Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01/22
Data do Acordão:04/06/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
ERRO JUDICIÁRIO.
TRIBUNAIS JUDICIAIS.
Sumário:A competência para conhecer de acção em que o Autor imputa erro judiciário a uma decisão de um Tribunal Judicial cabe aos tribunais da jurisdição comum.
Nº Convencional:JSTA000P29201
Nº do Documento:SAC2022040601
Data de Entrada:01/19/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA — JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA — JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA
AUTOR: A…………
RÉU: ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 1/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A…………, identificado nos autos, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria acção comum de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado Português, pedindo a condenação do Réu a pagar ao Autor a quantia de €7.500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros calculados à taxa legal, desde 29.05.2014 até integral pagamento.
Em síntese, alegou, nomeadamente, que no âmbito da acção executiva nº 1587/14.6TBLRA, que correu termos no extinto 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria, foi erroneamente considerado, à luz do art. 703º do CPC agora em vigor, que o Autor não tinha título executivo bastante, impedindo-o de “exercer o seu direito, ao indeferir, de forma errada o requerimento executivo”. Decisão com a qual, apesar de injusta e inconstitucional, teve de se conformar, por não reunir os requisitos exigidos para interpor recurso, mas deixou de ter confiança no sistema judicial português, sentindo-se injustiçado. E que o Tribunal ao decidir dessa forma, violou as suas legítimas expectativas, bem como, a confiança no sistema judicial português, sendo que o legislador devia ter acautelado ao legislar, a força executiva dos anteriores títulos executivos, principalmente dos que foram constituídos na vigência da lei anterior, não permitindo qualquer dúvida quanto à natureza dos mesmos ao aplicar a lei.
Foi assim, a omissão legislativa e a errónea interpretação da lei pelo tribunal, que afectaram o direito do Autor, provocando-lhe os danos que invoca.

Por saneador-sentença de 17.10.2019 o TAF de Leiria decidiu o seguinte:
a) julgar verificada a excepção dilatória de incompetência territorial quanto à responsabilidade civil no exercício da função legislativa, pelo que decido declarar este Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria incompetente em razão do território para conhecer a presente acção, declarando competente para o efeito o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
b) julgar verificada a excepção de incompetência material parcial deste Tribunal relativamente responsabilidade no exercício da função jurisdicional por erro judiciário, consequentemente, pelo que, em consequência, absolvo parcialmente da instância o réu Estado apenas nesta parte.” – cfr. fls. 57 a 62 verso dos autos.

Remetido o processo ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa), veio este a proferir decisão em 25.05.2021, na qual se decidiu: “Declarar o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação e, em consequência, absolver o Estado da instância.” (cfr. fls. 65 a 69).
Mais se determinou a notificação do Autor, com expressa menção do disposto no art. 14º, nº 2 do CPTA [“quando a petição seja dirigida a tribunal incompetente, sem que o tribunal competente pertença à jurisdição administrativa, pode o interessado, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão que declare a incompetência, requerer a remessa do processo ao tribunal competente com indicação do mesmo.”], tendo esta sentença transitado em julgado.
Notificado desta decisão veio o Autor, por requerimento de 20.08.2021, pedir a remessa do processo ao Tribunal Judicial da Comarca de Leiria (cfr. fls. 72 e 73).
Em 18.10.2021, no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Cível de Leiria, Juiz 1, foi suscitado oficiosamente o conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Comum Cível de Leiria (Proc. nº 2924/16.4T8LRA) e o TAC de Lisboa (Proc. nº 628/19.BELRA) - cfr. fls. 79.
Com efeito, no Proc. nº 2924/16.4T8LRA, por decisão de 15.06.2017, o Juízo Local Cível de Leiria – Juiz 2 havia declarado a incompetência daquele Tribunal para conhecer da acção ali intentada pelo mesmo A. contra o Estado Português, como fundamentos em tudo semelhantes aos acima descritos, formulando-se o pedido de condenação do R. Estado no pagamento ao A. da quantia de € 5.000,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde 29.05.2014 até integral pagamento, tendo esta decisão transitado em julgado - cfr. 11 verso a 15 -, tendo esta decisão transitado em julgado.

