Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:021/18
Data do Acordão:12/06/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ROSA TCHING
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete aos tribunais administrativos conhecer do litígio emergente de contrato celebrado entre o réu município e determinada empresa o qual foi antecedido de procedimento pré-contratual aberto e tramitado nos termos do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho.(*)
Nº Convencional:JSTA00071014
Nº do Documento:SAC20181206021
Data de Entrada:10/17/2018
Recorrente:A... LDA NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE SANTARÉM, SANTARÉM - INSTÂNCIA CENTRAL, SECÇÃO CÍVEL - J5 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Objecto:ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Legislação Nacional:Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos
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I - Relatório

1. A………….., Ldª, com sede na Rua ……….., nº …., …., sala …., Vagos, instaurou contra Município de Vila Nova da Barquinha, procedimento de injunção de obrigação emergente de transação comercial, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 106.025,48, a título de capital, juros e taxas de justiça.

Alegou, para tanto e em síntese, que a B……………. Ldª, celebrou com o réu um contrato de prestação de serviços de fiscalização, acompanhamento técnico, financeiro e coordenação em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho, na empreitada do complexo Escolar e Ciência Viva de Vila Nova da Barquinha, que a B………… prestou os serviços e emitiu diversas faturas que o réu não pagou e que celebrou com a B……….. em contrato de cessão de créditos que incluiu todos os créditos por esta detidos sobre o réu.

2. Notificado, o réu deduziu oposição, sustentando o incumprimento defeituoso do contrato na medida em que a B…………. não manteve na obra a equipa de fiscalização indicada na proposta e constante do caderno de encargos, razão por que deduziu aos montantes em dívida a quantia de € 94.380,00.

3. O procedimento de injunção foi remetido à distribuição, como ação declarativa, no Juízo Central Cível de Santarém - Juiz 5.

4. Foi proferido despacho saneador que declarou a regularidade da instância, após o que foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

5. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência, condenou o Município de Vila Nova da Barquinha a pagar a A………….. Ldª, a quantia de € 94.672,00, acrescida de juros, à taxa comercial, sucessivamente em vigor, desde a data de vencimento de cada uma das respectivas faturas até integral pagamento.

6. Inconformado com esta decisão, dela apelou o réu para o Tribunal da Relação de Évora, invocando, para além do mais, a incompetência do tribunal em razão da matéria.

7. Por acórdão proferido em 09.11.2017, o Tribunal da Relação de Évora, considerando que o contrato, cuja execução motivou o pedido da autora, foi submetido a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, decidiu que a competência material para apreciar tal pedido cabe à jurisdição administrativa, pelo julgou procedente a invocada exceção de incompetência absoluta do tribunal judicial, em razão da matéria, e absolveu o réu da instância.

8. Inconformada com esta decisão, a autora veio, nos termos do art. 101º, nº 2 do CPC, interpor recurso para o Tribunal de Conflitos, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem.

«1- O Tribunal da Relação de Évora, errou na aplicação do Direito ao julgar incompetente o Tribunal a quo em razão da matéria, fundamentando a sua decisão numa errada interpretação do disposto da alínea e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF.

2- O entendimento de a solução acolhida na alínea e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF atribuir aos Tribunais Administrativos a competência para as “questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público” também acolhe como relevante a natureza jurídica do procedimento que antecedeu (ou que devia ou podia ter antecedido) a sua celebração e não a própria natureza do contrato.

3. O contencioso dos contratos administrativos cabe sempre à jurisdição administrativa em qualquer caso, tenham sido, ou não, precedidos de procedimento de sua formação e haja, ou não, lei específica a prever a sua submissão a um procedimento administrativo de pré-contratação.

4. Sendo que a referência à existência de uma lei específica sobre a obrigação ou permissão de recurso a um procedimento de contratação administrativa não deve ser tomada num sentido mais ou menos rigoroso, de maior ou menor generalidade dessa lei.

