado o «pedido» e explanadas as «causas de pedir» já sintetizadas nos pontos 1 e 2 supra;
3- Em 10.07.2017 foi proferida nesse Tribunal Judicial a «sentença» certificada a folhas 20 a 24 dos autos, e aqui dada por reproduzida;
4- Remetido o processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, por este foi proferida, em 31.10.2017, a sentença certificada a folhas 28 a 31 dos autos, e aqui dada por reproduzida;
5- Ambas as referidas sentenças transitaram em julgado - folhas 20 e 28 dos autos;
6- Face ao «conflito» gerado relativamente à «competência material» para conhecer do litígio, foi ordenada pelo Ministério Público a remessa dos autos a este Tribunal de Conflitos - folhas 2 a 5 dos autos.

III. Apreciação

1. A questão colocada a este Tribunal de Conflitos reconduz-se apenas a definir se a «competência em razão da matéria» para a apreciação do litígio vertido na acção em causa caberá aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.
O «tribunal da jurisdição comum», onde a acção começou por ser proposta, e o «tribunal da jurisdição administrativa», para onde foi posteriormente remetida, arredaram reciprocamente a sua competência em razão da matéria. O primeiro, como deixamos dito, por entender que o conhecimento da matéria relativa ao litígio cabe na previsão do nº1, alíneas a) e b), do artigo 4º, do ETAF [Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redacção dada pelo DL nº214-G/2015, de 02.10]. O segundo, por entender que, atenta a forma como a autora configura a sua pretensão, não nos encontramos perante situação enquadrável nessas alíneas ou quaisquer outras, pois está em causa um litígio regido exclusivamente pela lei civil.
2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo [artigo 202º da CRP], sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e actual 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e aos tribunais administrativos a competência para julgar as causas «emergentes de relações jurídicas administrativas» [artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].
Assim, na sequência das normas constitucionais e legais, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais, ou da chamada jurisdição comum assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95].
A cada uma destas duas jurisdições, comum e administrativa, caberá, portanto, um determinado «quinhão» do poder jurisdicional que, em bloco, pertence aos «tribunais», sendo que o mesmo é determinado essencialmente em função das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional.
E, como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].
A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].
3. No presente conflito, o tribunal da jurisdição comum arredou a competência da respectiva jurisdição fazendo apelo às alíneas a) e b) do nº1 do artigo 4º do ETAF. É o seguinte o teor destas normas:
Artigo 4º do ETAF - Âmbito da jurisdição
1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
[…]
Por seu lado, o tribunal administrativo declarou-se materialmente incompetente por exclusão, isto é, porque o caso em juízo não cabe em quaisquer das normas do nº1 do artigo 4º do ETAF, e porque se lhe aplicam exclusivamente «normas civis».
Vejamos.
4. Não há dúvida de que neste litígio o alvará de concessão da sepultura nº..., que formaliza a respectiva deliberação da Junta de Freguesia, constitui o acto jurídico central.
A autora entende que ele está errado, na medida em que tem como titular da concessão a sua mãe, ora já falecida, e não ela própria, que foi «quem solicitou verbalmente» e «pagou através de cheque» a referida concessão.
Os réus, seus irmãos - e cunhadas - nele assentam a sua «reconvenção», uma vez que defendem que a «concessão da sepultura» integra o acervo hereditário da mãe, não sendo direito individual da autora, sua irmã.
Esta, em vez de impugnar esse acto administrativo, nomeadamente com base em erro nos pressupostos de facto, e, talvez, porque já não o pudesse fazer, optou por pedir em juízo a condenação dos demandados «a assinar tudo quanto for necessário para regularizar o dito alvará junto da entidade competente» com base no reconhecimento do erro alegadamente ocorrido.
Que se trata de um «acto administrativo» está fora de questão, pois é firme na nossa jurisprudência o entendimento de que os cemitérios, sob a jurisdição das freguesias ou municípios, são bens do domínio público da respectiva autarquia, e a existência de direito dos particulares ao uso privativo de parcela desse bem depende da prévia concessão da administração, titulada por «alvará», estando fora do comércio jurídico privado. E essa concessão, quando consubstancia um acto da administração autárquica é, sem dúvida, um «acto administrativo».
Ressuma, assim, que tanto da parte da autora como dos reconvintes existe a pretensão de tutelar um direito nascido de uma relação jurídica administrativa: - aquela porque se julga a sua única titular; - estes porque entendem que a sua actual titular é a herança da sua mãe.
O litígio cabe, pois, por inteiro, na citada alínea a) do nº1 do artigo 4º do ETAF, conforme entendeu o tribunal da jurisdição comum onde a acção começou por ser intentada. Mas já não na também citada alínea b), desse mesmo número e artigo, como ainda entendeu esse mesmo tribunal, já que não estamos perante qualquer «fiscalização da legalidade» de normas ou actos jurídicos.
É claro que a resolução deste conflito, tal como se mostra desenhado, andará à volta da averiguação judicial da vontade real subjacente ao acto administrativo de concessão da sepultura nº....... do cemitério de Pias, mas não deixa de ter este «acto administrativo» como seu princípio e como seu fim.
5. Resulta do exposto, que este conflito negativo deverá ser resolvido mediante a atribuição da competência material aos tribunais da jurisdição administrativa, e, no caso, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

IV. Decisão
Nestes termos, decidimos o presente «conflito de jurisdição», atribuindo aos tribunais da jurisdição administrativa a competência, em razão da matéria, para conhecer do objecto desta acção.

Sem custas.

Lisboa, 7 de Junho de 2018. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Graça Maria Lima de Figueiredo Amaral – José Francisco Fonseca da Paz – Manuel Pereira Augusto de Matos – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Francisco Manuel Caetano.