Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:021/22
Data do Acordão:11/08/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30170
Nº do Documento:SAC20221108021
Data de Entrada:06/21/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE FARO – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE FARO – JUIZ 3 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ
REQUERENTE: A…… – SOCIEDADE DE EMPREENDIMENTOS E INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A.
REQUERIDO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos
1. Relatório

A…… - Sociedade de Empreendimentos e Investimentos Imobiliários, SA foi condenada em processo de contra-ordenação por infracções ao Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Concelho de Faro - Edital nº 971/2015, publicado do Diário da República, 2ª série nº 210, de 27.10.2015 e ao DL nº 555/99, de 16/12, por:

"Infração 1
A ocupação do espaço público com colocação de relva e palmeiras numa área de 46m2 aproximadamente, e colocação de cerca em madeira numa extensão de 23 metros aproximadamente, junto ao alçado poente do prédio em causa [Avenida Nascente, Lote 2, freguesia de Montenegro, concelho de Faro, distrito de Faro], sem que para o efeito estivesse titulado por licença municipal, conforme Auto de Notícia PI-62-2019, proveniente do Serviço de Fiscalização, que aqui se dá por reproduzido.
(…)
Infração 2
A realização de obras de alteração e ampliação consubstanciadas no fecho do corredor de circulação de emergência localizado junto do alçado posterior do prédio, com colocação de portão executado em estrutura metálica e madeira, colocação de lajetas em alvenaria no solo, construção de escadas de madeira de acesso ao prédio, tudo numa área aproximada de 64m2 sem o respetivo licenciamento, conforme Auto de Notícia PI-62-2019, proveniente do Serviço de Fiscalização, que aqui se dá por reproduzido.
(…)
Da Decisão
Ponderada toda a factualidade, o grau de culpa do(a) arguido(a) e as exigências de reprovação que a ação concretamente praticada suscita, ao abrigo do disposto no artigo 33.º, artigo 54.º, n.º 2 e artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações, determino que seja aplicada ao (à) arguido(a):
Infração 1
Pela violação do Artigo 92.º, n.º 1, alínea f) do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Concelho de Faro - Edital nº 971/2015, publicado do Diário da República, 2ª série n° 210, de 27 de outubro de 2015, ilícito previsto e punido pelo Artigo 92°, n.º 1, alínea f) do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Concelho de Faro, ao pagamento de uma coima no montante de 350,00 € (trezentos e cinquenta euros).
Infração 2
Pela violação do Artigo 4.º n.° 2 alínea c) do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, com a redação conferida pela Lei n.º 79/2017, de 18 de agosto, ilícito previsto pelo Artigo 98. ° n.º 1 alínea a) e n.° 2 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, com a redação conferida pela Lei n.º 79/2017, de 18 de agosto, ao pagamento de uma coima no montante de 1.500,00 € (mil e quinhentos euros)", sendo que por estar em causa um concurso de infracções (art. 19°, nº 1 RGCO), foi a arguida condenada na coima única de € 1.500,00 (cfr. 77 a 79 verso dos autos).
A referida coima única foi aplicada por decisão de 29.10.2021 do Vereador da Câmara Municipal de Faro (por delegação de competências do Presidente da Câmara), no âmbito do processo de contra-ordenação nº3-113-2019.
Notificada da decisão final emitida no referido processo a arguida interpôs a respectiva impugnação judicial, nos termos do artigo 59° do DL nº 433/82, de 27/10 (RGCO) - cfr. fls. 155 a 158.
Remetidos os autos ao Ministério Público do Tribunal da Comarca de Faro, Instância Local de Faro este fez os autos presentes a esse Tribunal, nos termos do art. 62°, nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10.

Por decisão proferida pelo Juízo Local Criminal de Faro - Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, de 01.03.2022, foi declarada a incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para apreciação do recurso interposto pela arguida, em síntese, face ao disposto no art. 4°, nº 1, aI. I) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), considerando ser competente para o efeito o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé - cfr. fls. 205 e verso.
Após trânsito, foi o processo remetido ao TAF de Loulé.

Por despacho de 10.05.2022, o TAF de Loulé julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do recurso de impugnação contra-ordenacional, em matéria ambiental apresentando pela arguida A…., SA.

Transitada esta decisão, o TAF de Loulé suscitou o conflito negativo de jurisdição entre aquele Tribunal e o Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Local Criminal de Faro, para este Tribunal dos Conflitos - despacho de 29.11.2021.