5. Tal referência provém da inexistência de uma disposição geral do ordenamento jurídico, como a do artigo 181º do CPA, em relação aos contratos de direito privado (mesmo os da Administração) prevendo a procedimentalização administrativa da sua formação.

6- Assim, e ao abrigo da alínea e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, numa interpretação meramente literal, bastaria que exista uma qualquer lei, mais ou menos generalizante, a dispor que um contrato privado, seja da Administração seja de um sujeito jurídico privado, está, ou pode estar, sujeito a tal procedimento para que a estatuição desta alínea já funcione, o que redunda numa errónea interpretação da Lei.

7- Neste âmbito, assumem especial relevância os contratos celebrados na sequência dos procedimentos pré-contratuais actualmente previstos e regulados no Código dos Contratos Públicos (e anteriormente pelo DL nº 197/99 e DL nº 55/99) para que amiúde são remetidas as pessoas coletivas de direito privado, por mero efeito de mecanismos de financiamento ou de atribuição de apoios públicos, como é o caso dos autos.

8- Em tais casos, os litígios respeitantes à interpretação, validade e execução de um contrato de natureza privada, celebrado entre dois sujeitos privados, mas que que uma lei tenha sujeitado ou tenha admitido que fosse sujeito a um procedimento pré-contratual público seriam da competência dos Tribunais Administrativos.

9- A circunstância de um contrato ter sido precedido (ou seja precedível) de um procedimento pré-contratual público (o que significa que foi aquele procedimento, o tendente à celebração do contrato, que o mesmo é dizer à escolha do co-contratante e respectiva proposta, o sujeito às regras públicas de contratação) não conduz a que o contrato seja regulado por normas de direito público.

10 - O contrato de natureza privada manterá essa sua natureza própria, e por conseguinte é às normas de direito privado que o mesmo contrato se encontrará sujeito, encontrando-se regulado pelo direito substantivo privado, sendo à luz do quadro jurídico privado que hão-de ser dirimidas as questões relativas à sua interpretação e validade como as questões relacionadas com o seu cumprimento e incumprimento.

11- Compreende-se a opção legislativa de atribuir o conhecimento judicial das questões de interpretação, validade ou execução dos contratos privados precedidos, ou precedíveis, de procedimentos pré-contratuais de direito público aos tribunais administrativos quando elas se suscitem por via desse procedimento administrativo prévio, desde logo por efeito do contágio, da anulação do procedimento prévio (cujo conhecimento se encontra atribuído aos tribunais administrativos, por força do disposto na 1ª parte da alínea e) do nº 1 do artigo 4° do ETAF), da mesma forma se compreende que em situações de anulação do procedimento, as questões sobre a validade do contrato celebrado na sua sequência também devam ser colocadas aos tribunais administrativos, mas tal não é o caso do autos.

12- Também se compreende que as questões atinentes à interpretação, validade e execução do contrato celebrado na sequência de procedimento administrativo prévio assentes precisamente nos vínculos emergentes desse procedimento sejam também decididas pelos tribunais administrativos, mas este não é o caso sub judice.

13-Todavia já não é aceitável e, nem sequer, razoável que, por força desta norma (alínea e) do n.º 1 do artigo 4° do ETAF) a mera possibilidade (legalmente prevista) de a sua celebração poder ser precedida (e pode nem sequer o ter sido) por um procedimento pré-contratual público, conduza ao desvio/desaforamento dos litígios relativos à interpretação, validade e execução do contrato que é puramente civilístico dos tribunais judiciais para os tribunais administrativos.

14- Não é razoável e por isso inaceitável, que por força da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF a mera possibilidade (legalmente prevista) de a celebração de um contrato privado poder ser precedida (e pode nem sequer o ter sido) por um procedimento pré-contratual público, conduza ao desvio/desaforamento dos litígios relativos à interpretação, validade e execução daquele contrato, que é puramente civilístico, dos tribunais judiciais (a que pertence) para os tribunais administrativos.

