Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:048/18
Data do Acordão:05/23/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24590
Nº do Documento:SAC20190523048
Data de Entrada:11/02/2018
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO ESTE - PAREDES - J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE PENAFIEL
AUTOR: A..................
RÉU: MUNICÍPIO DE PAREDES
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos
Conflito n° 48/18


1. Em 18.12.2015, A……………….. instaurou a presente ação declarativa com processo comum contra o Município de Paredes, pedindo a condenação do réu a:

a) Reconhecer o A. como único dono e legítimo proprietário do prédio urbano identificado na petição inicial;

b) Reconhecer o A. como único dono e legítimo proprietário da parcela identificada nos arts. 11º, 12º e 13º, da petição inicial;

c) No prazo de 15 dias, desocupar e restituir ao A. a parcela com cerca de 371,25m2 do imóvel referido e a repô-lo no estado em que se encontrava anteriormente, destruindo para tal, a suas expensas, a rua e tudo o mais que nele ilicitamente abriu, mandou abrir, construiu ou mandou construir;

d) Pagar ao A. uma sanção pecuniária compulsória de €500,00, por cada dia de atraso no cumprimento da ordem de restituição e reposição acima referida;

e) Pagar ao A. a quantia de €5.000,00, pela privação do uso do prédio desde meados de 2013 até à presente data, bem como juros à taxa legal anual de 4% desde a citação até efetivo pagamento;

f) Pagar ao A. a quantia de €5.000,00, pelos danos não patrimoniais sofridos, bem como juros à taxa legal anual de 4% desde a citação e até efetivo pagamento.


Subsidiariamente, para o caso de não proceder o pedido principal, formulado sob as alíneas b) e c), pediu a condenação do réu a:

a) Pagar ao A. o valor venal da parcela à data da sua ocupação com a rua descrita em 11º, 12º e 13º desta P.I., valor esse a liquidar em execução de sentença;

b) Pagar ao A. o valor da desvalorização para a totalidade do prédio decorrente da perda total ou parcial da sua capacidade edificativa, valor esse a liquidar em execução de sentença.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

O R., sem autorização ou conhecimento do A., ocupou uma parcela de terreno do prédio identificado na p.i., de que o autor é proprietário, visando a construção de uma Estrada Municipal.

Sempre o autor e seus antepassados, há mais de 20/30 anos, de forma contínua, pacífica, e sem qualquer oposição, extraíram do prédio em causa todas as suas utilidades, colhendo frutos, realizando obras, pagando as contribuições e impostos, convictos de estar a exercer os poderes inerentes à sua qualidade de proprietários.

Devido à atuação ilícita do R., o autor encontra-se impedido de dispor da parcela de terreno ocupada, designadamente de ali construir uma moradia, cujo licenciamento já havia sido concedido.

Por outro lado, ao dividir o prédio em duas parcelas, o imóvel perdeu a sua capacidade edificativa, sofrendo a consequente desvalorização.

Mais alegou ser a jurisdição comum competente em razão da matéria para conhecer da causa, uma vez que o R. agiu numa posição idêntica à de qualquer particular, ou seja sem estar imbuído de jus imperii.

2. O R. contestou. Em breve síntese, e no que agora releva, alegou que o prédio de que o autor se arroga proprietário, é afinal um caminho público vicinal que integra o domínio público da freguesia de Cête, sendo gerido e administrado pela respetiva Junta de Freguesia.

3. Seguidamente, foi proferida decisão pela Instância Local de Paredes que, julgando verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta, declarou aquele tribunal incompetente em razão da matéria e absolveu o R. da instância, ordenando a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, por ser o competente.

Como fundamento do decidido argumentou-se que "a nova alínea i), do nº 1, do artigo 4º, do ETAF atribui competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo."

4. Recebidos os autos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, foi, no entanto, proferido despacho a declarar a incompetência em razão da matéria da jurisdição administrativa, absolveu-se, consequentemente, o R. da instância.

Entendeu-se, nesta decisão, que, pedindo o autor que seja declarado como proprietário do imóvel identificado na ação, e, em consequência, a condenação do réu a reconhecer o seu direito de propriedade e a restituir o imóvel em causa, livre de pessoas e bens, se está perante uma ação real, cuja apreciação compete ao tribunal cível.

