Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:08372/19.7T8STB.E1.S1
Data do Acordão:01/18/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Cabe à jurisdição administrativa a apreciação de uma acção instaurada contra o Estado na qual as autoras pedem a resolução de um contrato de compra e venda com fundamento na falta de afectação do prédio vendido à finalidade de interesse público que o justificou, a promoção do desenvolvimento urbano-industrial da zona e que sempre permitiriam ao adquirente público o recurso à via da expropriação.
Nº Convencional:JSTA000P29065
Nº do Documento:SAC2022011808372
Recorrente:A...............
B.................
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 23 de Dezembro de 2019, AA e BB intentaram no Tribunal da Comarca de Setúbal uma ação declarativa de condenação, com processo comum, contra o Estado Português, formulando o seguinte pedido:
“(…) deve a acção ser julgada procedente por provada, em consequência:
a) Devendo declarar-se como não verificada a afectação do imóvel ao fim a que se destinava e que determinou a outorga da escritura de 19 de Fevereiro de 1976;
b) Devendo decretar-se verificada a condição resolutiva constante do clausulado da escritura de compra e venda e determinada a destruição retroactiva do negócio, devendo ser fixado prazo para, antes da sentença, ser depositado o preço recebido de acordo com o princípio nominalista e o réu condenado a restituir o prédio às autoras - cf. doc. 8.
c) Devendo ainda decretar-se sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no depósito do preço e na restituição do prédio às autoras;
d) Subsidiariamente, quando assim eventualmente se não entenda, devendo considera-se existir incumprimento da obrigação constante do clausulado da escritura, sendo decretada a resolução do negócio, pelo que, não sendo legalmente possível a restituição, deve o réu ser condenado a pagar às autoras a quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença correspondente ao valor actualizado do prédio, por ser impossível determinar de imediato esse valor - cf. doc. 8;
e) Subsidiariamente e quando assim também eventualmente se não entenda, devendo considerar-se existir alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, sendo igualmente decretada a resolução do negócio, pelo que, não sendo legalmente possível a restituição, deve o réu ser condenado a pagar às autoras a quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença correspondente ao valor actualizado do prédio, por ser impossível determinar de imediato esse valor - cf. doc. 8;
f) O R. condenado a pagar as custas.”.

Alegaram para o efeito, e em síntese, assistir-lhes, na qualidade de “únicas e universais herdeiras de CC e DD”, “tendo esta morrido no estado de viúva de CC” o direito à resolução do contrato de compra e venda do prédio misto identificado nos autos, que aqueles venderam, em 19 de fevereiro de 1976, ao extinto Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines (GAS): “(…) seja qual for a interpretação que se dê à cláusula que estipulou na escritura de compra e venda destinar o bem vendido para a instalação de um complexo industrial que o comprador nunca realizou, a mesma determina sempre a resolução do contrato por parte dos vendedores”.
O Ministério Público contestou, em representação do Estado Português, excecionando a sua ilegitimidade e a incompetência material da jurisdição comum para conhecer da causa, que considera dever ser atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa.
Sustentou, em suma, que o contrato foi celebrado no âmbito dos poderes discricionários do GAS, na medida em que, se os vendedores não tivessem concordado com a venda, o GAS desencadearia a expropriação do prédio.
Por fim, impugnou os factos alegados pelos autores.
As autoras responderam às excepções, defendendo, além do mais, que as partes celebraram o contrato no estrito domínio da liberdade contratual, sem que o GAS interviesse no exercício de poderes de autoridade e sem que o preço acordado possa ser equiparado a uma indemnização no âmbito de um processo de expropriação. Reafirmaram, assim, a competência material dos tribunais judiciais para a decisão do litígio dos autos.
O Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Central Cível de Setúbal – Juiz 3, dispensou a realização de audiência prévia e proferiu despacho saneador-sentença, em 29 de Setembro de 2020, julgando verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, declarando-se incompetente em razão da matéria para apreciar o mérito da ação e atribuindo a competência aos tribunais administrativos.
Para tanto, concluiu que o prédio em causa foi adquirido no exercício das competências administrativas do GAS, no desenvolvimento de uma relação jurídica administrativa com os particulares, uma vez que “se os antecessores das AA não tivessem concordado com a venda, o gabinete desencadearia ou poderia desencadear a respetiva expropriação, o que tem subjacente os poderes de autoridade atribuídos, com possibilidade de imposição de restrições interesse público”.
As autoras interpuseram recurso para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão de 9 de Setembro de 2021, manteve o despacho recorrido, considerando estarmos “perante um contrato administrativo por natureza, que se integra na categoria de contratos administrativos prevista no art. 280.º, n.º 1, al. b), 1.ª parte do CCP: «contrato com objeto passível de ato administrativo»; logo, sujeito ao regime do Direito Administrativo”.
Daquele acórdão da Relação ... vieram os autores interpor recurso para o Tribunal dos Conflitos.

