Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:033/20
Data do Acordão:05/19/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Sumário:Incumbe aos tribunais judiciais o julgamento de uma providência cautelar em que se discute a titularidade do direito de propriedade sobre um terreno.
Nº Convencional:JSTA000P27741
Nº do Documento:SAC20210519033
Data de Entrada:02/03/2020
Recorrente:REQUERENTE: A................, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VIANA DO CASTELO - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MONÇÃO E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
REQUERIDO: MUNICÍPIO DE MONÇÃO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: 1. Relatório
A……….., representado pelo seu procurador e gestor de negócios, B………, identificados nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo de Competência Genérica de Monção, procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo extrajudicial de trabalhos contra o Município de Monção.
Em síntese, o requerente alegou ser legítimo dono e possuidor do prédio rústico que identifica, que lhe adveio por escritura de compra e venda, que foi registado a seu favor e que ao longo de inúmeros anos o tem cultivado, nele construiu a sua casa, tem pago todos os encargos inerentes, pelo que adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel por usucapião, aquisição que pretende ver declarada.
Alega ainda que a sua propriedade confina a Sul com a valeta da Estrada Nacional e que construiu muros e portões com o competente processo de licenciamento e pavimentou o espaço entre o portão de entrada e a dita estrada, com cubos, paralelepípedos de granito, tendo para tanto instruído competente processo de licenciamento de obras junto do Município de Monção. E que aquele espaço de entrada no prédio do Autor, ligando a sua propriedade à Estrada é seu e sempre foi sua propriedade, tendo aí colocado há meia dúzia de meses dois vasos/floreiras de cimento.
No dia 06.03.2020, o Município de Monção, através de um edital, notificou o requerente para retirar os vasos sob pena de contra-ordenação, remoção coerciva e custos associados. Essa posição foi mantida apesar das tentativas do requerente para resolver o diferendo quanto à delimitação do seu terreno e, por entender que se encontram na sua propriedade, não os retirou.
Pretendendo o requerido proceder à remoção coerciva, em 20.05.2020, dos dois vasos, o requerente embargou extrajudicialmente os trabalhos que aquele pretendia levar a efeito. E intentou em 25.05.2020 procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo extrajudicial de trabalhos, nos termos previstos no art. 397º e seguintes do CPC.
Em 02.06.2020, no Juízo de Competência Genérica de Monção, foi proferida decisão (fls. 37 a 39) que indeferiu a requerida ratificação judicial de embargo, quer por não estarem reunidos os pressupostos legais, quer por não ser admissível,quer, finalmente, por carecer este Tribunal de competência material para o efeito”.
O requerente pediu a remessa dos autos ao TAF de Braga mas essa pretensão foi indeferida, «Tendo presente que o Tribunal não se limitou a julgar-se materialmente incompetente (este foi, esclareça-se, o argumento a refutar a possibilidade de transmutar o pedido formulado pelo requerente para o que, efetivamente, poderia ser o adequado), apreciou igualmente a falta de cabimento do meio processual de que lançou mão (ao que acresce a circunstância de que este meio poderá não ser o adequado meio de reacção na jurisdição administrativa), tendo presente, também, que a possibilidade a que alude o requerente (artigo 899º, n.º 2 do CPC) pressupõe que se haja chegado ao final dos articulados e a decisão foi liminarmente proferida, não tem base legal (nem verdadeiramente interesse) o requerido pelo requerente que, como tal, se indefere.»
Inconformado, o requerente interpôs de cada uma destas decisões recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Em resposta a notificação para a interposição dos recursos, o requerido Município deduziu oposição invocando a excepção de incompetência material e alegou, além do mais, que a faixa de terreno onde se encontram os vasos passou a integrar o domínio publico após a construção dos muros que vedam o prédio do requerente.
Por acórdão de 24.09.2020 decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães julgar totalmente improcedentes os dois recursos de apelação interpostos e conhecer oficiosamente da incompetência material do Tribunal a quo para apreciar e decidir os presentes autos, e, em consequência, “revogar a primeira decisão recorrida, declarando o Tribunal a quo materialmente incompetente para apreciar e decidir os autos (sendo materialmente competente para esse efeito a jurisdição administrativa), e por isso absolvendo o Requerido (Município de Monção da instância”; e “confirmar a segunda decisão recorrida, mantendo o despacho que indeferiu a remessa dos autos para a jurisdição administrativa”.
