Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:09/15
Data do Acordão:09/17/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
HABITAÇÃO SOCIAL
COMPRA E VENDA
FRACÇÃO
Sumário:Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para conhecer de um pedido de declaração de nulidade, ou anulação, de um «contrato de compra e venda de fracção predial autónoma», celebrado entre uma sociedade vendedora e particulares, com base na violação de cláusulas constantes de prévio «Acordo de Colaboração para Comercialização» celebrado entre o respectivo Município e essa vendedora, com vista à «promoção habitacional a custos controlados».
Nº Convencional:JSTA000P19401
Nº do Documento:SAC2015091709
Data de Entrada:01/22/2015
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 1º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES E DE COMARCA DE PORTIMÃO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ,
AUTOR: MUNICÍPIO DE LAGOA
RÉU: A.... LDA. E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 09/15
I. Relatório

1. O MUNICÍPIO DE LAGOA [ML] demandou no Tribunal Judicial da Comarca de Portimão [TJCP] a sociedade A…….. Lda., e os particulares B…….. e marido C………, pedindo que seja declarado nulo, ou anulado, o contrato de compra e venda de fracção predial autónoma celebrado entre os réus [ver cópia do contrato a folhas 56 a 62 dos autos].

Invoca, como causa desse pedido, «violação manifesta e inequívoca do Acordo de Colaboração para Comercialização» que ele, enquanto entidade autárquica, tinha celebrado com a sociedade ora ré no âmbito de «promoção habitacional a custos controlados» [ver cópia a folhas 79 a 84 dos autos].

2. Por decisão datada de 07.10.2013, o TJCP [1º Juízo Cível] julgou-se incompetente em razão da matéria para apreciar o objecto da acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, por entender que essa competência assistia aos tribunais da jurisdição administrativa [ver decisão judicial de folhas 196 a 200 dos autos].

3. Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé [TAF], este veio a declarar-se também «materialmente incompetente» por a competência caber, em seu entender, aos tribunais integrados na jurisdição comum [ver decisão judicial de folhas 215 a 220 dos autos].

4. O Ministério Público pronunciou-se no sentido deste conflito de jurisdição ser resolvido com a atribuição da competência material para o litígio «aos tribunais da jurisdição administrativa» [folhas 235 e 236 dos autos].

5. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar, e decidir, o conflito negativo de jurisdição.

II. Apreciação

1. A questão colocada a este Tribunal de Conflitos reconduz-se apenas a definir se a «competência em razão da matéria» para a apreciação do litígio vertido na acção declarativa aqui em causa cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.

O tribunal da jurisdição comum que sobre essa questão se pronunciou, arredou de si tal competência por considerar, e fundamentalmente, que «a questão em litígio, tal como o autor a define», é relativa a um contrato «a respeito do qual existem normas de direito público» a regular aspectos específicos do respectivo regime substantivo.

O tribunal da jurisdição administrativa entendeu, por sua vez, e sobre a mesma questão, que a competência em razão da matéria não lhe cabia, porque apesar de neste caso ser convocado o regime jurídico dos Contratos de Desenvolvimento para Habitação» [CDH – ver o DL nº165/93, de 07.05], o certo é que ele só será actuável no âmbito das relações entre o município [financiador] e a empresa promotora, e entre os primitivos e sucessivos adquirentes, não interferindo no negócio de compra e venda celebrado entre os réus, o qual «é regulado, exclusivamente, por normas de direito privado».

2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo [artigo 202º da CRP], sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e actual 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e aos tribunais administrativos a competência para julgar as causas «emergentes de relações jurídicas administrativas» [artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].

Assim, na sequência das normas constitucionais e legais, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais, ou da chamada jurisdição comum assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92, e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95].

A cada uma destas duas jurisdições, comum e administrativa, caberá, portanto, um determinado «quinhão» do poder jurisdicional que, em bloco, pertence aos «tribunais», sendo que o mesmo é determinado essencialmente em função das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional.

E tais matérias são aferidas através de determinados «índices de competência», entre os quais sobressaem «os termos em que a acção se mostra proposta pelo autor», isto é, o pedido formulado e a causa de pedir que o fundamenta.

