Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:030/12
Data do Acordão:12/11/2013
Tribunal:CONFLITOS
Relator:COSTA REIS
Descritores:HABITAÇÃO SOCIAL
ARRENDAMENTO
RENDA APOIADA
DEPÓSITO
IMPUGNAÇÃO
Sumário:I – O regime da renda apoiada, previsto no DL n.º 166/93, de 7/5, assenta em normas qualificáveis como de direito público.
II – Assim, e «ex vi» do art. 4º, n.º 1, al. f), do ETAF, cabe à jurisdição administrativa conhecer da acção em que um município impugne o depósito da renda, promovido pela sua arrendatária de uma habitação social, se essa impugnação se fundar no facto da renda devida diferir da depositada por ser calculável segundo o regime dito em I.
Nº Convencional:JSTA000P16736
Nº do Documento:SAC20131211030
Data de Entrada:12/20/2012
Recorrente:MUNICÍPIO DE FARO NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 1 JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE FARO E O TAF DE LOULÉ
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:

O Município de Faro intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, acção administrativa comum, contra A………………, pedindo que fosse “julgado improcedente e ineficaz para qualquer efeito jurídico, nomeadamente para efeito de extinção da obrigação de pagamento da renda devida pelo Réu ao Autor, o depósito de que o Réu notificou o autor em 10.10.2011, bem como todos os subsequentes que o Réu vier a efectuar nesse montante, ou em qualquer outro montante distinto do reclamado pelo Autor, bem como ser o Réu condenado a pagar ao Autor a renda actualizada devida, nos termos que lhe foi comunicado em 28.07.2011, acrescida das penalidades legalmente devidas pela falta de pagamento pontual das rendas devidas, sendo com esse alcance mandado completar os depósitos, acrescendo a tudo isto ainda a condenação nas custas e demais encargos a que houver lugar.”
Para tanto, e em síntese, alegou ser proprietário do imóvel dado de arrendamento ao Réu para fins habitacionais e que, na sequência da sua deliberação de 26/01/2011, este foi notificado para proceder à entrega da documentação necessária ao apuramento da actualização da renda devida, e após esse apuramento notificou-o para proceder ao pagamento da nova renda, no montante de 169,20 euros.
O Réu não pagou essa quantia, tendo depositado à ordem do Tribunal Judicial de Faro a renda no valor de 5,99 euros.

O TAF de Loulé julgou-se incompetente, em razão da matéria, para o conhecimento do pleito e, por razões opostas, igual pronúncia negativa emitiu o Tribunal Judicial de Faro, para onde o processo foi entretanto remetido.
Como ambas as decisões transitaram, depara-se-nos um conflito de jurisdição, a resolver por este Tribunal dos Conflitos que cumpre resolver. (art.ºs 115º e 116º do CPC).

O Ex.mo Magistrado do M.º P.º junto do Tribunal dos Conflitos emitiu parecer no sentido de se deferir à jurisdição administrativa a competência para o conhecimento da acção.

Como decorre do antecedentemente exposto a questão que importa resolver é a de saber qual dos Tribunais em conflito tem competência, em razão da matéria, para conhecer e decidir o litígio descrito nos autos.
Trata-se de questão já abordada e decidida neste Tribunal por diversas vezes pelo que nos limitaremos a acompanhar o que tem sido dito:
Escreveu-se no Acórdão de 30/05/2013 (conflito n.º 22/13):
A competência «ratione materiae» para o conhecimento dos processos alcança-se pelo «petitum», esclarecido ou iluminado pela respectiva «causa petendi». «In casu», o pedido é o de impugnação de um depósito de rendas; o qual, segundo a petição, arranca de um litígio entre as partes sobre o «quantum» da renda realmente devida, pois o autor diz que o contrato de arrendamento que as une segue o regime da renda apoiada, razão por que reclama do réu uma renda superior à contratualmente definida e depositada, enquanto o réu recusa que a nova renda lhe seja exigível.
Nos termos do art. 66.º do CPC, os tribunais comuns serão competentes para conhecer da presente causa se essa competência não estiver deferida à jurisdição administrativa. E, na medida em que o litígio versa sobre a execução de um contrato de arrendamento, os tribunais administrativos serão os competentes para resolver o pleito se, e somente se, este se enquadrar nalguma das hipóteses previstas nas als. e) e f) do n.º 1 do art. 4º do ETAF.
A aplicabilidade dessa al. e) é imediatamente de afastar, já que nada foi dito na petição sobre a existência de um procedimento pré-contratual de selecção do réu, como arrendatário. Por outro lado, é claríssimo que o caso não se inscreve nas 1.ª e 3.ª hipóteses contempladas naquela al. f): pois o contrato de arrendamento «sub specie» não tem «objecto passível de acto administrativo» e nada mostra ou sugere que as partes o «tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».
Sendo assim, a jurisdição administrativa só poderá ser a competente para julgar a acção dos autos se o litígio couber na 2.ª hipótese do art. 4º, n.º 1, al. f), do ETAF, ou seja, se houver «normas de direito público que regulem aspectos específicos» do «regime substantivo» do invocado contrato de arrendamento – «aspectos» esses que hão-de referir-se ao apuramento da renda devida.
Avulta aqui, como já dissemos, o modo como a acção vem apresentada. Na óptica do autor, o contrato de arrendamento firmado com o réu – em 2009 e segundo o regime da renda apoiada (cfr. documento de fls. 6 e ss.) – obteve a sua submissão a esse regime (constante do DL n.º 166/93, de 7/5) pela emergência do Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro (publicado, por extracto, no DR, II Série, de 16/7/2010, por referência ao projecto respectivo, constante da II Série do DR de 11/3/2010). Portanto, o autor reportou à vigência desse regulamento e à observância de certas diligências que nele adrede se previram a vinculação do contrato ao regime da renda apoiada, previsto no DL n.º 166/93, de 7/5; o que também mostra que o autor abdicou de invocar o clausulado contratual ou o art. 1º, n.º 2, do DL n.º 166/93, de 7/5, com vista a obter uma filiação, «ab origine», do arrendamento nesse regime. Seja como for, o que decisivamente nos importa é constatar que a acção parte da ideia de que o contrato agora se rege pelo DL n.º 166/93; de modo que será à luz desse diploma que se haverá de decidir da bondade da tese do autor – segundo a qual o depósito não é liberatório em virtude da renda devida diferir da depositada por ser calculável segundo o regime do DL n.º 166/93.
Ora, este DL n.º 166/93 versa sobre um pormenor do chamado «arrendamento social», submetendo-o ao «regime de renda apoiada» (art. 1º, n.º 1). E, dado o que «supra» referimos, é decisivo apurar se as definições desse «regime» – cuja aplicabilidade ao caso é pressuposta na petição inicial – correspondem, ou não, a «normas de direito público».
Essa tarefa passa pela distinção entre normas imperativas, que não descaracterizam a natureza privatística dos negócios a que se imponham, e «normas de direito público», já aptas a incluir as relações jurídicas sobre que versem num domínio propriamente administrativo. «In abstracto», as primeiras correspondem, «grosso modo», a uma função reguladora dos negócios privados, enquanto as segundas vão muito para além disso, cumprindo uma função dirigista e interveniente, inclinada a assegurar imediatamente certos fins públicos. Mas a distinção, «in concreto», entre umas e outras é, por vezes, muito árdua.
E, «in casu», justifica-se a dúvida sobre se as normas do DL n.º 166/93 constituem um regime meramente imperativo, imposto, «ab extra», a negócios de cariz ainda privado – aliás, à semelhança de tantas outras regras que enquadram os arrendamentos vinculísticos; ou se elas se assumem como um autêntico regime de direito público – cuja existência, note-se, tenderá então a impregnar de igual natureza os contratos a que tais normas se refiram.
Ora, este Tribunal dos Conflitos, por acórdão de 25/9/2012 (proferido no conflito n.º 12/11), já tomou posição sobre o assunto; pois disse que o regime da renda apoiada, constante do DL n.º 166/93, «é claramente um regime de direito público», sendo as suas normas «regras de direito administrativo». E não vemos razões para nos apartarmos desta jurisprudência. Não tanto pelas finalidades públicas que o diploma inegavelmente prossegue, já que elas, por si sós, poderiam constituir uma regulação compaginável com a índole privada dos negócios. Mas porque o decreto-lei chega ao ponto de prever a transferência dos arrendatários nos casos de subocupação das habitações sociais locadas (art. 10º, n.º 2), e essa possibilidade de desunir os contratos do seu objecto corresponde a uma solução cuja excepcionalidade é típica do direito público; a qual justifica que, por extensão, enquadremos nessa área do direito a generalidade do regime do diploma.
Portanto, o caso dos autos subsume-se à 2.ª hipótese constante do art. 4º, n.º 1, al. f), do ETAF, pois o desfecho da acção, tal e qual o autor a apresenta, pressupõe a aplicabilidade de «normas de direito público» reguladoras de «aspectos específicos» do «regime jurídico» do arrendamento em questão – «aspectos» esses ligados ao apuramento da renda exigível. Pois é precisamente isso – a determinação se a renda devida é a reclamada pelo autor ou a depositada pelo réu – o que se irá discutir na lide. Aliás, o Tribunal dos Conflitos já teve a oportunidade de, em casos similares, decidir neste mesmo sentido («vide», v.g., o acórdão de 14/3/2013, proferido no conflito n.º 5/13).
Donde se conclui que compete à jurisdição administrativa o conhecimento do presente pleito.

Neste sentido, entre vários outros, vd. Acórdão de 4/06/2013 (conflito n.º 7/13), de 25/09/2012 (conflito n.º 12/11) e de 5/03/2013 (conflito n.º 4/13).
Nestes termos, os Juízes que compõem este Tribunal acordam em julgar a jurisdição administrativa competente, em razão da matéria, para o conhecimento desta acção.
Sem custas.
Lisboa, 11 de Dezembro de 2013. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – António Leones DantasAntónio Bento São PedroMaria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Ana Paula Lopes Martins Boularot.