15-Tal constituiria, na verdade, um desvio não justificado, à regra material de atribuição de competência.

16- A interpretação desta norma à luz do critério material constitucionalmente acolhido, permite, diríamos mesmo que impõe que os litígios relativos às questões de interpretação, validade e execução do contrato que nada tenham que ver com o procedimento pré-contratual que antecedeu a sua celebração, e que a ela conduziu, sejam decididos pelos Tribunais Judiciais, sem que estes se considerem materialmente incompetentes, para deles conhecerem por força de uma interpretação meramente literal daquela norma.

17- A interpretação assente unicamente na letra daquela alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF chamaria, nestes casos, os juízes dos tribunais administrativos a conhecerem questões de direito privado, reguladas por normas e institutos do direito privado, em afronto à regra da especialização da competência dos vários tribunais, tal como é actualmente entendida e acolhida na sua organização, quer no confronto entre a jurisdição administrativa e a jurisdição judicial quer dentro desta, no que respeita a distribuição pelos tribunais de competência especializada que a compõem, em sede de primeira instância, em razão do seu âmbito material e natureza da causa mas também da abrangência territorial e em função do valor da causa.

18- Não faz qualquer sentido retirar dos tribunais judiciais (a quem pertence a competência material para essas questões) as questões atinentes aos defeitos da obra, aos prazos da sua execução, determinação e pagamento do preço, etc, no que respeita aos contratos de empreitada privados só porque a sua celebração foi, por força de lei específica, precedida, por exemplo, por um procedimento de Concurso Público, quando, precisamente, a sua execução e cumprimento de tal contrato não se encontra regulada por normas de direito público (a das empreitadas de obras públicas, actualmente disciplinada no Código dos Contratos Públicos - artigos 343º ss.) mas pelas normas de direito privado (estatuídas nos artigos 1207.° ss. do Código Civil).

19- A circunstância de existir “lei específica que a submeta ou admita que seja submetido a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público” apenas tem como efeito isso mesmo, a sujeição da entidade particular a mecanismos (processualismos) de escolha do seu co-contratante com quem vai celebrar o contrato.

20- A regulação pública é ali meramente adjectiva (ainda que vá condicionar o conteúdo do contrato pelo papel determinante que os procedimentos públicos de formação dos contratos tem na sua conformação – vide designadamente os artigos 40.°, 56°, 57°, 70.°, 73.°, 74°, artigo 96.º do CPP) não se estendendo a regulação substantiva do contrato, que permanece privada.

21- O quadro jurídico substantivo é, por conseguinte, distinto e autónomo.

22- Nem existe qualquer elemento de conexão com o direito administrativo quando perante uma situação de incumprimento de um contrato desta natureza, o credor da prestação em falta recorra ao Tribunal para a obter coercivamente ou para ser ressarcido dos danos causados pelo incumprimento, como é, precisamente, o caso dos autos (ou cumprimento defeituoso).

23- Entendimento diverso afronta, a nosso ver, o critério material de repartição de competência jurisdicional, constitucionalmente acolhido, já que não existem razões justificativas subjacentes a tal opção legislativa.

24- Pelo contrário, o sistema judicial, no seu todo, encontra-se organizado de forma a que melhor se encontram talhados para dar resposta às questões relativas à execução de tais contratos os Tribunais Judiciais, quer por efeito da amplitude dos meios processuais de que dispõem para o efeito, ajustados a cada uma das concretas pretensões e objecto das ações, designadamente, e quando está em causa a mera obtenção do pagamento do preço, os meios processuais simplificados da injunção e o da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (previstos e regulados no DL. n.º 269/98, de 1 de Setembro), que permitem de forma ágil e simplificada a obtenção da tutela judicial adequada.