Entendeu aquele Tribunal o que “o objecto do litígio não coincide com a reivindicação da faixa de terreno onde se encontram depositados os vasos/floreiras (embora a discussão sobre a sua natureza - pública ou privada - neles esteja implicada), mas sim com a reacção/impugnação do acto que determinou a sua remoção coerciva (decidida efectuar por meio do embargo extrajudicial dos trabalhos destinados a executá-la).
Encontram-se, assim, as partes no âmbito de uma relação jurídica administrativa, cuja discussão e decisão cabe à jurisdição administrativa e não a esta, comum.
De novo inconformado, o requerente veio interpor recurso para este Tribunal dos Conflitos concluindo “crê o recorrente que não deve ser julgado incompetente o Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo porquanto a questão de fundo é o reconhecimento do direito de propriedade do recorrente sobre o prédio identificado nos autos, e actuando o Réu, Município de Monção sem as vestes de poder, sem o “jus imperii” actua como particular ofendendo o direito de propriedade do recorrente, violando a lei, imiscuindo-se no direito privado”.
Por despacho do Relator do TRG foi determinada a remessa dos autos a este Tribunal dos Conflitos.
As partes, notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer concluindo que “nas circunstâncias do caso, e interpretada a vontade processual das partes de acordo com o princípio pro-actione, deve resolver-se o presente conflito, revogando-se a decisão do TR de Guimarães, atribuindo-se aos tribunais comuns a competência em razão da matéria para conhecer do procedimento cautelar de embargo de obra nova”.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do Relatório.

3. O Direito
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (arts. 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC, e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 - LOSJ), e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (arts. 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
O embargo de obra nova (ou a ratificação judicial do embargo extrajudicial de obra nova) é uma providência cautelar, com funções preventivas ou conservatórias, através da qual se procura impedir a continuação da obra (ou dos trabalhos) e manter o estado até que o litígio seja decidido na acção principal. Assim, o direito substantivo em litígio não é o embargo da obra nova (ou dos trabalhos) pois este é um meio cautelar desse direito, mas o direito que se diz que a obra nova (ou os trabalhos) ofende, o direito de propriedade (cfr. art. 397º do CPC).
Resulta da petição de ratificação judicial de embargo que o requerente, alegando o seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno de acesso ao seu prédio e que liga este à estrada, considera esse direito de propriedade ameaçado e ofendido com a pretensão do Município de Monção de remoção dos dois vasos que se encontram naquele espaço, por este considerar que aquela faixa de terreno é pública. E, por isso, como refere no artigo 50º do requerimento inicial: “em face desta posição de ameaça, de violação do direito de propriedade do Autor por parte do Réu, teme o Autor que o Réu declare propriedade pública ou domínio público a sua propriedade de acesso ao seu terreno”, embargou extrajudicialmente os trabalhos de remoção dos vasos.
O presente procedimento não se destina a impugnar um alegado acto administrativo que deliberou levar a efeito aqueles trabalhos, mas a acautelar o direito de propriedade, e é instrumental de uma acção de defesa da propriedade.
Tal como se apresenta, deparamo-nos com uma situação em que há conflito quanto à titularidade do direito de propriedade sobre o terreno em causa. O requerente no seu requerimento inicial alega factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa e excluir o mesmo direito por parte da requerida. Por sua vez, o requerido defende que aquela área de terreno constitui um espaço público.
Assim, a pretensão principal que o requerente enuncia no presente meio cautelar enquadra-se na reivindicação de propriedade privada (que se concretizará na acção principal).
A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais e, ainda que nestas acções se formulem, cumulativamente ou de forma subsidiária, pedidos indemnizatórios, estes não relevam para determinação da competência material do tribunal por serem decorrência da alegada violação do direito de propriedade - (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19, de 02.03.2021, Proc. 5/20,).
A presente providência será, presumivelmente, seguida da propositura de uma acção real, de reivindicação de propriedade e, como tem sido reafirmado pelo Tribunal dos Conflitos, as providências cautelares têm de ser propostas nos tribunais que forem competentes em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquelas são dependência (cfr. Ac. de 07.07.2009, Proc. 011/09 e de 08.03.2017, Proc. 034/16).
Assim, a competência material para conhecer da presente providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova cabe à jurisdição comum (art. 64º do CPC).
Pelo exposto, acordam em revogar o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães e, consequentemente, atribuir a competência aos tribunais da jurisdição comum para o conhecimento da providência cautelar em causa.
Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, a relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STJ, Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza tem voto de conformidade.

Lisboa, 19 de Maio de 2021
Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa