Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:06/14
Data do Acordão:06/26/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
CONFLITO NEGATIVO.
CONTRATO DE FACTORING
Sumário:São competentes os Tribunais Administrativos para resolver um litígio emergente da pretensão de exigir o pagamento de créditos, devidos por uma entidade pública, decorrentes da execução de um contrato de empreitada de obras públicas e transmitidos por meio de um contrato de factoring (Dec. Lei 171/95, de 18/7, com as alterações do Dec. Lei 186/2002, de 21 de Agosto) ao seu actual detentor.
Nº Convencional:JSTA00068810
Nº do Documento:SAC2014062606
Data de Entrada:01/31/2014
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 1 JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:SENT TAF CASTELO BRANCO
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO ADM
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO NEGATIVO.
Legislação Nacional:ETAF02 ART4 N1 E F.
CPA91 ART178 N2.
LOFTJ99 ART18 N1.
Jurisprudência Nacional:AC CONFLITO N027/12 DE 2014/01/16.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos
1. Relatório

O Senhor Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, verificando a existência de um conflito negativo de jurisdição, notificou as partes para os efeitos previstos no artigo 112º, n.º 1, do novo CPC e a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos.

Neste Tribunal de Conflitos o Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser reconhecida a competência dos tribunais judiciais.

Foram ouvidas as partes para, querendo, se pronunciarem, mas nada disseram.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido ao Tribunal de Conflitos para julgamento.

2. Fundamentação

2.1. Matéria de facto

Os factos e ocorrências processuais relevantes são as seguintes:

a) O A……………. SA deduziu, no Tribunal Judicial de Castelo Branco, uma acção executiva com vista ao pagamento de facturas emitidas pela ARS Centro IP, das quais é adquirente por via da celebração de contrato de “factoring” com a empresa B……………. SA, arguindo que a cedência das facturas em causa foi devidamente comunicada à ARS IP, entidade que aceitou tal cessão.

b) Termina pedindo a liquidação da obrigação no valor de € 271.234,84 euros e juros de mora vencidos e vincendos.

c) As referidas facturas respeitavam à empreitada “Projecto/construção do Centro de Saúde de Oleiros”.

d) A UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DE CASTELO BRANCO, EPE veio opor-se à execução alegando não ser parte legítima, invocando ainda a incompetência do tribunal judicial em razão da matéria.

e) O Tribunal Judicial de Castelo Branco por decisão já transitada em julgado declarou-se incompetente, em razão da matéria, considerando competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.

f) O Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco por decisão também transitada em julgado declarou-se incompetente, em razão da matéria.

2.2. Matéria de direito

A questão a decidir é a de saber qual a jurisdição competente para decidir uma oposição à execução que tem como títulos executivos diversas facturas adquiridas pelo exequente (A………….) através de um “contrato de factoring” à emitente de tais facturas B…………….., SA” e emitidas sobre a ARS Centro IP.

O Tribunal Judicial de Castelo Branco, como já referimos, considerou que os tribunais judiciais eram incompetentes, em razão da matéria. Para tanto, e na parte que agora interessa, entendeu que “… o contrato de empreitada de onde emergem os alegados créditos exequendos está sujeito à disciplina da contratação pública nos termos sobreditos. “(…)” Dai que, por força dos disposto no art. 4º, n.º 1, al. e) e f) do ETAF, não pode deixar de se concluir que os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para conhecer do objecto dos autos, o que se reconhece pela presente decisão (…)”.

O Tribunal Administrativo e Fiscal invocando um acórdão do Tribunal de Conflitos de 12-1-2006, proferido no proc. 7/2005, considerou que o “Tribunal que vai apreciar o processo não terá que pronunciar-se sobre o contrato de empreitada, mas essencialmente sobre a legitimidade da ARS – Centro IP, na presente execução. Em suma, a situação que se nos apresenta é regulada pelas normas de direito civil, está em causa uma obrigação autónoma em que se discute apenas, a legitimidade na acção e o compromisso de pagar, sem discutir a dívida subjacente”. Daí que tenha declinado a competência dos Tribunais Administrativos para decidir a causa.

Como se vê a divergência decorre de se entender que a obrigação que tem como sujeito activo o exequente é uma obrigação de direito público ou de direito privado. A opção por uma outra natureza jurídica da obrigação exequenda coloca-se, neste caso, porque o exequente não é o titular originário dessa obrigação. O titular originário é a B……………….., SA, e o seu direito de crédito emerge, sem qualquer dúvida de um contrato de empreitada sujeito a normas de direito público. Mas, como as obrigações exequendas foram transmitidas ao A…………… através de um “contrato de factoring”, a questão que se coloca é a de saber se as obrigações (sem dúvida emergentes de um contrato de empreitada sujeito ao regime de direito público) continuam com esta natureza jurídica depois de transmitidas através de um contrato de “factoring”.