Remetido o processo a este Tribunal dos Conflitos a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer em 28.06.2022, no sentido de que a competência para julgar a impugnação judicial da decisão punitiva em causa deverá ser atribuída aos Tribunais Comuns.

2. Os Factos

Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Local Criminal de Faro, Juiz 3 e o TAF de Loulé.
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar a impugnação judicial apresentada pela arguida A…., Sociedade de Empreendimentos e Investimentos Imobiliários, SA, na Câmara Municipal de Faro em 11.02.2022 e remetida pelo Ministério Público ao tribunal em 18.02.2022, respeitante à aplicação da coima única de €1.500,00 pelo Vereador da Câmara de Faro.
Entendeu o Juízo Local Criminal de Faro que, face ao disposto na nova redacção do art. 4°, nº 1, aI. I) do ETAF, dada pelo DL nº 214-G/2015, de 2.10 e que entrou em vigor em 01.09.2016, compete à jurisdição administrativa e fiscal conhecer da impugnação judicial em matéria de contra-ordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo. O que era o caso dos autos.
Remetido o processo ao TAF de Loulé este, por sua vez, considerou-se incompetente em razão da matéria, por entender, em síntese, que "4. No caso em apreço, a decisão condenatória impugnada aplicou à arguida uma única coima, pela prática, em concurso, de duas contraordenações [cfr. artigo 19.º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, que instituiu o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, (…).
Porém, apenas uma dessas contra-ordenações constitui ilícito por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo: a realização de obras de alteração e ampliação sujeitas a prévio licenciamento sem o respectivo (alvará de) licenciamento, prevista pelo artigo 98.º, n.º 1, alínea a) [em conjugação com o artigo 4.°, n.º 2, alínea c)] e punida pelo n.° 2 do mesmo preceito, ambos do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, que estabeleceu o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE).
Com efeito, a outra contra-ordenação imputada à arguida, por ocupação do espaço público sem licença municipal, que se encontra prevista no artigo 92.°, n.º 1, alínea f) do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Concelho de Faro, emerge da violação de normas que disciplinam a ocupação do espaço público municipal, e não em matéria de urbanismo (cfr., sobre o conceito de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, para este efeito, entre outros, Acórdãos do Tribunal de Conflitos proferidos nos processos n.º 23/18, de 27 de Setembro de 2018, n.º 37/18, de 21 de Março de 2019, ou n.º 064/19, de 3 de Novembro de 2020).
No entanto, a decisão condenatória ora impugnada, por haver aplicado uma coima única, «envolve um juízo global e unitário aferidor da responsabilidade da arguida relativo a todos os ilícitos contraordenacionais pela mesma cometidos, que não é cindível, e, como tal, a sua impugnabilidade contenciosa, o controlo da sua legalidade é, também, ele unitário e será, necessariamente, acometido e efetuado, igualmente, por um único tribunal, não havendo, nem sendo possível, uma divisão parcelar da impugnação e da responsabilidade da arguida de modo atomístico, infração a infração, partindo a competência por vários tribunais quanto a cada segmento do ato administrativo sancionador (cfr. Acórdão do Tribunal de Conflitos nº 23/18, de 27 de Setembro de 2018)."

E, no seguimento do decidido no Acórdão deste Tribunal dos Conflitos no Proc. nº 23/18, considerou que na acepção da alínea I), do n° 1 do art. 4° do ETAF conjugado com os arts. 40°, nº 1, 130º, nº 2, aI. d), da LOSJ e 64° do CPC, são da competência dos tribunais administrativos os litígios impugnatórios de decisões que hajam aplicado coimas apenas fundadas em normas respeitantes às regras que no direito administrativo disciplinam a construção e à dos instrumentos de execução dos planos, ficando excluídas todas as impugnações contenciosas relativas às demais matérias, nomeadamente, ambientais, em sede de ilícito de mera ordenação social, e por não existir expressa disposição em contrário.

Assim, no caso, não existindo norma expressa que, aplicando-se ao caso concreto, disponha em sentido contrário, entendeu que o julgamento da presente impugnação judicial, não compete aos tribunais administrativos, mas sim aos tribunais judiciais, concretamente ao Juízo Local Criminal de Faro do Tribunal Judicial da Comarca de Faro (art. 130°, nº 2, aI. d) da LOSJ).