2. Nas alegações que apresentaram, os recorrentes formularam as seguintes conclusões (transcrevem-se as que interessam ao julgamento do presente recurso):
“(…) 6.ª. Não podem as recorrentes conformar-se com tal decisão do Tribunal da Relação ...] por entenderem que a mesma resulta de deturpada subsunção dos factos aos normativos aplicáveis, designadamente os artigos 1.º e 4,º do ETAF e dos artigos 60.º, n.º 2, 64.º e 54.º do Código de Processo Civil;
7.ª Pois que os fins e a natureza da escritura de compra e venda do prédio referida nos autos em momento algum se equipara a uma relação do foro administrativo;
8.ª Tendo as partes actuado livres na sua vontade e munidas de total liberdade de estipulação, o G.A.S. querendo comprar e os vendedores querendo vender. Foram livremente estipuladas as cláusulas da escritura e foi livremente estipulado o preço;
9.ª O que não aconteceria no âmbito de uma relação administrativa na qual uma das partes actua na prossecução de interesses públicos podendo impor a sua vontade.
10.ª Na escritura de compra e venda em crise não houve qualquer expropriação não houve pagamento de indemnização, assim como não houve actuação do G.A.S. munido de ius imperii,, sendo a escritura outorgada em cartório notarial;
11.ª As partes adoptaram uma estrutura para a forma de transmissão de propriedade – vulgar escritura de compra e venda – e não escritura lavrada perante notário privativo do G.A.S. ou de outro ente público, sendo todo o conteúdo da escritura um negócio jurídico de direito privado não havendo em momento algum invocação de normas jurídico-administrativas para a sua celebração;
12.ª Não se verificaram os trâmites da expropriação amigável, previstos no artigo 33.º do Código das Expropriações e manifestamente distintos das aquisições celebradas ao abrigo de Direito Privado e previstas no artigo 11.º do mesmo Código, caracterizada, a primeira, por acta de investidura judicial o qual apenas teria lugar após a celebração da escritura e depois de junto pelo expropriante o depósito do montante da indemnização, cujo pagamento não seria assim contemporâneo da escritura, como foi no caso dos autos;
13.º As declarações das partes, que, reitere-se, foram, de celebração de negócio jurídico de natureza privada, exprimem a sua vontade real, conforme aliás preceituado pelo artigo 238.º do CC;
14.º Nenhuma regra de Direito Administrativo é convocada para decidir o litígio, tal como os Recorrentes, AA da acção, configuram a causa de pedir (cfr. p.i.);
15.ª O facto de ser o extinto GAS entidade pública não significa nem altera o facto de o negócio jurídico entre as partes outorgado – escritura pública de compra e venda – ser negócio jurídico de direito privado;
16.ª Sendo toda a matéria que lhe subjaz igualmente de Direito Privado não podendo ser dirimida através de normas de Direito Administrativo, pois não foram tais normas que nortearam a sua outorga;
17.ª Ademais, a expropriação era subsidiária à celebração de escrituras de compra e venda, nos termos dos artºs 3.º/1. Al. j) e 36.º do D.L. 270/71 (…);
(…) 21.ª Mais acresce que tem a jurisprudência entendido que a configuração da causa de pedir feita pelo Autor confere competência material aos Tribunais, pelo que, havendo os ora Recorrentes conferido à causa de pedir matéria do foro privado, civil, deveria o Tribunal a quo conhecer do litígio;
(…) 25.ª Concluindo-se assim que, sendo privada a relação jurídica existente entre o GAS e os vendedores que determinou a outorga da escritura de compra e venda em crise, não sendo para a sua celebração chamada à colação qualquer norma de direito administrativo, não se verificando qualquer processo de expropriação amigável e atendendo máxime às declarações das partes nela contidas, que exprimem a sua vontade real e que devem como tal ser interpretadas, que o negócio jurídico celebrado, tal como configurado pelas Recorrentes na sua petição inicial, se traduz numa relação jurídica de direito privado, subsumível às normas e princípios da Teoria Geral do Direito Civil e de Direito das Obrigações;
24.ª O conhecimento de quaisquer litígios emergentes da referida relação jurídica é da exclusiva competência dos tribunais comuns, pois o decisor não carece de analisar ou aplicar qualquer norma de Direito Administrativo;
Nestes termos (…), deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser o acórdão recorrido revogado e substituído por outro que decida não se verificar excepção de incompetência absoluta do Tribunal, declarando competente o tribunal de comarca para conhecer do litígio impetrado nos autos e determine a marcha normal do processo”.