Doutro modo, e como tem sido dito, «a competência dos tribunais em razão da matéria, ou jurisdição, afere-se em função da configuração da relação material controvertida, ou seja, em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os seus fundamentos» [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10].

3. No artigo 4º do actual ETAF, em vigor desde 01.01.2004, é feita enumeração exemplificativa de matérias litigadas cujo conhecimento pertence [alíneas do nº1] ou não pertence [alíneas do nº2 e nº3] aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Entre elas se destaca, por pertinente ao presente caso, a alínea f) do seu nº1, segundo a qual «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal» a apreciação de litígios que tenham por objecto «Questões relativas à […] validade de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo […]».

E nesta precisa linha de concretização de competência material estipula agora o nº2 do artigo 2º do CPTA, sobre imposições da tutela jurisdicional efectiva, que «A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para efeito de obter: […] g) A resolução de litígios respeitantes à […] validade de contratos cuja apreciação pertença ao âmbito da jurisdição administrativa».

4. A integração do presente litígio no âmbito material de uma ou outra dessas referidas jurisdições determina-se, assim, sobretudo pelo pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos invocados para o sustentar, isto é, pelos termos em que a acção foi por ele proposta.

Na presente acção declarativa ordinária o município autor [ML] pede a declaração de nulidade ou a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre os réus, em 09.06.2010, por violação do «Acordo de Colaboração» celebrado, em 06.03.2009, entre ele, ML, e a ré A……., visando a «comercialização de 38 fogos de Promoção Habitacional a Custos Controlados». Concretamente, estará em causa a violação das «cláusulas 5ª e 6ª» desse «Acordo de Colaboração».

Segundo essa dita cláusula 5ª, a A…….. comprometeu-se «a comercializar em propriedade plena os 38 fogos estando subjacentes os seguintes princípios enquadrados na política de habitação do Município de Lagoa em particular e na promoção da habitação a custos controlados em geral, devendo para o efeito remeter a título informativo ao ML um Relatório de Vendas que descreva o seguinte: a) Residência dos Agregados Familiares; b) Localidade de trabalho ou entidade empregadora; c) Actividade profissional ou exercício económico no concelho de Lagoa; d) Número de elementos do agregado familiar».

E segundo essa dita cláusula 6ª, a A……. ficou obrigada a «respeitar todas as normas e regras relativas à promoção de habitação a custos controlados definidas pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana [IHRU] e respectiva legislação habilitante, comprometendo-se ainda a dar o direito de preferência a todos os agregados familiares que reúnam as seguintes condições: a) Residência na freguesia de Ferragudo ou no concelho de Lagoa; b) Aquisição para habitação própria permanente do agregado familiar; c) Exercício da sua actividade profissional ou económica no concelho de Lagoa; d) Agregados familiares jovens ou que se enquadrem na informação referida na cláusula 1ª [diz esta cláusula 1ª que o primeiro outorgante, MUNICÍPIO DE LAGOA, transmitirá ao segundo outorgante, A…….., «informação relativa a residentes no concelho de Lagoa com registo de carência habitacional nos Serviços de Acção Social, Habitação e Saúde do Município de Lagoa mediante diagnóstico social feito em colaboração com as Freguesias do concelho, identificando eventuais interessados com perfil para aquisição de habitação a custos controlados»; e) Capacidade económica e financeira dos agregados familiares para a aquisição da respectiva habitação».

5. Ou seja, segundo articula o município autor, ele, enquanto autarquia local, e prosseguindo a política de promoção de financiamento a empresas privadas de construção civil para a construção de habitação a custos controlados, celebrou com a sociedade ré um acordo de colaboração para a comercialização de trinta e oito apartamentos, entre eles o que constitui o objecto do contrato de compra e venda cuja declaração de nulidade ou anulação é pedida na acção em causa.

Esse «acordo» para comercialização foi celebrado pelo ML, no ano de 2009, na sequência de um outro «acordo» para loteamento e construção celebrado com a sociedade D…….., SA, no ano de 2005, e tudo realizado pelo ML ao abrigo da competência dada pelo artigo 24º da Lei nº159/99 de 14.09 [entretanto revogada pelo artigo 3º, nº1 c), da Lei nº75/2013, de 12.09], segundo o qual «Compete aos órgãos municipais: a) Disponibilizar terrenos para a construção de habitação social; b) Promover programas de habitação a custos controlados e de renovação urbana; […]».

