Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:034/16
Data do Acordão:03/08/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERREIRA PINTO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
PROCEDIMENTO CAUTELAR.
RATIFICAÇÃO DE EMBARGO EXTRAJUDICIAL.
Sumário:É da competência dos tribunais comuns a providência cautelar instaurada por particular contra autarquia que está a executar uma obra em caminho público que atravessa prédio rústico do requerente. (*)
Nº Convencional:JSTA00070065
Nº do Documento:SAC20170308034
Data de Entrada:10/21/2016
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TAF DE PENAFIEL, UNIDADE ORGÂNICA 1 E A COMARCA DO PORTO - ESTE - PAREDES - INSTÂNCIA LOCAL, SECÇÃO CÍVEL - J1
AUTOR: A..........
RÉU: FREGUESIA DE .......
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TAF PENAFIEL - TJ PORTO ESTE PAREDES - INSTÂNCIA LOCAL SECÇÃO CÍVEL
Decisão:DECL COMPETENTE TJ
Área Temática 1:DIR ADM - CONFLITO JURISDIÇÃO
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB
Legislação Nacional:CONST05 ART211 N1 ART212 N3 ART213 N3.
ETAF02 ART1 N1 ART4 I ART5 N1.
CPTA02 ART13.
CPA91 ART5.
CPC13 ART109 N2 ART110 ART111 N1 N2 N3 ART373 N1 A ART397 N1.
CCIV66 ART1311.
L 62/13 DE 2013/02/26 ART38 ART40 N1.
L 20/12 DE 2012/05/14.
DL 214-G/15 DE 2015/04/15.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC024/13 DE 2013/02/07.; AC TCF PROC018/11 DE 2012/02/16.; AC STJ PROC07B238 DE 2007/08/12.
Referência a Doutrina:ALBERTO DOS REIS - COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VOLII PAG375.
VIEIRA DE ANDRADE - A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA LIÇÕES 15ED 2016 PAG51.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 34/16 (-Processo n.° 918/16-9BEPNF — Unidade Orgânica 1 - Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel
Processo n.º 2317/15.OT8PRD — Instância Local — Secção Cível — J1, Comarca de Porto Este.)

Acordam no Tribunal de Conflitos

I

A……… interpôs, na Instância Local de Paredes, Comarca de Porto Este, “Providência Cautelar de Ratificação Judicial de Embargo Extrajudicial de Obra Nova” contra a “Freguesia …………”, Paredes, requerendo:

· A ratificação, nos termos do artigo 397°, n.° 3, do CPC, do embargo extrajudicial, por si efetuado em 19 de outubro de 2015, da obra que a Requerida se encontrava a fazer no caminho público que atravessa o seu prédio rústico, sito junto à Rua da ………, Lugar de ………., Freguesia de ………., Concelho de Paredes, e requerendo, também, que se determine à requerida que se abstenha de prosseguir com a obra até ser proferida decisão final em ação a propor.


II

Para o efeito, alega, em síntese, o seguinte:

1). É proprietária do prédio rústico, com a área de 2 150m2, sito junto à Rua da ………, Lugar de ………, freguesia de ……….., Concelho de Paredes, sendo que esta via pública atravessa este prédio, cortando-o em duas partes, uma a nascente, outra a poente desta via pública.

2). Esse prédio tem a designação de “……….” ou do “………..”, e está inscrito na matriz rústica da freguesia de ………. sob o artigo 1307, confrontando, “na inteireza” das duas partes do prédio, do Norte com ………., Sul com ………, Nascente e Poente com ………..

3). Está descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o número 619/19950222-……….

4). Como legítima e única proprietária do referido prédio goza de forma plena e exclusiva dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa.

5). É como proprietária que trata do prédio e beneficia de todas as utilidades que ele pode proporcionar e que manda limpar de silvas quando é necessário.

6). Nesta providência, o que está em causa não é “a propriedade em si mesma”, cujo direito lhe é reconhecido, nomeadamente pela requerida, mas apenas algumas suas parcelas, de que a requerida se pretende apropriar, ocupar e/ou anexar ao domínio público.