O Ministério Público contra-alegou, sustentando que deve ser negado provimento ao recurso, uma vez que está em causa um conflito que “deriva de um contrato celebrado entre um particular e uma entidade que prosseguia funções de direito administrativo”.

3. Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que fossem seguidas as regras previstas na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente ação aos Tribunais Administrativos.

4. Tal como entendeu o acórdão recorrido, os factos relevantes para a apreciação deste recurso constam do relato dos autos. Salientam-se, todavia, os seguintes, aliás aceites pelo Ministério Público na sua contestação (artigo 38.º):

1 - No dia 19 de Fevereiro de 1976, por escritura pública outorgada no ....º Cartório Notarial ..., CC e DD venderam ao extinto Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines, o prédio, com parte urbana e parte rústica, denominado "...”, sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ... vinte sete, do livro ..., registado a favor de DD pela inscrição no livro ..., sob o n.º ... setenta e nove – cfr. doc. 3 junto com a petição inicial.
2 - A compra e venda foi outorgada pelo montante, à data, de 1.560.000$00.

5. Cumpre conhecer do recurso, cujo objecto se traduz em determinar qual é a jurisdição competente para conhecer do pedido das autoras, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos, “por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº 508/94, de 14.07.94, in Processo nº 777/92; e AC TC nº 347/97, de 29.04.97, in Processo nº 139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais),
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.
Disse-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, processo n.º 020/18: “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº 47633; AC STA de 28.11.2002, Rº 1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº 47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].
A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.