25- Meios processuais que não se encontram (pelo menos actualmente) ao dispor dos Tribunais Administrativos. Destrinças que também se repercutem em sede executiva, não estando os Tribunais Administrativos providos dos meios necessários (incluindo os informáticos) à efectivação da ação executiva prevista e regulada no processo civil (e que naturalmente é a aplicável, aliás em conformidade com o artigo 157°, n.º 2, do CPTA), não se encontrando talhados (nem preparados) sob todos os pontos de vista, para serem chamados a decidir acções relativas a diferendos de natureza privatística pendentes entre privados nem consequentemente a fazer aplicar e executar decisões judiciais dessa natureza.

26- A Recorrente peticionou na presente ação que a Recorrida fosse condenada ao pagamento de valores, titulados por facturas não liquidadas e devidos pela Ré/Recorrida relativamente a um contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes, acrescidos dos juros aplicáveis, vencidos e vincendos.

27- Em momento algum, esteve em causa qualquer litígio emergente de uma relação jurídica administrativa.

28- Está em causa o reconhecimento do pagamento de uma prestação de serviços titulada por um contrato celebrado entre as partes.

29- A Ré/Recorrida, nos articulados que apresentou, alega, por parte da Autora/Recorrente a existência de um cumprimento defeituoso/incumprimento parcial do referido contrato que desvaloriza a prestação efectuada, sendo tal responsabilidade apreciada nos termos dos arts. 799°, nº1 e 2 e 798º do CC (direito privado).

30- Invocando, ainda que, o contrato em causa é um contrato sinalagmático e dele emergem obrigações recíprocas e interdependentes para ambas as partes, e que face a tal incumprimento teria direito a redução do preço estabelecida nos termos do 1222° e 884°, ambos do CC (direito privado).

31- O conflito configurado nos presentes autos apresenta-se como uma relação litigiosa de direito comum e não como uma relação de direito administrativo.

32- A corrente maioritária da doutrina e da jurisprudência a competência dos Tribunais, afere-se, pelo pedido do Autor e pelos fundamentos que invoca (causa de pedir).

33- Ora, da causa de pedir apresentada pelo Autor, e da forma como este configurou a causa, resulta na submissão de tal litígio as regras de direito privado.

34- Levando em consideração o pedido e causa de pedir formulados pela Autora/Recorrente - o acordo de vontades celebrado pelas partes, traduz-se num contrato de prestação de serviços, atípico (artigos 1154º e 1155º do CC), a que são aplicáveis as regras do contrato de mandato (1156° do CC) e, atendendo ao cariz técnico envolvido na prestação, atinente ao controlo dos termos de execução daquela prestação de serviços são aplicáveis também as disposições do contrato de empreitada.

35- A própria Ré/Recorrida, ao defender-se alegando o cumprimento defeituoso daquele contrato submete-o às regras do Direito Civil.

36- Deste modo, não restam dúvidas que o contrato objecto do presente litígio, quer na forma como está configurada a causa de pedir, pela Recorrente, quer na forma como é elaborada a defesa da Ré/Recorrida, é regulado pelas normas de direito privado - e, apesar de nele ser parte uma autarquia - não se vislumbra que as partes quisessem submeter o contrato ao regime substantivo de direito público, não existindo assim, nenhum elemento de conexão relevante para conferir jurisdição à ordem dos TAF.

37- A Ré/Recorrida, apenas vem arguir a incompetência material quando “perde” a causa, recorrendo para o Tribunal Superior, invocando tal excepção, lançando mão daquilo a que podemos chamar de uma manobra dilatória para não cumprir a obrigação que sabe que lhe é exigível, já que até ao momento da prolação de sentença – que lhe foi desfavorável – sempre aceitou a jurisdição do Tribunal Judicial que julgou a ação em primeira instância.

38- “O despacho que conhecer de determinada questão relativa a competência em razão da matéria do tribunal, não sendo objecto de recurso, constitui caso julgado formal em relação a questão concreta da competência que nele tenha sido decidida.”