7). Na ação principal, a propor, o que se pretende acautelar é o direito de propriedade sobre toda a superfície de terreno que integra o prédio e que, a conduta da Requerida pôs em causa e que continuará a colocar, se lhe for permitido continuar com os atos que estava a praticar, porque irá subverter a realidade topográfica e dominial existente.

8). Sucede que no dia 19 de outubro de 2015, foi surpreendida quando tomou conhecimento que a obra da Junta de Freguesia de ………… que decorria junto ao seu prédio, já não era apenas na Rua da …………., mas violava os limites do seu prédio, ocupando duas largas faixas de terreno na parte a nascente da rua da ………..

9). Nesse dia, a Requerida estava a fazer “terraplanagem de terras”, colocação de guias de berma e para águas pluviais, e a preparar o terreno para colocar paralelos em duas faixas de terreno sendo:

· Uma que decorre no sentido nascente/poente, desde o fim do já referido caminho de acesso a matas para a zona nascente da freguesia de ……….., até á Rua da ………., com a largura de 4 metros quando emboca na rua da ……….

· Outra que segue na diagonal, desde esta faixa (na sua parte nascente), até a um outro ponto da Rua da ………. mais a sul que o primeiro com a largura média de 4,5 metros.

· Criando um triângulo interior, entre as duas passagens que se fosse em ambiente citadino, seria uma pequena praceta ou uma parcela de terreno não transitável completamente inútil para qualquer tipo de uso ou utilização.

10). A obra da Requerida, em toda a sua amplitude, só se conseguirá fazer, à custa de uma parte substancial do terreno da Requerente, uma vez que alarga o caminho existente de 2 metros para 4 metros, transforma um atravessadouro pertencente à Requerente em caminho público e cria uma zona inutilizável (o triângulo entre caminhos), privando na prática a sua legítima proprietária de lhe dar qualquer uso ou função.

11). No dia em que efetuou o Embargo, a obra que a Requerida se encontrava a fazer já ocupava duas “largas faixas” de terreno do seu prédio, na parte nascente da Rua da ……….., violando, assim, os seus limites.


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Houve oposição por parte da Requerida, nos termos do artigo 385º, do CPC, na qual, além de invocar a extemporaneidade dos Embargos, a inexistência de “Obra Nova”, de impugnar os factos, deduziu a exceção dilatória da incompetência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais comuns, para o conhecimento dos presentes Embargos, sendo que, para ela, essa competência pertence aos Tribunais Administrativos.

III


1). Os Embargos deram entrada na Instância Local de Paredes, Secção Cível, Comarca de Porto Este e foram distribuídos ao J1, tendo-lhes sido atribuído o n.° 2317/15.0T8PRD.

Por despacho proferido em 15 de janeiro de 2016, transitado em julgado, a Sr. Juíza do J1, da Secção Cível, da Comarca de Porto Este, conhecendo da exceção deduzida pela Requerida, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 64°, 96°, alínea a), 97°, n.° 1, 98°, 99°, n.° 1, 576°, n°s 1 e 2, e 577°, alínea a), todos do Código de Processo Civil [doravante CPC], 40°, n.° 1, da Lei nº 62/2013, de 26.08, e 1°, n.° 1, e 4°, n.° 1, alinea i), ambos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF], julgou-a procedente.

Consequentemente, declarou a incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal judicial comum para conhecer dos Embargos e absolveu a Requerida da instância.

Para o efeito, baseou-se na alínea i), do artigo 4°, do ETAF, na redação dada pelo Decreto-Lei n.° 214-G/2015, de 2 de outubro, que diz pertencer aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios relativos a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”.

Nesse despacho, consignou-se que “o litígio em causa nos autos tem por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”.


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2). A Requerente, face a esta decisão, solicitou que, nos termos do artigo 99°, n.° 2, do CPC, a “Providência Cautelar” fosse remetida para o competente Tribunal Administrativo.

Por despacho de 16 de maio de 2016, e não havendo oposição por parte da Requerida, foi ordenada a remessa do “Procedimento Cautelar” para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.


