Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:029/20
Data do Acordão:04/06/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRECONTRATUAL
PESSOA COLECTIVA PÚBLICA
Sumário:A competência para conhecer de uma acção que visa a efectivação da responsabilidade civil extracontratual do R. Município – que é uma pessoa colectiva de direito público e de cujas atribuições faz parte a construção de uma via pública - por acto ilícito e culposo, pretendendo-se a sua condenação no pagamento de uma indemnização, pertence aos Tribunais da Jurisdição Administrativa e Fiscal.
Nº Convencional:JSTA000P29206
Nº do Documento:SAC20220406029
Data de Entrada:11/05/2020
Recorrente:A…………. (E OUTROS), NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE SANTA MARIA DA FEIRA – JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE AVEIRO UO1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 29/20


Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………….., B……………, C…………e D………….., por si e na qualidade de universais herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de E………… e em representação da mesma, intentaram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro (TAF de Aveiro) acção declarativa comum contra o Município de Oliveira de Azeméis, pedindo a sua condenação a:
a) ser o R. condenado a pagar aos AA., a título de justa indemnização, o valor de € 151.800,00 (cento e cinquenta e um mil e oitocentos euros) - correspondente à soma do valor da parcela ocupada com o valor correspondente à desvalorização do prédio sobre o qual incidiu a ocupação - , acrescido de juros de mora, contados desde o momento em que teve lugar a ocupação, até ao efectivo e integral pagamento;
Sem prescindir, e subsidiariamente,
b) no caso de improceder o pedido acima, ser o R. condenado a pagar aos AA. a quantia de, pelo menos, 31.200€ (trinta e um mil e duzentos euros) correspondente ao valor da parcela ocupada, a título de enriquecimento sem causa, à qual acrescem de juros de mora, contados desde o momento em que teve lugar a ocupação, até ao efectivo e integral pagamento;”
Em síntese, os AA. alegam que são donos e legítimos proprietários da parcela de terreno que identificam e que desde finais de 2005 se encontra ocupada e integrada no domínio público, uma vez que é agora uma via pública. Acrescentam que, embora tenham decorrido negociações entre o Presidente da Câmara Municipal em funções à data e o falecido E………….., “(…) até à presente data, tudo se mantém inalterado - o terreno foi ocupado e, não nada foi pago, como a transferência da propriedade da parcela ocupada nunca foi formalizada. (…)”, tendo vindo finalmente a “apurar que a Declaração de Utilidade Pública não havia avançado”. Invocam que o Réu reconhece que o prédio e a parcela ocupada são propriedade dos AA. e que, portanto, ocupa a parcela sem título, pelo que têm direito a serem indemnizados pela perda patrimonial e pela desvalorização da parte remanescente do prédio em causa.
O TAF de Aveiro suscitou a excepção da incompetência em razão da matéria e, em sede de contraditório, os AA defenderam que “a causa de pedir é ocupação/apropriação do terreno dos AA., à margem de qualquer procedimento ou acto legalmente adequado para o efeito”, que a propriedade do terreno não é controvertida e que está em causa nos autos a responsabilidade civil extracontratual da Ré decorrente de actuação ilícita por violação culposa do direito de propriedade dos AA. e a indeminização dos prejuízos sofridos, concluindo pela competência da jurisdição administrativa e fiscal nos termos do disposto na alínea f) do nº1 do art. 4º do ETAF.
Por sentença de 30.09.2020, o TAF de Aveiro decidiu julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria por considerar que “Resulta da causa de pedir que está em causa uma parcela de terreno dos AA ocupado pela Ré para a edificação de vias rodoviárias e pedonais. Ou seja, uma situação em tudo idêntica a uma expropriação “…por causa de utilidade pública compreendida nas atribuições, fins ou objecto da entidade expropriante” e, que,A competência para dirimir a justa indemnização em casos de expropriação pertence à ordem dos tribunais comuns, mesmo no caso de expropriações por “via de facto”.
Em acção anteriormente intentada no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira [Proc. nº 1459/17.2T8AVR], foi proferida sentença em 21.11.2017 a julgar aquele tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da acção.
Entendeu o Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira que resulta da petição inicial estar (…) em causa a responsabilidade civil extracontratual do Município de Oliveira de Azeméis pois, na versão dos demandantes, o R. apropriou-se do imóvel em causa” e “que jamais a propriedade do imóvel foi posta em causa, conforme se alcança aliás do art. 5º da contestação, sendo que aliás tal faz naturalmente parte da causa de pedir - violação do direito absoluto de propriedade dos AA.” para concluir que, no caso, a competência cabe aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal de acordo com a alínea g) do nº 1 do art. 4º do ETAF (“Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”).
Ambas as decisões transitaram em julgado.
Suscitada oficiosamente no TAF de Aveiro a resolução do conflito, foram os autos remetidos ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei n.º 91/2019, de 4/9, e nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [arts. 212º, nº3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19/2) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se que os AA. fundamentaram os seus pedidos indemnizatórios na alegação de que eram proprietários do terreno cuja parcela o R. ocupou sem qualquer título, designadamente expropriativo, para a construção de uma via pública e que com essa ocupação os RR sofreram prejuízos, que pretendem ver ressarcidos, por ficarem impedidos de usar, fruir e retirar qualquer utilidade da dita parcela e ainda pela desvalorização da parte remanescente do prédio ocupado.
Na verdade, os AA. não formulam qualquer pedido relacionado com a expropriação, pois ela nunca existiu, também não há um pedido de reivindicação ou restituição do prédio, impossível de satisfazer dada a construção da via e, além disso, o direito de propriedade dos AA. sobre o terreno em causa não se mostra contestado.
Estamos, pois, perante uma acção que visa a efectivação da responsabilidade civil extracontratual do R. Município – que é uma pessoa colectiva de direito público e de cujas atribuições faz parte a construção de uma via pública - por acto ilícito e culposo, pretendendo-se a sua condenação no pagamento de uma indemnização.
E, como se disse no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 02.03.2011, Proc. nº 09/10, “Desde que os actos praticados se enquadrem, como, no caso, se enquadram, no exercício das atribuições da ré, a apreciação da legalidade ou ilegalidade da sua actuação concreta, assim como das suas eventuais consequências em sede de responsabilidade civil, constitui uma questão de direito administrativo que, a título principal, só pode ser apreciada pelos tribunais administrativos (cfr. artigo 1º do ETAF)”.
Deste modo, e atento o disposto na alínea f) do nº 1 do art. 4º do ETAF, que estabelece competir aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo”, é de concluir ser da competência dos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento da presente acção (cfr., no mesmo sentido e em situações paralelas, os Acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 02.03.2011, Proc. 09/10, de 21.01.2016, Proc. 027/15 e de 03.11.2020, Proc. 058/19, todos consultáveis em www.dgsi.pt).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, Juízo Administrativo Comum.
Sem custas.

Lisboa, 6 de Abril de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.