39- Da conjugação do disposto no art. 595°, nº 3 com o disposto no art. 97º, nº 1 C.P.C, resulta que o Tribunal poderá suscitar a todo o tempo a incompetência absoluta caso esta incompetência não pudesse ter sido conhecida através dos articulados, isto é, se não houver qualquer alteração nos factos que sustentam a competência do Tribunal, esta não poderá ser conhecida mais tarde, pois só desta forma se alcança a segurança jurídica das decisões judiciais.

40- Tendo o Tribunal Judicial declarado a sua competência material para julgar a ação em causa, tendo na sua posse os articulados das partes e todas as provas documentais juntas pelas partes, o despacho saneador, depois de transitado em julgado, fez caso julgado formal.

41- E não se diga que a questão da competência absoluta não foi concretamente suscitada já que não tendo a ora Recorrida suscitado a questão, aceitou, de forma tácita, a competência dos tribunais cíveis a que se assim não ser seria plasmar a possibilidade de toda a defesa não ser arguida em sede de contestação.

42- A Decisão em crise viola, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto no art.4°, alínea e) do ETAF, bem como o disposto no art. 595°, nº 3 do C.P.C.»

Termos em que requer seja revogado o acórdão em crise, declarando-se a competência material do Tribunal de 1ª instância, mantendo-se o ali integralmente decidido.

9. O recorrido, Município de Vila Nova da Barquinha, contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

10. O Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal dos Conflitos, emitiu douto parecer, subscrevendo a doutrina e o entendimento seguido no acórdão recorrido e concluindo no sentido de que o presente conflito de jurisdição deve ser resolvido com a atribuição de competência aos tribunais integrados na jurisdição administrativa.

11. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


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II – Fundamentação.

Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.°, n.º 3 a 5, 639.°, n.º 1, do C.P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa (Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo I, pág. 19, respetivamente.).

Assim, a esta luz, a única questão a decidir traduz-se em saber se são os tribunais administrativos e fiscais ou os tribunais comuns os competentes para conhecer do presente litígio.

Com interesse para a decisão desta questão, resulta dos elementos constantes dos autos que, na sequência de procedimento pré-contratual aberto para o efeito e tramitado nos termos do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de junho, o réu, Município de Vila Nova da Barquinha, celebrou com a B………….. Ldª, um contrato de prestação de serviços de fiscalização, acompanhamento técnico, financeiro e coordenação em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho, no âmbito da empreitada do complexo Escolar e Ciência Viva de Vila Nova da Barquinha, mediante o pagamento de uma contraprestação.

Mais resulta que, posteriormente, a autora, A…………., Ldª, celebrou com a B………… em contrato de cessão de créditos que incluiu todos os créditos por esta detidos sobre o réu, Município de Vila Nova da Barquinha.

Perante este quadro, entendeu o acórdão recorrido que essa competência pertence aos tribunais integrados na jurisdição administrativa, nos termos do disposto no artigo 4.°, n.º 1, alínea e), do ETAF, na medida em que estamos perante um litígio que tem por objecto a execução de contrato sujeito a um regime substantivo regulado, em sede de procedimento pré-contratual, pelo direito público.

Contrariamente, defende a autora/recorrente que, tendo em conta o pedido e à causa de pedir expressos na petição inicial, o acordo de vontades celebrados pelas partes, traduz-se num contrato de prestação de serviços, atípico (artigos 1154° e 1155º do CC), a que são aplicáveis as regras do contrato de mandato (1156° do CC) e, atendendo ao cariz técnico envolvido na prestação, atinente ao controlo dos termos de execução daquela prestação de serviços são aplicáveis também as disposições do contrato de empreitada, pelo que a competência para julgar a presente ação, cabe ao tribunal comum.

Mais argumenta que, tendo o tribunal judicial declarado, no despacho saneador, a sua competência material para julgar o presente litígio e tendo aquele despacho transitado em julgado, formou-se caso julgado formal, pelo que o acórdão recorrido não podia reapreciar a questão da competência material.

Vejamos, então, de que lado está a razão, importando, para tanto, referir que, tendo a ação dado entrada em juízo em 28.06.2013, é aplicável ao caso dos autos o Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, nos termos do seu art. 5°, nº 1.