Vejamos.
Dispõe o art. 4°, nº 1, alínea I) do ETAF, na redacção introduzida pelo DL nº 214-G/2015, de 2/10, que:
"1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
I) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;"
Nos termos deste normativo e na redacção em vigor para o caso, o legislador previu, pois, a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, mas restringido à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.

Como se expendeu no Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 27.09.2018, Proc. 023/18, no qual estava em causa um concurso de infracções relativo à violação de normas em matéria urbanística com violação de normas de outros domínios que não o urbanístico, quanto à opção legislativa relativa àquela alínea I) do nº 1 do art. 4° do ETAF:
«Daí que a opção tenha passado, nos termos da alínea I) do n.º 1 do art. 04º do ETAF, pela atribuição da competência aos tribunais administrativos apenas das impugnações contenciosas de decisões que hajam aplicado coimas fundadas na violação de normas de Direito Administrativo em matéria de urbanismo [aqui entendido num âmbito que não abarca as regras relativas à ocupação, uso e transformação do solo (planos/instrumentos de gestão territorial), nem as regras relativas ao direito e política de solos, mas que inclui, mormente, as regras respeitantes à disciplina do direito administrativo da construção e à dos instrumentos de execução dos planos (v.g., reparcelamento, licenciamento e autorização de operações de loteamento urbano e de obras de urbanização e edificação)], ficando excluídas, salvo expressa disposição em contrário, todas as impugnações contenciosas relativas aos demais domínios/matérias tipificados em sede de ilícito de mera ordenação social e, assim, por este abrangidos
E que, no caso de estarem em causa vários ilícitos contra-ordenacionais de natureza diferente, a sua apreciação: «envolve um juízo global e unitário aferidor da responsabilidade da arguida relativo a todos os ilícitos contraordenacionais pela mesma cometidos, que não é cindível, e, como tal, a sua impugnabilidade contenciosa, o controlo da sua legalidade é, também, ele unitário e será, necessariamente, acometido e efetuado, igualmente, por um único tribunal, não havendo, nem sendo possível, uma divisão parcelar da impugnação e da responsabilidade da arguida de modo atomístico, infração a infração, partindo a competência por vários tribunais quanto a cada segmento do ato administrativo sancionador.»

No Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 03.11.2020, Proc. nº 064/19 expendeu-se o seguinte: "(… ) o legislador previa, pois, a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, mas restringido à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, como aliás é timbre da jurisprudência do Tribunal dos Conflitos".

Ou seja, tratando-se, no caso concreto, de contra-ordenação que não se integra exclusivamente no conceito de matéria urbanística, antes tendo sido aplicada uma coima única em concurso [por ocupação do espaço público sem licença municipal, que se encontra prevista no art. 92.°, n.º 1, alínea f) do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Concelho de Faro, emergente da violação de normas que disciplinam a ocupação do espaço público municipal, e não de matéria de urbanismo, e pelo ilícito previsto pelo art. 98.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12 (este sim respeitante a matéria de urbanismo)], está tal coima única excluída do âmbito da citada alínea I) do nº 1 do art. 4° do ETAF.

Com efeito, o direito do urbanismo é constituído pelo conjunto de normas e institutos públicos que, no quadro das directivas e orientações definidas pelo ordenamento do território, se destinam a promover o desenvolvimento e a conservação cultural da urbe (cfr. neste sentido o Ac. deste Tribunal de 21.03.2019, Proc. nº 037/18).

Ora, a previsão do referido art. 92°, nº 1, alínea f) do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Concelho de Faro, emergente da violação de normas que disciplinam a ocupação do espaço público municipal, não se integra no conceito de matéria respeitante a urbanismo, respeitando a matéria sobre a referida ocupação do espaço público. E, não existindo expressa disposição em contrário, a impugnação contenciosa não fundada apenas em normas respeitantes às regras que no direito administrativo disciplinam a matéria tipificada em sede de ilícito de mera ordenação social como respeitante a urbanismo, está excluída da previsão do art. 4°, nº 1, aI. l) do ETAF e, da competência dos tribunais administrativos (cfr., os Acs. deste Tribunal dos Conflitos de 23.09.2018 (acima citado) e de 19.06.2019, Proc. 010/19).
Pelo exposto, acordam em julgar que a competência para a referida impugnação judicial cabe aos tribunais da jurisdição comum, concretamente ao Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Local Criminal de Faro - Juiz 3.

Sem custas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.