Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:04/18
Data do Acordão:06/28/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ROQUE NOGUEIRA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete à jurisdição administrativa conhecer da ação, instaurada contra o Estado, pedindo o pagamento de uma indemnização, por danos causados pela indevida delonga de processo crime que correu termos em Tribunal Judicial.(*)
Nº Convencional:JSTA000P23471
Nº do Documento:SAC2018062804
Data de Entrada:01/15/2018
Recorrente:A......, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TAF DE BEJA E O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BEJA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DE BEJA - JUIZ 2
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Processo nº:4 /18

Acordam no Tribunal dos Conflitos:

I - Relatório.
No Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, A……….propôs, em 1/2/16, acção de condenação contra o Estado Português, pedindo o pagamento por este de uma indemnização no valor global de € 57.000,00.
Para o efeito, alegou que foi visado num processo judicial cuja tramitação perdurou por 9 anos e 7 meses, sendo que, quer o Tribunal de 1ª Instância, quer o Tribunal da Relação, incorreram em erro judiciário, ao terem-no condenado pela prática dos crimes de evasão e de detenção de arma proibida, na pena única de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
O réu contestou, arguindo, além do mais, a incompetência absoluta do tribunal.
Foi proferido despacho saneador, onde se concluiu pela incompetência do tribunal em razão da matéria, tendo o réu sido absolvido da instância.
Transitado em julgado aquele despacho, foram os autos remetidos ao Tribunal Judicial da Comarca de Beja, onde foi igualmente proferido despacho saneador, que declarou a incompetência em razão da matéria daquele Tribunal para conhecimento da causa, no segmento respeitante ao pedido de condenação do réu no pagamento da indemnização no montante de € 10.000,00, pela violação da obrigação de prolação de decisão em tempo razoável.
Transitado em julgado este último despacho, foi solicitada a resolução do conflito negativo de jurisdição a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal, o M.º P.º pronunciou-se no sentido da competência da jurisdição administrativa para o conhecimento do pedido de indemnização pela violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável.

Cumpre decidir.
II - Fundamentos.
Dúvidas não restam que estamos perante um conflito negativo de jurisdição, já que dois tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, declinaram o poder de conhecer da mesma questão, tendo transitado em julgado as respectivas decisões (art.109°, do CPC).
Sendo que, nos termos do disposto no art. 110°, n° 1, do mesmo Código, tal conflito deve ser resolvido pelo Tribunal dos Conflitos.
Note-se que a questão cujo conhecimento foi declinado por ambos os tribunais tem a ver, apenas, com o pedido de condenação do réu no pagamento de uma indemnização por danos causados pela indevida delonga do processo crime que, sob o nº 174/06.7TAVD, correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Beja.
Assim, a resolução do conflito negativo em questão deve ser confinada a esse concreto aspecto.
Por outro lado, atenta a data da entrada em juízo da petição inicial, não se suscitam dúvidas acerca da aplicabilidade ao caso dos autos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais com as alterações que nele foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de Outubro (cfr. n.º 1 e n.º 2 do artigo 15.º deste último diploma).
A única questão que importa apreciar consiste em saber qual o tribunal competente para conhecer dos referidos pedido e causa de pedir: se o tribunal comum ou se o tribunal administrativo.
Nos termos do art.211º, nº1, da CRP, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Os arts.64º e 65°, do C.P.C., reportam-se, respectivamente, à primeira e à segunda vertentes relevantes para a definição da competência em razão da matéria, permitindo operar a distinção entre as causas da competência dos tribunais judiciais e as da competência dos inseridos nas outras ordens jurisdicionais, por um lado, e pressupondo a distinção, dentro dos tribunais judiciais, entre os de competência genérica e os de competência especializada, por outro.
O citado art.64° - «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» - foi reproduzido no nº1, do art.40º, da Lei nº 62/2013, de 26/8, que estabeleceu as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário.
Poder-se-á dizer que a competência em razão da matéria é a competência das diversas ordens de tribunais, dispostas no mesmo plano, atendendo a lei ao objecto da causa, encarado sob o ponto de vista da natureza da relação substancial pleiteada, e obedecendo a demarcação da respectiva competência a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes, na perspectiva de que as causas possam ser decididas por quem tenha formação jurídica adequada.
Nos termos do disposto no art.38º, nº1, da citada Lei de Organização do Sistema Judiciário, a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
Para determinação da competência do tribunal em razão da matéria, importa ter em linha de conta, além do mais, a estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na acção, no momento em que a mesma é intentada (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág.91, e, entre outros, o Acórdão do STJ, de 18/11/04, disponível em www.dgsi.pt).
No caso, a causa de pedir do mencionado pedido assenta essencialmente na alegação de que o processo-crime n.º 174/06.7TAVD do Tribunal Judicial da Comarca de Beja esteve pendente entre 6 de Março de 2006 e 8 de Setembro de 2015, sendo que a delonga na respectiva tramitação lhe ocasionou danos de índole não patrimonial.
Aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais (art.212º, nº3, da CRP).
Os tribunais judiciais constituem, pois, a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não descriminada (competência genérica), enquanto os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limitada às matérias que lhe são especialmente atribuídas.
O que significa que todas as acções, que exorbitem das matérias especificamente conferidas aos tribunais especiais "hoc sensu" cabem na esfera geral da competência indiscriminada dos tribunais judiciais.
Deste modo, será através da interpretação das disposições determinativas da competência dos tribunais administrativos - e da verificação do enquadramento ou não da situação em apreço no âmbito dessa competência - que se há-de concluir pela afirmação positiva da competência dos tribunais administrativos ou pela negativa competência residual dos tribunais comuns, in casu, dos tribunais cíveis.
Consideram-se como administrativas não só as relações estabelecidas entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos, como também aquelas "(…) em que um dos sujeitos envolvidos (seja ele público ou privado) actua no exercício de um poder de autoridade tendo em vista a realização de um interesse público legalmente definido (…)” e ainda "(…) aquelas em que esse sujeito actua no cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos pelo interesse público (…)” (Cita-se MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Almedina, voI. I, págs. 25 e 26.).
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª ed., pág.815, «Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal».
José Carlos Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa (Lições), 8a ed., págs.57 e 58, a propósito da questão sobre o que se entende por «relação jurídica administrativa», considera prudente, na falta de uma clarificação legislativa, partir-se do entendimento do conceito constitucional no sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo», com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
Porém, a importância deste critério revela-se, actualmente, algo esbatida, porquanto, como já salientavam MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA (Ob. cit., pág. 26.), a administratividade de uma relação jurídica não coincide necessariamente com os "factores que delimitam o âmbito da jurisdição administrativa pois (…) há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se tratam de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado.”.
Esse dissídio foi agora plenamente assumido pelo legislador do DL n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, ao preconizar, no n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que "Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.".
É a essa luz que se deve entender a previsão do artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, onde o legislador da reforma de 2015 concentrou a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, aí enumerando os litígios cuja resolução lhe é confiada.
E fá-lo de forma que, a partir da entrada em vigor desse diploma, se deve ter por taxativa, reservando um papel subsidiário ao critério constitucional (Assim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA,Manual de Processo Administrativo, 3.ª Edição, págs. 158 a 160.), ainda que se possa afirmar que a maioria das normas nele contidas se limitam a concretizá-lo em face de determinadas matérias e questões (Assim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4.ª Edição, págs. 21 e 22.).
Tendo em conta o caso dos autos, a previsão que interessa é a da alínea f) do nº1, do citado art.4°, nos termos da qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo”.
A alínea a) do n.º 4 do artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais exclui, por seu turno, do âmbito da competência dos tribunais administrativos a “apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso”.
A pertinência desta previsão justifica-se pela independência das jurisdições (cfr. alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 209.º da Constituição da República portuguesa) (Assim, entre outros, o Acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no processo n.º 015/10, de 28 de Outubro de 2010, acessível em
http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ad82e261e0c7fda38025780f004f6302?OpenDocument.), encontrando-se a noção de erro judiciário contida no n.º 1 do artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
É certo que o autor também invocou, como causa de pedir, o erro judiciário cometido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Beja.
No entanto, como já resulta do atrás exposto, aquele tribunal não recusou a sua competência para conhecer dessa questão, pelo que, nesta parte, não existe qualquer conflito que cumpra dirimir.
Face à redacção original do art.4°, nº 1, al.f), do ETAF, entendia-se, pacificamente, que o preceito contemplava “todas as acções de responsabilidade por actos e omissões da função jurisdicional que se fundem na (má) administração da justiça, no seu deficiente funcionamento, «designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável», seja qual for a jurisdição a que pertença o tribunal em causa. Trata-se, em suma, dos danos derivados das insuficiências ou deficiências logísticas dos tribunais, dos denominados «erros de actividade», por infracção das regras processuais por que se pauta o exercício da função jurisdicional (incluindo os seus serviços de apoio)”(Cita-se MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., pág. 60 e, entre outros, o Acórdão do Tribunal de Conflitos n.º 0340, de 21 de Março de 2006, acessível em http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ c11bedd5ee359fe980257172004fb483?OpenDocument.).
A revisão empreendida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de Outubro neste domínio não modificou os dados essenciais da questão (A este respeito, v. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, ob. cit., pág. 170.), atendo-se a aspectos que se podem qualificar como meramente formais (Sobre a extensão e alcance das alterações introduzidas, v. ANA FERNANDA NEVES, Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF, in EPública - Revista Electrónica de Direito Público - págs. 250 e 251, consultável em http://e-publica.pt/v1n2/pdf/VoI.1-N%C2%BA2-Art.07.pdf.).
Atento o exposto, tendo em conta o pedido e a causa de pedir em relação aos quais foi suscitado o presente conflito, dúvidas não restam que tem aplicação ao caso o disposto naquela al.f).
Na verdade, tendo o autor invocado, como causa de pedir, a excessiva delonga do processo (sem a imputar, em concreto, a uma actuação individualizada) e os prejuízos por ela ocasionados, torna-se evidente que a lide não se circunscreve ao também invocado erro judiciário.
E não se diga que, perante a invocação desse erro, se mostrava ajustada a aplicação indistinta do disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
É que, como se escreveu perante situação similar no Acórdão do Tribunal de Conflitos n.º 032/16 (De 8 de Março de 2017, acessível em http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ fa4e389ac0e733dd802580e200416f36?OpenDocument.):“Decerto que tal competência do TAF não se estenderia à pesquisa de um qualquer erro judiciário cometido nalgum dos tribunais comuns citados na petição; mas uma declaração de incompetência do TAF nesse estrito domínio não suprimia a sua originária competência para conhecer do resto. E, assim sendo, o TAF de Braga não podia recusar «tout court», como fez, a detenção de competência para processar e julgar a acção «sub specie». Ou seja: a incompetência do TAF para apreciar uma das «causae petendi» não o dispensava de enfrentar a acção pelo prisma da outra causa de pedir, integrada no seu «munus»; pois, quanto àquela, o TAF usaria os normais mecanismos de detecção da falta de pressupostos adjectivos, tendentes à emissão de pronúncias absolutórias da instância - que podem ser parciais.”.
Haverá, pois, que concluir que os tribunais administrativos detêm a medida de jurisdição necessária para apreciar e decidir o segmento da presente lide sobre o qual se suscitou o conflito.

III - Decisão.
Pelo exposto, decide-se resolver o conflito negativo de jurisdição, atribuindo-se a competência material para conhecer daquele segmento ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja.
Sem custas.
Lisboa, 28 de Junho de 2018. – Jorge Manuel Roque Nogueira (relator) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Olindo dos Santos Geraldes – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – António Alexandre dos Reis – José Augusto Araújo Veloso.