Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:014/21
Data do Acordão:02/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
TRIBUNAIS COMUNS
Sumário:I - Estando em discussão a propriedade de um prédio, ou seja, saber se o prédio pertence à população do Pereiro ou ao domínio privado do Réu Município, tal questão é regulada nos termos do direito privado.
II - Este Tribunal dos Conflitos tem entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais não se inclui no art. 4º do ETAF, devendo estas ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual.
Nº Convencional:JSTA000P30589
Nº do Documento:SAC20230215014
Data de Entrada:04/12/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VILA REAL, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VALPAÇOS, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE MIRANDELA, UNIDADE ORGÂNICA
AUTOR: AA E OUTROS
RÉU: MUNICÍPIO DE VALPAÇOS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 14/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ, todos com os demais sinais nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo de Competência Genérica de Valpaços, acção contra o Município de Valpaços, formulando os seguintes pedidos:
A título principal:
“a. Seja declarado que o referido imóvel, por ter sido construído pelos populares da povoação do Pereiro, na década de cinquenta do século passado, sobre o prédio rústico supra identificado no nº 4 deste articulado, não integrava o património ou equipamento escolar do Estado à data em que foi publicado o DL nº 7/2003, de 15 de Janeiro, pelo que, não podia, o direito de propriedade sobre o mesmo, ser transferido para o réu ao abrigo do disposto no seu art. 26º.
b. Seja, em consequência, declarada a inexistência, por falta de título, do direito de propriedade do réu relativamente ao referido imóvel.
c. Seja declarado que esse imóvel é objecto de interesses e direitos difusos por parte dos cidadãos da povoação do Pereiro, da freguesia de Argeriz, do concelho de Valpaços, designadamente, por parte dos autores, que integram a respectiva comunidade, por ter sido construído, em comum, pelos que, então, faziam parte dessa comunidade, para nele serem realizadas atividades culturais, cívicas e de convívio social de que, todos eles, podem fruir sem apropriação individual.
d. Em consequência, seja, de imediato, o réu condenado a restituir a posse do mesmo à comunidade dos moradores do Pereiro na pessoa dos autores para o mesmo ser fruído por essa colectividade para os referidos fins culturais, de convívio e recreativos.
e. Seja o Réu notificado para se abster de destinar e adaptar esse edifício a casa mortuária ou qualquer outra finalidade.
f. Seja ordenado o cancelamento de todas e quaisquer inscrições, matriciais ou registrais, a favor do réu ou de terceiros, designadamente, (e uma vez que foi atribuído ao edifício), o artigo matricial nº ...66..., da freguesia de Argeriz, e a descrição registral nº ... da mesma freguesia.
g. Seja, o réu, condenado no pagamento das custas processuais.
A título subsidiário
h. Seja declarada a ilegitimidade do exercício de eventual direito de propriedade do réu sobre o supra identificado imóvel, por exceder manifestamente os limites da boa fé e pelos bons costumes.
i. Seja condenado no mais peticionado a título principal."
Em síntese, os Autores alegam que na década de cinquenta do século passado os populares da povoação do Pereiro construíram um edifício e autorizaram que ele fosse usado pelo Estado para o funcionamento da escola primária. Eram as pessoas da comunidade do Pereiro que procediam à limpeza e manutenção do edifício que sempre consideraram pertencer à comunidade da aldeia. Mais alegam que, desde a construção do edifício, “não ocorreu qualquer facto aquisitivo do direito de propriedade sobre o mesmo, susceptível de o integrar na esfera jurídica dominial do Estado ou das autarquias, designadamente, doação, compra e venda, usucapião, expropriação ou qualquer outro, legalmente previsto para o efeito” e que nele já não funciona o ensino primário desde o ano 2000.
Por isso, defendem que não pertencendo o imóvel ao Estado não podia transferi-lo para o património do Município. Estando o imóvel na posse do Município, que forçou as portas e substituiu as fechaduras, pretendem que a posse seja restituída à comunidade dos moradores para nele serem realizadas actividades culturais, cívicas e de convívio social.
O Réu contestou e, além do mais, arguiu a incompetência material do Tribunal.
Em resposta, os Autores defenderam a improcedência da excepção por se enquadrar “a relação jurídica material – tal como é invocada pelos autores – no âmbito da defesa do seu direito de propriedade, a causa de pedir e o pedido formulado assentam exclusivamente em regras de direito privado”.
Em 12.04.2018, no Juízo de Competência Genérica de Valpaços, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria e a absolver o Réu da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, a requerimento dos Autores, foi aí proferida sentença em 11.02.2021 a julgar verificada a excepção de incompetência em razão da matéria.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo de Competência Genérica de Valpaços, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela.
Entendeu o Juízo de Competência Genérica de Valpaços que “(…) a actuação do Réu decorreu no exercício de um poder público, já que o acto que lhe é imputado é o facto de se ter apoderado de um edifício arrogando-se que o mesmo é propriedade do município, e portanto propriedade do domínio público.
Ao contrário do que invocam os Autores, um particular não poderia actuar nos mesmos termos que actuou o Réu, precisamente pelo facto de este se estar a arrogar proprietário de tal edifício como pertencendo ao domínio público, e por isso actuando ao abrigo do seu ius imperii na qualidade de entidade pública, tratando-se por isso de uma relação jurídica administrativa”.
