Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:06936/22.0T8BRG.S1
Data do Acordão:03/01/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete aos tribunais judiciais julgar um pedido de pagamento de despesas de representação que o autor lhe considera devidas por ter sido gestor executivo da ré, uma empresa municipal.
Nº Convencional:JSTA000P30686
Nº do Documento:SAC2023030106936
Recorrente:AA
Recorrido 1:BRAGAHABIT – EMPRESA MUNICIPAL DE HABITAÇÃO DE BRAGA – E.M.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 24 de Maio de 2022, AA instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga uma acção administrativa de reconhecimento de direitos contra a Bragahabit - Empresa Municipal de Habitação de Braga, EM, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 57.517,16, acrescida de juros vencidos e vincendos, “contados desde a data do vencimento de cada uma das mensalidades supra referidas, até efetivo e integral pagamento”.


Alegou, em suma, ter sido nomeado e ter exercido funções de administrador executivo da ré entre Dezembro de 2013 e Dezembro de 2021, sem que lhe tenha sido pago “o abono mensal para despesas de representação” a que tinha direito.


A ré contestou, excepcionando, além do mais, a incompetência absoluta dos Tribunais Administrativos, em razão da matéria.


Sustentou, em síntese, que o contrato por via do qual o autor exerceu na ré as funções de administrador executivo é um contrato de mandato, celebrado nos termos da lei comercial, que se subordina ao direito privado/comercial, pelo que “quaisquer créditos emergentes dessa relação contratual não dizem respeito a uma relação jurídico administrativa, nem envolvem a aplicação de preceitos de direito publico /administrativo.”.


No despacho saneador, de 27 de Setembro de 2022, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga – Unidade Orgânica 1 julgou procedente a excepção de incompetência material do Tribunal Administrativo e absolveu a ré da instância.


Concluiu que nascendo o litígio de uma relação jurídica privada (mandato), ainda que estabelecida com a Administração, o seu conhecimento está excluído do âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos, cabendo aos tribunais comuns.


O autor requereu a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Braga, o que veio a ser deferido por despacho de 9 de Novembro de 2022 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga – Unidade Orgânica 1.


Por decisão de 15 de Novembro de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Braga – Juiz 5 julgou-se também materialmente incompetente, absolvendo a ré da instância.


Para tanto, afirmou que está em causa uma relação jurídica administrativa, sujeita ao regime do Direito Administrativo. Concretizou que “o autor foi nomeado diretor executivo da ré, uma empresa municipal, tendo existido, desde modo, uma relação de direito público. A nomeação de um diretor executivo é feita por ato administrativo (art.º 13, n.º 2, EGP) e o exercício de funções está submetido a um contrato de gestão (art.º 18.º, EGP). E as empresas empresariais municipais estão sujeitas a tutela (art.º 30.º da Lei n.º 53-F/2006).”.


Por despacho de 19 de Dezembro de 2022, o Juiz 5 do Juízo Central Cível de Braga, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga suscitou a resolução do conflito negativo de jurisdição junto do Tribunal dos Conflitos.


2. Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça para resolução do conflito negativo de jurisdição, foi determinado pelo Senhor Presidente que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).


Notificadas para se pronunciar, querendo, as partes nada disseram.


O Ministério Público proferiu parecer, no sentido de a competência caber “à jurisdição dos Tribunais Judiciais, concretamente ao Juízo Central Cível de Braga – 5”.


3. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.


Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido do autor, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).


Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).


Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.


A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.


Sobre a noção de “relação jurídica administrativa”, escreveu José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53): “na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)


A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.


Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.


Em concordância com esta opção legislativa, “excluem-se, assim, em princípio, do âmbito substancial da justiça administrativa as questões administrativas de puro direito privado, isto é, as decorrentes da actividade de direito privado da Administração (…) – pág. 54.


4. Cumpre, assim, definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio caberá aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.


Pretende o autor que lhe seja reconhecido o direito a receber o abono mensal para despesas de representação, pelas funções de administrador executivo que exerceu para a ré.


De acordo com o artigo 19.º da Lei n.º 50/2012 (que estabelece o regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais), a ré é uma empresa local de natureza municipal; é, portanto (n.º 4 do mesmo artigo 19.º) um pessoa colectiva de direito privado. Rege-se pela Lei n.º 50/2012, “pela lei comercial, pelos estatutos e, subsidiariamente, pelo regime do setor empresarial do Estado, sem prejuízo das normas imperativas neste previstas” (artigo 21.º).


Segundo o disposto no n.º 1 do artigo 25.º, “Sem prejuízo do disposto na presente lei, a natureza e as competências dos órgãos sociais das empresas locais obedecem ao disposto na lei comercial”, sendo que “Os membros do órgão de gestão ou de administração das empresas locais são eleitos pela assembleia geral” (n.º 1 do artigo 26.º).


Nos termos do n.º 4 do artigo da 30.º, “Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o Estatuto do Gestor Público, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, alterado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, e alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 8/2012, de 18 de janeiro, é subsidiariamente aplicável aos titulares dos órgãos de gestão ou de administração das empresas locais.”.


O autor alega que a conduta da ré é violadora do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 28.ºdo Decreto-Lei n.º 71/2007, segundo os quais “1 - A remuneração dos gestores públicos integra um vencimento mensal que não pode ultrapassar o vencimento mensal do Primeiro-Ministro.


2 - A remuneração dos gestores públicos integra ainda um abono mensal, pago 12 vezes ao ano, para despesas de representação no valor de 40 /prct. do respectivo vencimento.”.


Como o Tribunal dos Conflitos já teve a ocasião de decidir, num caso semelhante (acórdão de 11 de Janeiro de 2017, www.dgsi.pt, proc. n.º 027/16), a relação de mandato que se estabelece com o gestor “é uma relação jurídica de direito privado, estranha pois, à ambiência contratual administrativa”


O litígio agora em apreciação, tal como o que então foi considerado, não se desenrola no âmbito de uma relação jurídica administrativa, pressuposto necessário para que possa ser incluído do âmbito da jurisdição administrativa. (n.ºs 1 e 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).


Inclui-se, assim, no âmbito da competência dos Tribunais Judiciais.


Concretamente, na competência do Juízo Central Cível de Braga (artigos 40.º, n.º 1 e 117,º, n.º 1, a) da Lei n.º 62/2013 e n.º 1 do artigo 71.º do Código de Processo Civil).


5. Em cumprimento do disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, delibera-se que é competente o Juízo Central Cível de Braga (artigos 40.º, n.º 1 e 117,º, n.º 1, a) da Lei n.º 62/2013 e n.º 1 do artigo 71.º do Código de Processo Civil).


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


Lisboa, 1 de Março de 2023. – Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.