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3). Por fim, tendo a “Providência Cautelar” sido distribuída à “Unidade Orgânica 1” e tendo-lhe sido atribuído o n.° 918/16.9BPNF, por despacho de 02 de julho de 2016 [doravante TAF], igualmente transitado em julgado, a Sr.ª Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, apoiando-se no “voto de vencido existente no acórdão proferido no Processo n.° 018/11, deste Tribunal dos Conflitos, declarou, também, a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal Administrativo para conhecer da presente “Providência Cautelar” o que constitui uma exceção dilatória, e, em consequência, absolveu a Requerida da instância.

Transcrevendo esse “voto de vencido” diz-se no sobredito despacho que “[m]ediante o procedimento cautelar dos autos, a ora recorrente visa, em primeira linha, a ratificação do embargo extrajudicial de uma obra do Estado que afirma ser violadora do seu direito de propriedade sobre um terreno.

Esse pedido cautelar enquadra-se perfeitamente na previsão do artigo 412° do CPC: e a relação jurídica de que o procedimento emerge é a que se estabelece entre o titular do direito real e, no polo oposto, o dono da obra que, erigindo-a em terreno alheio, terá incumprido a obrigação passiva universal. Ora, a índole privada dessa relação jurídica é manifesta; e não se descaracteriza pela circunstância acidental da obra porventura se dever a imperiosas razões de interesse público. Donde a competência dos tribunais comuns para conhecerem do meio cautelar”.


III

4). Perante dois despachos transitados em julgado, e opostos no que respeita à competência material para o conhecimento e decisão da “Providência Cautelar de Ratificação Judicial de Embargo Extrajudicial de Obra Nova” a Requerente A……….., solicitou a este Tribunal de Conflitos a resolução do conflito negativo de jurisdição existente entre a “Instância Local — Secção Cível — J1 — Paredes — Comarca de Porto Este” e o “Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel — Unidade Orgânica 1”.

5). Mais tarde, por o processo ter baixado ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, dado que a Requerida não havia sido notificada da decisão por ele proferida, a Requerente, veio “reiterar e ratificar os seus requerimentos anteriores” e emitir parecer dizendo que “na forma como [ela] prefigurou a situação, e atendendo que, essencialmente, se trata da violação do direito de propriedade da requerente por uma entidade, que, só por acaso, é um ente público, ao invadir parte do terreno pertencente à requerente (independentemente do fim a que pretendeu destinar a parte apropriada ser caminho público), parece que a Jurisdição competente seria a Comum”.

Por despacho de 17 de outubro de 2016, ao abrigo do disposto nos artigos 109°, n.° 2, e 111°, n.°s 1, 2 e 3, ambos do CPC, pela Sr.ª Juíza do “TAF” de Penafiel, foi suscitado oficiosamente a este Tribunal dos Conflitos, a resolução deste conflito negativo de jurisdição e referindo que o devia ser com tramitação urgente.


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6). Neste Tribunal, a Ex.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto “Parecer” no sentido de que “a competência para conhecer do litígio cabe aos tribunais comuns”, de acordo com vária jurisprudência que enuncia, por, em seu entender, tratar-se de “questões que não emergem de uma relação jurídica administrativa, mas que se traduz na reivindicação de propriedade privada”.

IV


7). A questão a decidir consiste em saber se a “Providência Cautelar de Ratificação Judicial de Embargo Extrajudicial de Obra Nova” submetida à apreciação da Secção Cível, da Instância Local de Paredes, Comarca de Porto Este, se insere na competência dos tribunais judiciais comuns - como defende a Requerente e a Ex.ª Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal dos Conflitos - ou antes se enquadra na competência dos tribunais administrativos.

8). O artigo 109°, do CPC, define os conflitos de jurisdição e de competência. Nos termos do n.° 1, «Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas atividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo». Nos termos do n.° 2 «Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão».

O artigo 110°, do CPC, determina as regras para a resolução dos conflitos.

São elas:

1. Os conflitos de jurisdição são resolvidos, conforme os casos, pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal dos Conflitos;

2. Os conflitos de competência são solucionados pelo presidente do tribunal de menor categoria que exerça jurisdição sobre as autoridades em conflito;

3. O processo a seguir no julgamento dos conflitos de jurisdição cuja resolução caiba ao Tribunal dos Conflitos é o estabelecido na respectiva legislação:

4. No julgamento dos conflitos de jurisdição ou de competência cuja resolução caiba aos tribunais comuns segue-se o disposto nos artigos seguintes.