Desse «acordo» resultaram para a sociedade ré deveres formais, de informação ao município [cláusula 5ª], e substanciais, de escolha dos compradores e formação dos preços de venda por referência às regras e aos princípios que decorrem do regime legal da construção a custos controlados, previsto, designadamente, no DL nº165/93, de 07.05, e na Portaria nº500/97, de 21.07 [cláusula 6ª], e no âmbito do qual ela beneficiou de vantagens quanto ao preço dos terrenos e quanto aos apoios financeiros e fiscais, e tudo em vista da prossecução do interesse público consistente na satisfação de necessidades de habitação de agregados familiares carenciados, a preços administrativamente fixados.

As cláusulas alegadamente violadas pela sociedade ré traduzem-se, pois, numa imposição de deveres por parte de uma entidade pública, autárquica, em ordem à prossecução de um interesse público, legalmente reconhecido e regulado em cumprimento do direito constitucionalmente consagrado à habitação [artigo 65º da CRP].

Não resta dúvida, assim, de que na apreciação e resolução do presente litígio o tribunal se confronta com a necessidade de interpretar e de aplicar normas que são de «direito público», e que impõem «restrições» nomeadamente em termos de «selecção de compradores e de fixação de preços de venda» que encontram a sua justificação na prossecução do interesse público concretizável mediante o cumprimento do regime jurídico da habitação a custos controlados.

Neste enquadramento factual e jurídico da acção ordinária, e como bem refere o Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal de Conflitos, «o tribunal que a vier a julgar não poderá deixar de convocar o acordo referido, bem como o pertinente regime legal, indiscutivelmente de direito público, e que, de acordo com o alegado pelo autor, se reflectem no contrato de compra e venda que pretende ver declarado nulo ou anulado, por incumprimento desse regime, quanto à selecção dos compradores e quanto ao preço praticado».

6. Tudo aponta, portanto, para que estejamos no domínio da «relação jurídica administrativa» tal como ela é legalmente desenhada, a título exemplificativo, na alínea f) do nº1 do artigo 4º do actual ETAF: «Questões relativas à […] validade de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo […]».

Aliás, a interferência da regulação pública, a propósito da habitação social, vem sendo encarada como suficiente para determinar a intervenção dos tribunais da jurisdição administrativa, seja no âmbito das relações jurídicas de alienação de propriedade, como é o presente caso, seja no domínio das relações locatícias, a propósito das quais este Tribunal de Conflitos tem vindo a pronunciar-se a favor da competência da jurisdição administrativa [a título exemplificativo, e por mais recentes, ver AC Tribunal de Conflitos de 18.04.2013, nº028/12; AC Tribunal de Conflitos de 09.12.2014, nº038/14; e AC do Tribunal de Conflitos de 29.01.2015, nº030/14].

Deste modo, contrariamente ao que é sustentado na decisão proferido pelo TAF de Loulé sobre a questão da competência material, não estamos face a negócio jurídico «exclusivamente regulado por normas de direito privado» mas também, segundo o que vem alegado – e é isso que importa para fixar a jurisdição competente – por «normas e princípios de direito público», pelo menos quanto à escolha do comprador e quanto ao preço de venda.

7. Nos termos de quanto fica exposto, considerando a competência residual dos tribunais judiciais [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e em particular, no tocante à competência dos tribunais da jurisdição administrativa, o que é disposto nos artigos 212º, nº3, da CRP, 1º, nº1, e 4º, nº1 alínea f), do ETAF, impõe-se decidir o presente conflito de jurisdição mediante a atribuição a estes últimos da competência material para conhecer da acção em causa.

III. Decisão

Nestes termos, decidimos o presente «conflito de jurisdição», atribuindo aos tribunais da jurisdição administrativa a competência, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção declarativa interposta pelo MUNICÍPIO de LAGOA contra a sociedade A……., B…….. e C…….

Sem custas.

Lisboa, 17 de Setembro de 2015. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – António Pires Henriques da Graça – José Francisco Fonseca da Paz – Gabriel Martim dos Anjos Catarino – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Ana Paula Lopes Martins Boularot.