Este Tribunal de Conflitos apreciou a questão no acórdão de 12-1-2006, proferido no Conflito 07/05 (citado na decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco) atribuindo a competência aos tribunais judiciais. Contudo, nos acórdãos de 19-12-2012, proferido no Conflito 020/12, com dois votos de vencido, e de 16-1-2014, proferido no Conflito 027/13, decidiu de modo contrário.

Neste último acórdão, de 16-1-2014, proferido no conflito 027/12, referiu-se:

“(…)

O contrato de “factoring”, legalmente definido pelo art. 2.º do DL n.º 171/95, de 18-07, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 186/2002, de 21 de Agosto, consiste na tomada de créditos a curto prazo por uma instituição financeira (factor), que os fornecedores de bens ou serviços (aderentes) constituem sobre os seus clientes (devedores), prestando, nalguns casos, serviços adicionais, em troca de uma retribuição, assumindo o factor o risco de cobrança dos créditos cedidos, relativamente aos devedores. Caracterizam o referido contrato as circunstâncias de: i) o contrato nascer com a aquisição, pelo factor, dentro de um prazo determinado, de créditos existentes na esfera jurídica do aderente ou de prestação de serviços; ii) mediante a aquisição de créditos não cobrados, o factor assumir-se como uma entidade que adianta meios financeiros ao cliente; iii) com a aquisição de instrumentos creditícios em dívida e de cobrança não certa, o factor assumir os riscos económicos e de actividade adstritos aos devedores dos créditos cedidos (De conferir os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-01-2013, Revista n.º 345/03.8TBCBC.G1.S1, relator Cons. Gabriel Catarino e de 13-09-2012, Revista nº 384/09.5TVPRT.P1.S1, relatora Cons.ª Ana Paula Boularot.).

Por seu turno, advêm para o factor as seguintes obrigações: i) adquirir os créditos (ou a prestação de serviços) nas condições contratualmente acordadas; ii) pagar ao aderente os créditos cedidos, de acordo com o plano de aquisição aprovado; iii) outorgar a antecipação de fundos ao aderente, pela forma convencionada; iv) proceder à cobrança dos créditos em cujos direitos se haja subrogado, de acordo e pela forma como o cedente havia estabelecido com o devedor.

E, finalmente, para o aderente decorrem do contrato as seguintes obrigações: i) informar o factor do comportamento dos devedores cedidos e contribuir para a cobrança dos créditos cedidos; ii) remeter ao factor o que tiverem pago directamente os devedores cedidos, a fim de cumprir o compromisso de reembolso pactuado; iii) ceder ao factor os documentos e instrumentos de conteúdo creditício objecto da aquisição.

O devedor cedido não participa no acordo de vontades, apesar de, como resulta das regras próprias da cessão de créditos (artigo 583º do Código Civil), o acordo só produzir efeitos em relação a ele, conquanto que lhe seja notificado, ainda que extrajudicialmente, ou desde que aceite (de forma tácita ou expressa) a cessão de créditos operada (De conferir os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-01-2013, Revista n.º 345/03.8TBCBC.G1.S1, Relator Gabriel Catarino e de 13-09-2012, Revista n.º 384/09.5TVPRT.P1.S1, Relatora Ana Paula Boularot, ambos disponíveis in www.itij.pt.).

(…)”

Concluindo:

o crédito peticionado pela autora advém, não do contrato de factoring, mas do contrato de empreitada, sendo este aliás o único em que interveio o réu Município (em que eram sujeitos o aí empreiteiro, factorizado no contrato celebrado com a autora – artigos 295º e 236º a 238º, todos do Código Civil)”. Entendeu-se, portanto, que o crédito exequendo tinha a sua fonte no contrato de empreitada e não no contrato de factoring.

Apesar da dificuldade da questão, evidenciada pela divergência neste Tribunal de Conflitos, concordamos com este último entendimento.

Efectivamente, com o contrato de “factoring” ocorre uma transmissão (cedência de créditos) e não uma novação, e daí a possibilidade do devedor opor ao cedente os meios de defesa que podia opor ao cessionário, nos termos do art. 585º do C. Civil (como referiu o acórdão deste Tribunal de Conflito de 19-12-2012, proferido no Conflito 020/12).

Tal significa que, apesar da cedência do crédito, não ocorre a extinção da obrigação de direito público (que no presente caso emergia de um contrato de empreitada) e o surgimento, em seu lugar, de uma nova obrigação de direito privado.

Consequentemente a obrigação que é objecto da pretensão executiva tem a sua fonte no contrato de direito público e, portanto, os litígios a ela relativos devem ser dirimidos nos Tribunais Administrativos – uma vez que, no presente caso é indiscutível a natureza pública do contrato de empreitada subjacente (projecto/construção do Centro de Saúde de Oleiros) – art. 4º, 1, f) do ETAF.

3. Decisão

Face ao exposto os Juízes do Tribunal de Conflitos acordam em julgar competente em razão da matéria do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.

Sem custas.

Lisboa, 26 de Junho de 2014. – António Bento São Pedro (relator) – Raul Eduardo do Vale Raposo Borges – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – José Adriano Machado Souto de Moura – Jorge Artur Madeira dos Santos – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.