Considerou-se, ainda, que a norma contida na alínea i), do nº 1, do art. 4º do ETAF/2015 não afasta a competência dos tribunais judiciais para apreciar e decidir as ações de reivindicação de imóveis previstas no art. 1311º do CC, ainda que o Réu seja uma entidade pública.

Finalmente, argumentou-se que, como tem sido decidido pelo Tribunal dos Conflitos, o facto de se pedir a condenação do réu no pagamento de uma determinada quantia, a título indemnizatório, não altera a natureza da ação.

5. Foi, então, determinada a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos, nos termos dos arts. 109º, nº2 e 111º, nºs 1 e 3, do CPC.

6. O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido da atribuição da competência à jurisdição administrativa, ao abrigo da nova alínea i), do art. 4º, nº1, do ETAF/2015.

7. Cumpre, agora, apreciar e decidir, sendo os factos essenciais a considerar para a decisão este conflito, os que constam do relatório.

Apreciando.

8. Sendo a competência dos tribunais judiciais residual, no sentido de que apenas lhes compete julgar as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional (cf. art. 211º, nº1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), art. 40°, nº 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e o art. 64° do CPC) há que determinar, em primeiro lugar, os casos em que a competência pertence aos tribunais administrativos, tendo presente que, de acordo com o disposto no art.º 38.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e no art. 5º, do ETAF, a competência se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.

Para este efeito, é decisivo o critério constitucional plasmado no art. 212º, nº3 da CRP segundo o qual "compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais".

Por sua vez, a nível infraconstitucional, atenta a data da propositura da ação (isto é, 18.12.2015), o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal encontrava-se fixado no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei nº13/2002, de 19 de Fevereiro, na redação conferida pelo DL nº 241-G/2015, de 2 de outubro, em cujo art. 1°, nº1 se dispõe que:

"Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4° deste Estatuto.".

Por sua vez, "na sua versão de 2002, o artigo 4.º do ETAF encontrava-se estruturado enquanto enunciação exemplificativa dos litígios cuja apreciação competia aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal. Aliás, tal enumeração encontrava-se fielmente suportada no advérbio "nomeadamente", contendo o n.º 1 do artigo 4.º do ETAF o elenco não exaustivo das matérias sujeitas à jurisdição dos tribunais administrativos.

(...)

Com a alteração promovida em 2015, o artigo 4.º n.º 1 do EFAF encontra-se agora estruturado como se de uma enumeração taxativa se tratasse, ainda que esta natureza de elenco fechado seja meramente aparente, por força da "cláusula aberta" constante da alínea o), determinando a extensão da jurisdição às "relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores "

(...)

No entanto, tendo o condão de facilitar a "vida" ao intérprete e aplicador do direito, o artigo 4.º continua a ser meramente concretizador da delimitação constitucional da jurisdição administrativa assente no conceito de relação jurídica administrativa e fiscal, pelo que, em boa verdade, o Tribunal de Conflitos não verá o seu trabalho reduzido." (Jorge Pação, Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, AAFDL, 2ª edição, 2016, págs. 186-188.)

Pois bem.

Com a Reforma de 2015, a al. i), do nº 1, do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a "condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime".

Sem entrar agora na análise das origens e da evolução do instituto (Cf., por todos, Carla Amado Gomes, Contributo para o Estudo das Operações Materiais da Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra Editora, 1999, páqs. 298-345. Na jurisprudência, cf. o ac. do STJ de 5.2.2015, proferido no proc. nº742/10.2TBSJM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), pode, no essencial, afirmar-se que a "via de facto" corresponde a uma atuação material da Administração que, sem base legal (Designadamente por ausência de atos jurídicos anteriores que legitimem essas operações materiais ou em que esses atos jurídicos são juridicamente inexistentes - v. Jorge Pação, ob.cit., pág. 194-195.),ofenda, de forma grave e manifesta, uma liberdade fundamental ou um direito de propriedade.

Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que "o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i), do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime.” (V. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259.)

Defendendo a solução legal, agora consagrada no CPTA e no ETAF, explicava Vieira de Almeida (ln «"A Via de Facto", perante o juiz administrativo» comentário ao ac. do TCAS, de 22.11.2012, processo 5515/09, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 104, março/ abril de 2014, pág. 44. ) que a «via de facto», enquanto atuação material manifestamente ilegal de um órgão da Administração, não deixa de ser uma atuação no âmbito do direito público, tal como o é uma atuação jurídica portadora de uma ilegalidade tão grave que implique a inexistência do ato ou a sua nulidade. Por isso, dizia aquele autor, não se pode afirmar que a «via de facto» coloca a Administração numa posição idêntica à do simples particular por ficar desprovida da posição de supremacia em que se encontra na atuação ilícita.

Não obstante, atendendo à configuração normativa da alínea i) do nº1, do art. 4°, e como assinala Jorge Pação (Ob. Cit., páqs. 194-198.), podem colocar-se dúvidas sobre se a competência dos tribunais administrativos está apenas prevista para as situações em que a Administração exerce operações materiais sem que exista decisão administrativa prévia que a sustente, ou se são também situações de “via de facto” os casos em que esses atos jurídicos foram praticados e são juridicamente existentes mas que padecem de uma ilegalidade gravosa (v.g. indiscutível nulidade do ato de declaração de utilidade pública), bem como os casos em que a lei não outorga à entidade administrativa qualquer atribuição ou competência na matéria.

Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma "apropriação irregular", cuja diferença face à "via de facto" é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos.

Mas as dúvidas não se ficam por aqui.

Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i), do art. 4º, nº 1, do ETAF abrange, ou não, as ações reais, como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito invocado pelo autor.

Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9° do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº2).

Atente-se ainda que, conforme se determina naquele dispositivo legal, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº3).

Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.
Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.


É esta, aliás, a posição de Carla Amado Gomes (Cf. "Temas e problemas da justiça administrativa", AAFDL, 2018, páqs. 39-56 e ''Via de facto e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título", in Revista do Ministério Público nº 15º Abril/ Junho, 2016, páqs. 89-109.)ao defender que a competência da jurisdição administrativa para o conhecimento das situações de ocupação, sem título, de imóveis pela Administração, em 'via de facto' - que já se verificava antes de 2015 e que a alteração legislativa só veio reforçar (por se estar, ainda, perante autuações materialmente administrativas da Administração) - não prejudica a competência dos tribunais judiciais para os casos em que a questão da titularidade do bem for controvertida.

Dito isto.

Sendo pacífico que a competência em razão da matéria é fixada em função do pedido e da causa de pedir, irrelevando, neste plano (Cf. entre muitos, os acórdãos deste Tribunal de 26.1.2017, preferido no proc. nº 052/14 e o acórdão proferido, também neste Tribunal, em 30.11.2017 no proc. nº 011/17, disponíveis em www.dgsi.pt),o juízo de prognose que se possa fazer relativamente ao mérito da causa, é de concluir que a relação material controvertida, tal como é caracterizada pelo autor, não se inscreve em nenhuma das alíneas do nº1, do art. 4º, do ETAF, muito particularmente na alínea i).

Com efeito, a matéria alegada pelo autor visa, em primeira linha, alicerçar o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel e a condenação do R. na sua restituição. Por sua vez, o R. alega que o terreno em causa integra o domínio público, para, por esta via, justificar a ocupação.

Estamos, assim, perante uma típica ação de reivindicação (cfr. art. 1311º do Cód. Civil), pelo que a competência para apreciar a pretensão do autor, cabe aos tribunais judiciais, e não à jurisdição administrativa (art. 64° do CPC). (Neste sentido, cf. o ac. deste Tribunal dos Conflitos, de 13.12.2018, proc. 43/18, disponível em www.dgsi.pt.)

9. Nestes termos, acorda-se em julgar competente em razão da matéria para a presente ação o Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Paredes, Instância Local, Secção Cível.

Sem custas (art.º 96.º do Decreto n.º 19243 de 16.01.1931).

Lisboa, 23 de Maio de 2019. – Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (relatora) – António Bento São Pedro – Rosa Maria Mendes Cardoso Ribeiro Coelho – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Carlos Manuel Rodrigues de Almeida – Carlos Luís Medeiros de Carvalho.