5. No caso dos autos, as autoras alegam, em suma, que entre os seus antecessores e o extinto Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines (GAS) foi celebrado, em 19 de Fevereiro de 1976, por escritura pública, um contrato de compra e venda através do qual os primeiros venderam ao segundo o prédio misto, identificado nos autos, pelo preço de 1.560.000$00.
Mais alegam constar da escritura "que o prédio ora adquirido se destina ao complexo urbano industrial da Área de Sines", ali se referindo, ainda, que a aquisição (...) "é feita ao abrigo do disposto na alínea j) do art.° 3.° do Decreto-Lei n.° 270/71 de 19 de Junho".
Referem, também, que o GAS foi criado pelo Decreto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, com o objetivo de promover o desenvolvimento urbano-industrial das zonas de Sines e Santiago do Cacém e que, decorridos dois anos sobre a publicação daquele diploma, foi declarada a expropriação sistemática, a realizar pelo GAS, dos prédios sitos no concelho de Sines e Santiago do Cacém. Concretizam que, nessa decorrência, o GAS empreendeu a notificação dos proprietários dos terrenos expropriados, o que ocorreu até 1985 e, noutros casos – como o dos autos – outorgou escrituras de compra e venda, para aquisição, condicionando o destino do prédio comprado a (...) "empreendimentos integrados no Plano Geral da Área de Sines".
Por fim, salientando que as partes celebraram o contrato de compra e venda em causa “apenas e tão só” para a instalação dos empreendimentos do Plano Geral da Área de Sines, jamais admitindo que ao prédio transmitido fosse dado outro destino, concluíram que a circunstância de o GAS e de as entidades que lhe sucederam após a sua extinção não terem procedido à afectação a que o imóvel se destinava sempre determinará a resolução do contrato por parte dos vendedores, “seja qual for a interpretação que se dê à cláusula que estipulou na escritura de compra e venda destinar o bem vendido para a instalação de um complexo industrial que o comprador nunca realizou”.
Aqui chegados, importa apurar se nos encontramos perante uma questão de natureza meramente privada (ou jurídico-civil), relativa ao incumprimento de um contrato de compra e venda de um imóvel, ou se estamos perante uma questão jurídica que assume contornos que lhe conferem natureza administrativa.
Entendeu-se na decisão do Juiz 3 do Juízo Central Cível de Setúbal que o prédio em causa foi adquirido no exercício das competências administrativas do GAS, no desenvolvimento de uma relação jurídica administrativa com os particulares, na medida em que “se os antecessores das AA não tivessem concordado com a venda, o gabinete desencadearia ou poderia desencadeara respetiva expropriação, o que advinha dos poderes de autoridade atribuídos, com possibilidade de imposição de restrições de interesse público”.
Por seu turno, sustenta-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora tratar-se de um contrato celebrado “à sombra do poder discricionário de uma entidade pública, pois, ainda que as recorrentes não tivessem concordado com tal venda ao GAS, este desencadearia a sua expropriação, sempre, para prossecução dos seus objectivos, indiscutivelmente de interesse público”.
A propósito da noção de “relação jurídica administrativa”, escreveu José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53):
na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
O Decreto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, criou o Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines, abreviadamente designado por Gabinete da Área de Sines, destinado a promover o desenvolvimento urbano-industrial da respetiva zona (art. 1.º, n.º 1), conferindo-lhe personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira (art. 1.º, n.º 2).
Nos termos do art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 270/71, eram atribuições suas
a) Promover, na zona delimitada no n.º 2, a criação de uma área de implantação concentrada de indústrias de base e de um terminal oceânico, dotados das adequadas infra-estruturas e dos necessários serviços de apoio;
b) Promover, na mesma zona, a instalação de outros empreendimentos industriais que possam contribuir para o mais harmónico desenvolvimento do complexo;
c) Promover, ainda na mesma zona, a criação dos centros urbanos exigidos pela concentração populacional resultante do exercício das actividades industriais e a instalação e o funcionamento dos respectivos equipamentos sociais;
d) Propor a adopção das formas de gestão mais convenientes para os diversos empreendimentos a realizar. (…)
Nos termos do art. 3.º, n.º 1, alínea j), para o exercício das suas atribuições, competia especialmente ao Gabinete da Área de Sines, “Proceder à aquisição de terrenos e outros imóveis necessários para a instalação e funcionamento dos seus serviços ou para a realização de trabalhos, bem como para a execução dos planos, promovendo a respectiva expropriação, quando necessária”.