E na parte que, aqui, interessa, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 4-A/2003 de 19/02; nº 107-D/2003, de 31/12; nº 1/2008, de 14.0; nº 2/2008, de 14.01; n° 26/2008, de 52/2008, de 28.08 e nº 59/2008, de 11.09; pelo DL nº 166/2009, de 31.07 e pelas Lei nºs 55-A/2010, de 31.12 e 20/2012, de 14.05), pois, de harmonia com o disposto no seu art. 5°, nº 1, o momento relevante para determinar a inclusão de um litígio na jurisdição administrativa é o da propositura da ação.


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Assim sendo e começando por indagar da invocada impossibilidade do acórdão recorrido reapreciar a questão da incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal judicial para conhecer do objeto da presente ação, diremos, desde logo, que, não tendo o Tribunal de 1ª instância, no despacho saneador, apreciado de forma expressa, concreta e fundamentada, esta exceção, limitando-se, antes, a afirmar, de forma tabular e genérica, a competência do tribunal «em razão da nacionalidade, matéria e da hierarquia», temos por certo, face ao disposto no art.595º, nº 1, al. a) e nº 3, do CPC, que esta decisão não ficou a coberto do caso julgado.

É que, de harmonia com o estabelecido no nº 3 do citado art. 595°, o despacho saneador só faz caso julgado formal, com o efeito definido no art.620°, nº 1 do CPC, «quanto às questões concretamente apreciadas».

De realçar que a doutrina do Assento de 27.11.1991, hoje com o valor dos acórdãos para uniformização de jurisprudência, continua perfeitamente válida face ao disposto neste art. 595°, nº 3, o que tudo equivale por dizer que o Tribunal da Relação não estava impedido de apreciar e decidir, em sede do recurso, a exceção da incompetência absoluta invocada pelo réu.

Assente este ponto, vejamos, então, qual a jurisdição competente, em razão da matéria, para o conhecimento do presente litígio emergente de um contrato que foi submetido a um procedimento pré-contratual de direito público.

A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.

O art. 211°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, na medida em que ela estende-se a todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Este princípio da competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as outras ordens de tribunais está consagrado ainda no art. 64° do Código de Processo Civil e art. 40°, n° 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário).

Por sua vez, estabelece o art. 212°, n.º 3 da C.R.P. que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções (...) que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».

E de harmonia com o disposto no art. 1º do ETAF, os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Por sua vez, estatui o art. 4°, n° 1 do mesmo diploma (Com a alteração introduzida pela Lei n° 59/2008, de 11.09.) que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

«(...)

e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público».

Constata-se, assim, ter o ETAF operado um alargamento da competência dos tribunais administrativos e fiscais em matéria de contratos, deixando, no dizer do Acórdão do STJ, de 22.10.2015 (processo nº 678/11.0TBABT.E1.S1) (Acessível in www.dgsi.pt/stj.), o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada e, passando a jurisdição administrativa a abranger, nas palavras Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (In “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Vol. I, Almedina, 2004, pág. 48.) «o conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes – de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares – e independentemente de, pela natureza, eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.)».

Dito de outro modo e na expressão de Mário de Aroso de Almeida (In “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2015, págs. 165 e 166.), atribuiu-se «à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes, de todos os contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, independentemente da questão de saber se a prestação do co-contraente pode condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público».

No mesmo sentido, afirmam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (In “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2.ª Edição, 2007, pág. 20.) que o citado art. 4º, nº 1, al. e) amplia o âmbito da jurisdição administrativa à apreciação de litígios «relativos à interpretação, validade e execução de qualquer tipo de contrato, desde que haja lei especial que diga que esse tipo específico de contrato (ou que um contrato com esse objecto) deve ser obrigatoriamente precedido (ou pode sê-lo) de um procedimento pré-contratual (concurso público, concurso limitado, negociação ou ajuste directo) regulado por normas de direito público (...)».