Por manifesto lapso, foram os autos enviados ao Supremo Tribunal de Justiça onde, após promoção do Ministério Público, foi determinado, por decisão de 23.12.2021, da Senhora Vice-Presidente daquele Tribunal, a remessa do processo a este Supremo Tribunal Administrativo para serem presentes à Senhora Presidente.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei n.º 91/2019.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída aos tribunais comuns.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Cível de Leiria e o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
Entendeu o Juízo Local Cível de Leiria ser a jurisdição comum incompetente, em razão da matéria para conhecer do litígio por, “(…), na presente ação a responsabilidade a causa de pedir na petição inicial não se subsume a factos enquadráveis no erro judiciário, a que alude o referido art. 13º, nºs 1 e 2 (cfr. a propósito do erro judiciário o Ac. STJ, de 24/02/2015, proc. 2210/12.9TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt).
Está-se sim, perante responsabilidade civil extracontratual por alegados danos decorrentes das funções legislativa e jurisdicional do Estado, como é dito na contestação, de ato praticado pela Assembleia da República no uso de competência própria (art. 163º nº 1 alínea c) da Constituição da República Portuguesa) de alteração do Código de Processo Civil, nos termos alegados pelo Autor, e da administração da justiça pelos tribunais, nos termos dos art.ºs 202º e 203º da Constituição da República Portuguesa. Está-se, pois, perante situação enquadrável no art. 4º, nº 1, al. f) do ETAF.
Pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 99º, nº 1, 577º, al. a) e 576º, nº 2 do CPC, julga-se verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria deste tribunal para julgar a presente ação, em consequência do que se absolve o Réu da instância.
Por sua vez o TAC de Lisboa também se considerou incompetente em razão da matéria. Entendeu que, “(…), face à causa de pedir, dúvidas não podem existir que a mesma se reporta à decisão proferida no processo executivo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, não sendo a referência constante do artigo 31º da petição inicial – à solução de direito transitório que o legislador alegadamente deveria ter contemplado – que afasta a quase integralidade do teor da petição inicial. De resto, não por acaso, conclui [o Autor], a final, que «deve … ser indemnizado pelos danos não patrimoniais causados pela conduta do tribunal, violadora do princípio constitucional do Estado de Direito Democrático, em quantia não inferior a €7.500,00.»”.
Por isso, chamou à colação a norma da alínea a) do nº 4 do art. 4º do ETAF, que “exclui do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso. É o caso como se viu.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio no qual se pretende efectivar a responsabilidade civil do Estado com fundamento, por um lado, em erro judiciário do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria e, por outro lado, no exercício da função legislativa, que terá originado danos na esfera jurídica do autor, devido à falta de previsão dos títulos executivos particulares vigentes antes do actual CPC [e que determinaram a consequente decisão alegadamente errada de não reconhecimento do título executivo do autor, aí se alicerçando o erro judiciário como causa de pedir dos danos sofridos], sendo que foi formulado um pedido indemnizatório único de condenação do Réu pelos danos alegadamente sofridos.
Face a estas duas causas de pedir o Juízo Local Cível de Leiria acentuou a causa de pedir respeitante à responsabilidade civil extracontratual do Estado no exercício da função legislativa e, embora, fazendo-lhe referência, desconsiderou a responsabilidade por erro judiciário no exercício da função jurisdicional [que não cabe à jurisdição administrativa], concluindo que a competência para o julgamento do litígio cabia à jurisdição administrativa e fiscal (art. 4º, nº 1, al. f) do ETAF). E, por sua vez, o TAC de Lisboa pôs a tónica no erro no exercício da função jurisdicional materializada na decisão do então 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria – proferida em 29.05.2014 -, que indeferiu liminarmente a acção executiva por manifesta insuficiência do título executivo, julgando que a competência cabia aos tribunais judiciais, por estar excluída do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição (art. 4º, nº 4, al. a) do ETAF). E, tendo determinado que o autor fosse notificado nos termos do art. 14º, nº 2 do CPTA, este veio pedir a remessa dos autos ao Juízo Local Cível de Leiria, o que significa que se conformou com a compressão da acção operada pelo TAC de Lisboa ao dela não recorrer.
Resta, pois, em apreciação, no que a este Tribunal dos Conflitos diz respeito saber qual é o tribunal competente para ajuizar a acção por erro judiciário, por ser quanto a este que existe um conflito negativo de jurisdição (art. 1º da Lei nº 91/2019, de 4/9). E, quanto a este, não restam dúvidas que imputando o Autor esse erro a uma decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, a competência para conhecer da acção cabe aos tribunais comuns.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Local Cível de Leiria, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 6 de Abril de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.