Decorre, por outro lado, do artigo 36° do mesmo diploma terem sido declaradas de utilidade pública urgente as expropriações necessárias para a execução dos planos geral e parciais que fossem aprovados para a área de actuação direta do GAS, dispondo o respectivo n.º 2 que, mesmo antes de “existirem planos aprovados, considera-se desde já declarada a utilidade pública urgente das expropriações necessárias (…)”.
No caso dos autos, o prédio em causa situava-se na zona de atuação do GAS e foi adquirido ao abrigo do Decreto-Lei 270/71, estando o respetivo contrato sujeito à disciplina ali consagrada, designadamente à decorrente do mencionado art. 3.º, n.º 1, alínea j).
Assim, se é certo que o contrato foi celebrado entre as partes, por escritura pública, sem dependência de qualquer acto ou processo expropriativo, a verdade é que a aquisição do imóvel teve na sua génese as especiais atribuições do GAS, de promoção do desenvolvimento urbano-industrial da respetiva zona, que, em última análise, sempre lhe facultariam a possibilidade de promover a expropriação, quando e se necessário.
Desta forma, tendo o GAS atuado no exercício de um poder público, com vista à realização de um interesse público legalmente definido, tem todo o fundamento a conclusão a que chegou o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora quanto ao enquadramento administrativo da relação contratual descrita pelas autoras.
Tem plena aplicação ao caso a doutrina exposta no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23 de Janeiro de 2020, www.dgsipt, proc. n.º 32/19, segundo o qual 4. Sendo certo que foi celebrado um contrato de compra e venda entre os AA. e o R. MPorto, a verdade é que ele funcionou como sucedâneo da expropriação amigável, impossibilitada a mesma, como acima se disse, pela indisponibilidade manifestada pelos AA. em vender a sua parcela de terreno. Antes da celebração do contrato em questão, o MPorto conseguiu que a parcela de terreno dos AA. fosse declarada como de interesse público para efeitos de expropriação. Com a declaração de utilidade pública, o direito de propriedade dos interessados é sacrificado e os bens por ela atingidos ficam de imediato adstritos ao fim específico da expropriação. A substituição da expropriação amigável pela compra e venda dos bens expropriados, in casu, da parcela de terreno dos AA., não transmuta a relação jurídico-administrativa decorrente da expropriação numa relação jurídico-privada.
O contrato de compra e venda apenas serve como meio mais expedito para concluir rapidamente o procedimento de expropriação, pelo que, mantendo-se a natureza expropriativa do contrato, o pedido de resolução do mesmo contrato por pretenso incumprimento do fim expropriador move-se no âmbito da relação jurídico-administrativa de expropriação, transportando a resolução dos litígios dela emergentes para a jurisdição administrativa. Efectivamente, cumpre sublinhar que o pedido de resolução do contrato de compra e venda visa a reversão da parcela expropriada (artigo 5º do CE). A reversão traduz-se no direito conferido ao expropriado de recuperar os bens expropriados quando os mesmos se mostrarem desnecessários para a realização do interesse público que justificou a expropriação. E esse fenómeno da reversão baseia-se em fundamentos de direito público e a sua competência é deferida à entidade que houver declarado a utilidade pública da expropriação ou que haja sucedido na respetiva competência (artigo 74º/1 do CE).”
Não é a indisponibilidade para vender o prédio, referida neste acórdão de 23 de Janeiro de 2020, que agora interessa, uma vez que o direito de propriedade dos autores foi desde logo onerado nos termos do disposto no artigo 36.º do citado Decreto-Lei n.º 270/71 e que, conforme publicado na II Série do Diário do Governo de 12 de Julho de 1973, o Conselho de Ministros declarou a expropriação sistemática, a realizar pelo GAS, dos prédios sitos no concelho de Sines e Santiago do Cacém.
Esta oneração retira relevo a uma interpretação do disposto na al. j) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 270/71 que considere subsidiária a expropriação.

5. Conclui-se, portanto, que a relação controvertida, balizada pelo pedido e pela causa de pedir definidos pelos autores, tem natureza administrativa, cabendo à jurisdição administrativa a sua apreciação, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º e na al .o) do n.º 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, concretamente, ao Tribunal Administrativo e Fiscal ... (artigo 17.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e art.º 3.º e mapa anexo do Decreto-Lei n.º 325/2003, de 29 de Dezembro).

Nega-se, portanto, provimento ao recurso.
Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 18 de Janeiro de 2022. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) – Maria Teresa Sena Ferreira de Sousa.