Por sua vez o TAF de Mirandela considerou que “Cuida-se, pois, primacialmente, de verificar se merece provimento o pedido de reivindicação da propriedade do prédio que os Autores reclamam ser da comunidade do Pereiro e não propriedade do Município Réu sendo, tudo o mais, consequência desse pedido que constitui o predicado fundamental da pretensão dos Autores. O facto de a reivindicação de propriedade privada contra a alegada actuação ilegal do Réu não ser da competência da jurisdição administrativa explica-se, não pela teoria da via de facto, mas apenas e somente porque se trata, em face da configuração dada pelos Autores, de definir primacialmente uma situação jurídica privada de afirmação do direito de propriedade sobre o prédio por parte destes, destituída, nesse plano primordial, de administratividade.
Assim sendo, é plenamente aplicável a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que vem entendendo que para o conhecimento de acções de reivindicação, a competência em razão da matéria cabe à jurisdição comum.”.

Vejamos.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)].
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do artigo 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada nos artigos 1º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, com várias alterações legislativas, sendo que no caso, atendendo à data de propositura da acção, é aplicável a versão decorrente do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Na presente acção os Autores invocam que o Município partiu do pressuposto (errado) de que o imóvel estava integrado no equipamento escolar devoluto cuja propriedade o Estado transferiu para o património dos Municípios, nos termos do artigo 26º do DL nº 7/2003, de 15 de Janeiro, para dele se apossar e registar a propriedade a seu favor. Sustentam que o imóvel pertence à população do Pereiro e que nunca pertenceu ao Estado, pelo que este não podia transferi-lo para o património do Município, existindo, assim, uma situação de incerteza relativamente ao direito de propriedade do imóvel em causa. Pretendem que seja declarada a inexistência do direito de propriedade do Réu e que seja condenado a restituir a posse do mesmo à comunidade dos moradores do Pereiro.
A Constituição, no seu artigo 84º, enumera os bens que necessariamente pertencem ao domínio público e, em relação a outros, remete para a lei a decisão sobre essa qualificação, bem como a definição do seu regime, condição de utilização e limites.
E, na sua sequência, dispõe o art. 14º do DL nº 280/2007, de 7 de Agosto (Regime Jurídico do Património Imobiliário Público) que “os imóveis do domínio público são os classificados pela Constituição ou por lei, individualmente ou mediante a identificação por tipos”. Já o DL nº 477/80, de 15 de Outubro [que criou o inventário geral do património do Estado] define no art. 2º como património do Estado “o conjunto de bens do seu domínio público e privado, e dos direitos e obrigações com conteúdo económico de que o Estado é titular, como pessoa colectiva de direito público” e, nos artigos seguintes, procede à especificação de bens que integram o domínio público e privado do Estado.
Para Ana Raquel Moniz “a noção de domínio público comporta uma clara «acepção institucional», em termos de significar um regime jurídico específico de direito público que tem por objecto certos bens (bens do domínio público, bens dominiais ou coisas públicas)” - cfr. Direito do Domínio Público in Tratado de Direito Administrativo, vol. V, pág. 15.
Em contraposição, o domínio privado da Administração “é formado pelo conjunto dos bens pertencentes a entidades públicas que estão, em princípio, ainda que não exclusivamente, sujeitos ao regime de propriedade estatuído na lei civil e, consequentemente, submetidos, sem prejuízo das derrogações de direito público em cada caso aplicáveis, ao comércio jurídico privado.”.
É, assim, “uma categoria de bens recortada exclusivamente de forma negativa ou residual – integrando todos os bens pertença de entidades públicas que não fossem qualificáveis como bens públicos” - cfr. Bernardo Azevedo, O domínio privado da Administração in Tratado de Direito Administrativo Especial, vol. III, pág. 46/47.
Os imóveis onde funcionam serviços da Administração não integram, portanto, obrigatoriamente a qualificação de bens do domínio público pelo que serão, em princípio, incluídos no domínio privado da Administração. O edifício onde funciona uma escola, no caso de ser propriedade da Administração, pertencerá ao seu domínio privado.
A acção tal como configurada pelos Autores, tendo presente o pedido e a causa de pedir, respeita a uma situação em que há conflito quanto à titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em causa. Os Autores na sua p.i. alegam factos que visam demonstrar a propriedade da população sobre o imóvel e excluir o mesmo direito por parte do Réu. Este, por sua vez, defende que aquele prédio urbano é sua propriedade por efeito da transferência de património do Estado para os Municípios.
Não está aqui em causa uma questão acerca de uma titularidade dominial, de modo a convocar a competência dos tribunais administrativos para dela conhecer, mas tão só a discussão sobre a titularidade do direito de propriedade.
De facto, pelo modo como vem estruturada a acção e atendendo à factualidade e pretensão jurídica apresentadas, trata-se de um pedido de reivindicação de propriedade em que se pede a declaração de propriedade sobre uma coisa e a condenação do réu, que a detém, a restituí-la. Está, assim, em discussão a propriedade de um prédio, ou seja, saber se o prédio pertence à população do Pereiro ou ao domínio privado do Réu Município, questão essa regulada nos termos do direito privado.
Este Tribunal dos Conflitos tem entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais não se inclui no art. 4º do ETAF, devendo estas ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual (cfr. Acórdãos de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19 e de 02.12.2021, Proc.03802/20.8T8GMR.G1.S1 (todos consultáveis in www.dgsi.pt).
Não estamos, por isso, perante um litígio subsumível no referido art. 4º do ETAF, ou emergente de uma relação jurídica administrativa para cujo conhecimento seja competente a jurisdição administrativa.
Ora, sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conclui-se que a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo de Competência Genérica de Valpaços.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.