De acordo com o artigo 111°, n.° 1, do CPC, «quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir».

Como já se disse, este conflito negativo de jurisdição foi suscitado oficiosamente pelo TAF de Penafiel.

O artigo 38° da Lei da Organização do Sistema Judiciário [doravante LOSJ], aprovada pela Lei n.° 62/2013, de 26 de fevereiro, no seu n.° 1 estabelece que «A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei» e o seu n.° 2 diz que «São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia».

Em igual sentido, o n.° 1, do artigo 5°, do ETAF, determina que «a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente».

Por sua vez, o artigo 211°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa [doravante CRP], quanto à competência dos tribunais judiciais, estabelece que «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».

Também a LOSJ no seu artigo 40°, n.° 1, determina que «Os tribunais judiciais têm competência para as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Relativamente à competência dos tribunais administrativos e fiscais, a CRP, no artigo 213°, n.° 3, consagra que «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

No ETAF, o âmbito da jurisdição administrativa está fixado nos seus artigos 1° e 4°.

10). Do exposto resulta que os tribunais judiciais gozam de competência genérica, ou mais apropriadamente, residual ao passo que os tribunais administrativos têm competência limitada aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, conforme dispõe o artigo 1°, n.° 1, do ETAF, e concretizadas no seu artigo 4°.

A competência do tribunal afere-se, como é doutrinal e jurisprudencialmente aceite, inclusive por este Tribunal de Conflitos, pelo pedido formulado pelo Autor/Requerente e pelos fundamentos invocados (causa de pedir) — Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 07.02.2013, processo n.° 024/31, in www.itig.pt

O conceito de causa de pedir encontra-se no artigo 581°, n.° 4, do CPC.

A causa de pedir “é o facto concreto de que emerge o direito que o autor se propõe declarar” - Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, 2°, 375.

Assim, a causa de pedir é o conjunto de factos concretos, a invocar pelo autor, que, subsumidos a normas de direito substantivo, devem ser aptos à produção do efeito que pretende fazer valer.

Ora, aferindo-se, como sobredito, a competência material pelo pedido do Autor/Requerente e pelos fundamentos que invoca (causa de pedir), a questão da competência material, e deste modo da jurisdição competente, apenas terá que ser analisada à luz da pretensão do demandante/requerente - artigo 38°, n.°s 1 e 2, da LOSJ e artigo 5º, n.° 1, do CPA.

Acresce que tem sido decidido por este Tribunal de Conflitos, que a providência cautelar tem que ser proposta no tribunal que seja competente, em razão da matéria, para julgar a causa principal de que aquela é dependência — Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 12.02.2012, processo n.° 018/11, in www.dgsi.pt.


v


11). O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais foi alterado pelo Decreto-Lei n.°214-G/2015, de 2 de outubro de 2015.

Contudo, o artigo 15°, n° 4, do mesmo Decreto-Lei, que trata da entrada em vigor das suas alterações, determina que «As alterações efetuadas [...] ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de fevereiro, em matéria de organização e funcionamento dos tribunais administrativos, incluindo dos administrativos de círculo, entram em vigor no dia seguinte ao da publicação do presente decreto-lei».

O n.° 5, estabelece que «A alteração efetuada pelo presente decreto-lei à alínea i) do n.° 1 do artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, em matéria de ilícitos de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, entra em vigor no dia 1 de setembro de 2016».

Quanto às restantes alterações feitas ao ETAF, rege a norma geral constante no n.º 1 do mesmo artigo, que diz que «Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o presente decreto-lei entra em vigor 60 dias após a sua publicação».

Entraram, pois, em vigor no dia 1 de dezembro de 2015.

A presente “Providência Cautelar de Ratificação Judicial de Embargo Extrajudicial de Obra Nova” deu entrada em Juízo a 26 de outubro de 2015.

O despacho da Sr.ª Juíza da instância Local — Secção Cível - de Paredes, que considerou o tribunal judicial comum incompetente, em razão da matéria, para o conhecimento da presente Providência, teve como fundamento, como já foi dito, a nova redação da alínea i), do artigo 4°, do ETAF, que diz ser da competência dos tribunais administrativos a apreciação dos litígios que tenham por objeto questões relativas à “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”.

Tal despacho foi proferido em 15 de janeiro de 2016.

Ora, fixando-se a competência no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei, e sendo igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia, aquela norma não é aplicável ao caso concreto — artigo 38°, n.°s 1 e 2, da LOSJ, e artigo 5º, n.° 1, do ETAF.

Com efeito, a competência, em razão da matéria, fixou-se em 26 de outubro de 2015, data da entrada em Juízo do requerimento inicial e por o caso não se enquadrar em qualquer das exceções referidas no artigo 38°, da LOSJ.

Foi este o único fundamento usado no despacho para a declaração da incompetência, em razão da matéria, do tribunal judicial comum.


VI


12). Assim sendo, a competência em razão da matéria, no caso concreto, deve aferir-se à luz do ETAF na versão anterior à dada pelo Decreto-Lei n.° 214-G2015, de 2 de outubro, ou seja deve ser apreciada de acordo com o ETAF, na versão resultante da sua penúltima alteração, a efetuada pela Lei n.° 20/2012, de 14 de maio [doravante apenas ETAF].

Ora, a Requerente invoca, como causa do Embargo (de pedir), o direito de propriedade sobre um prédio rústico, alegando tê-lo adquirido, quer por via originária da usucapião, quer pela via derivada (herança de sua tia B…………).

Alega, também, que esse prédio é atravessado por um caminho público que a Requerida se encontrava a melhorar e a alargar à custa do seu terreno.

Refere, ainda, que o caminho tinha apenas 2 metros de largura e que a Requerida estava a alargá-lo para 4 metros, através da apropriação de uma parte substancial do seu terreno, e a transformar um atravessadouro, sua propriedade, em caminho público.

Diz que é o direito de propriedade sobre toda a superfície de terreno, que integra o seu prédio rústico, que pretende acautelar com a ação principal a propor, direito este que a Requerida pôs em causa com a obra embargada.


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13). Acresce que esta “Providência Cautelar” harmoniza-se com o estipulado no artigo 399°, do CPC, uma vez que emerge não de uma relação jurídica administrativa mas sim de uma relação jurídica privada, que é relação que se estabelece entre o titular do direito real e o dono da obra, que a estava a fazer em violação desse direito.

Por outro lado, resulta do requerimento inicial que a Requerente, com a “Providência Cautelar”, pretende que seja ratificado judicialmente o Embargo que efetuou, de modo a que a Embargada, Freguesia de …………, se abstenha, de imediato, de continuar com o alargamento do caminho, em violação do direito de propriedade que detém sobre o prédio rústico em causa, ou seja de continuar a apropriar-se da faixa de terreno, sua propriedade, necessário para o alargamento desse caminho até ser “proferida uma decisão final em processo a propor”.

Na verdade, estipula o artigo 373°, n.° 1, alínea a), do CPC, que, posteriormente à ratificação deve a Requerente propor a ação da qual os “Embargos” dependem, sob pena de, não a propondo, caducar a providência cautelar, ou seja de se extinguir.

Essa ação só pode ser real ou possessória, como resulta do disposto do n.° 1, do artigo 397°, do CPC [“aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse”].

Ora, o alegado e a factualidade ínsita no requerimento da “Ratificação”, indicam que a ação a propor será a “ação de reivindicação” prevista no artigo 1.311°, do Código Civil.


VII


14). De acordo com o disposto nos artigos 212°, n.° 3, da CRP, e 1°, n.° 1, e 4°, estes do ETAF, compete aos tribunais de jurisdição administrativa [tribunais administrativos] administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, ou dito de outra forma, compete-lhes o julgamento de ações e recursos contenciosos que tenham objeto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

Com a vigência do ETAF foi eliminado, como critério delimitador da natureza pública ou privada dos atos dos entes públicos, o conceito de atividade de gestão pública ou de gestão privada.

A este respeito, diz-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.02.2007, [processo n.° 07B238 — in www.dgsi.pt] que “[o]s conceitos de atividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos já não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa”.

O critério dessa distinção é, agora, material e assenta, nomeadamente, nos conceitos de “relação jurídica administrativa” e de “função administrativa”.

Ora, dado o disposto no artigo 212°, n.° 3, da CRP, para efeitos de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa, a noção de relação jurídica administrativadeve abranger a generalidade das relações jurídicas de carácter administrativo - quer as que se estabelecem entre os particulares e os entes administrativos quer as que ocorram entre sujeitos administrativos.

Assim, para J. C. Vieira de Andrade, à falta de uma definição legal do que se deve entender por relação jurídica administrativa, deve partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.

A relação jurídica administrativa na sua definição, é aquela em que “um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido[A Justiça Administrativa, Lições, 2016 - 15ª edição, Almedina, página 51].

Trata-se, como diz, de uma definição substancial, que se refere apenas ao âmbito nuclear ou do princípio da jurisdição administrativa, mas que não exclui, antes aceita, que por parte do legislador, justificadamente, sejam estabelecidos conceitos que impliquem a diminuição, por subtração, ou que determinem a ampliação, por atribuição, do âmbito da jurisdição administrativa.

Por sua vez, a utilização de um critério material de delimitação da relação jurídica administrativa pressupõe a existência de “[u]m conjunto de relações onde a Administração é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público” [J.C. Vieira de Andrade, obra citada páginas 51/52].

Ora, o ETAF, no artigo 1°, reafirma a cláusula geral, estabelecida no artigo 212°, n.° 3, da Constituição, definindo a competência dos tribunais administrativos de um ponto de vista substancial, ou seja, estabelecendo que os tribunais de jurisdição administrativa são aqueles que detêm competência para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

No seu artigo 4 enuncia-se, exemplificativamente, os litígios e questões, sujeitos [n.º 1] ou excluídos [n.ºs 2 e 3], do âmbito da jurisdição administrativa.

Por fim, o ETAF deixou de excluir, expressamente, da jurisdição administrativa “as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja uma pessoa de direito público”.

Contudo, apesar de nele existir uma cláusula de definição positiva do âmbito da justiça administrativa tais questões não foram aí incluídas.

O que significa que a competência para apreciação de relações jurídicas disciplinadas pelo direito civil, inexistindo norma expressa que a atribua aos tribunais administrativos, pertence aos tribunais judiciais, ou seja as questões de direito privado, por natureza, estão excluídas da jurisdição administrativa, desde que não haja uma atribuição expressa aos tribunais administrativos.


VIII

15). Estabelece o artigo 13°, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos [doravante CPTA], que “o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.

No caso concreto, apesar de a Embargada ser uma autarquia local - Freguesia de ……… - não se está perante uma relação jurídica administrativa a regular pelas regras de direito público.

Pelo contrário, e como anteriormente sobredito, estamos perante uma relação jurídica de natureza privada, consistente na ofensa do direito de propriedade particular e a decidir por aplicação de normas de direito privado.

Não havendo no ETAF qualquer norma que atribua competência à jurisdição administrativa, para o conhecimento de ações de reivindicação e dos Embargos que são sua dependência, [cf. seu artigo 4º], o seu conhecimento pertence aos tribunais judiciais.

Deste modo, são os tribunais comuns - e não os administrativos - os competentes para conhecer duma providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova [a que se seguirá a propositura de uma ação real], com fundamento em pretensa ofensa do direito de propriedade do requerente, por obras realizadas por uma autarquia local, por se tratar de questões que não emergem de uma relação jurídica administrativa, mas que se traduz na reivindicação de propriedade privada.


IX


Decisão:

Nos termos e com os fundamentos expostos, resolve-se o presente conflito de jurisdição atribuindo a competência, em razão da matéria, à jurisdição comum.

Sem custas.


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Lisboa, 8 de março de 2017. - João Fernando Ferreira Pinto (relator) – Manuel Pereira Augusto Matos – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Fernando Nunes Ribeiro – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.