Quer tudo isto dizer, segundo o Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 11.03.2010 (processo nº 028/09) (Acessível in www. dgsi.pt.) que, por força da alínea e) do citado art. 4°, a delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais, passou a fazer-se com abstracção da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, bastando que «a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público» (No mesmo sentido, vide, entre outros, os Acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 19.12.2012 (processo n° 020/12) e de 31.01.2017 (processo nº 023/16).).

E nem se diga, como o faz a recorrente, não ser aceitável que a mera possibilidade da celebração de um contrato privado ser precedida por um procedimento pré-contratual público, a que alude o citado art. 4°, nº 1, alínea e), conduza ao desvio/desaforamento dos litígios relativos à interpretação, validade e execução de um contrato, que é puramente civilístico, dos tribunais judiciais para os tribunais administrativos e fiscais, porquanto não estamos perante uma situação de desaforamento, mas, antes, perante uma norma de atribuição de competência material.

Do mesmo modo e ainda que à primeira vista possa parecer, tal como sugere a recorrente, que a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais para conhecer de questões relativas à interpretação, validade e execução destes contratos colide com o princípio da reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, consagrado no nº 3 do art. 212º da CRP, temos por certo ser essa incompatibilidade meramente aparente, na medida em que este artigo não consagra uma reserva absoluta e competência dos tribunais administrativos e fiscais para a apreciação de matérias de natureza administrativa, no sentido de que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e de que só eles poderão julgar tais questões.

Trata-se, antes, segundo orientação pacífica na doutrina (Neste sentido, cfr. Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, 4ª ed., p. 107 e segs.; Sérvulo Correia, in “Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes”, 1995, pág. 254; Rui Medeiros, “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade”, in CJA, n.º 16, págs. 35 e 36; Jorge Miranda, “Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, in CJA, n.º 24, págs. 3 e segs.), de uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtrativos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.

Ou seja, o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas.

No mesmo sentido e de forma unânime, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem também entendido que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do n.º 3 deste art. 212º foi a abolição do caráter facultativo da jurisdição administrativa, rejeitando uma interpretação deste artigo conducente à consagração de uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos para a apreciação de matérias de natureza administrativa (Cfr., a título meramente exemplificativo, os Acórdãos n.º 372/94 publicado no DR II Série, n.º 204, de 3 de setembro de 1994; nº 347/97, publicado no DR II Série, n.º 170, de 25 de julho de 1997; n.º 458/99, de 13 de julho, publicado no DR, II Série, n.º 55, de 6 de março de 2000; n° 550/2000, de 13 de dezembro, publicado no DR, II Série, 1 de fevereiro de 2001 e n° 284/2003, publicado no DR, II Série, de 29 de maio de 2003.).

É também este o entendimento da jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal Administrativo (Cfr., entre outros, os Acórdãos do Pleno de 1998.02.18- rec. n.º 40247 e da Secção de 2000.06.14- rec. n.º 45633, de 2001.01.24 – rec. n.º 45636, de 2001.02.20 – rec. n.º 45431 e de 2002.10.31 – rec. n.º 1329/02.).

Posto isto e porque, no caso em apreço, o litígio emergente do contrato celebrado entre o réu, Município de Vila Nova da Barquinha, e a B…………… Ldª, foi antecedido de um procedimento pré-contratual aberto para o efeito e tramitado nos termos do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 junho, inquestionável se torna que o mesmo insere-se no âmbito de aplicação do artigo 4°, nº 1. al. e) do ETAF.

Improcedem, pois, todas as conclusões da autora/recorrente.


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III. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar improcedente o recurso interposto pela autora e, confirmando o acórdão recorrido, em declarar competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir a presente acção, os tribunais administrativos e fiscais.

Sem custas.


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Lisboa, 6 de Dezembro de 2018. – Maria Rosa Oliveira Tching (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – Graça Maria Lima de Figueiredo Amaral – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – António Pedro de Lima Gonçalves – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.