Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:036/14
Data do Acordão:12/09/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:PAULO SÁ
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P18351
Nº do Documento:SAC20141209036
Data de Entrada:07/04/2014
Recorrente:INSTITUTO DA HABITAÇÃO E DA REABILITAÇÃO URBANA, I.P., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE LOULÉ 2º JUIZO COMPETÊNCIA CÍVEL E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:

I. No Tribunal Judicial de Loulé, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P. (doravante IHRU) intentou acção de condenação, sob a forma sumária, contra A………….., na qual peticiona a declaração de resolução do contrato de arrendamento invocado e que se lhe ordene a entrega da fracção autónoma, livre e devoluta de pessoas e bens, por parte dos réus ou de quem lá se encontre, bem como a condenação do réus no pagamento das rendas vencidas, no montante de € 6.259,84, vincendas até efectiva entrega do locado, acrescido de juros de mora (p.i. aperfeiçoada).

Para tanto alega o autor:
O Instituto de Gestão do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), na qualidade de proprietário, celebrou, em 01.07.1988, de contrato de arrendamento com o réu, sobre uma fracção autónoma que identifica.
O autor sucedeu ao IGAPHE, nos termos do Decreto-Lei n.º 175/2012, de 02 de Agosto, mantendo as atribuições e competências inerentes à sucessão operada, designadamente quanto ao património imobiliário de que é actualmente o proprietário e quanto às posições contratuais em contratos e acordos já celebrados, em 1 de Junho de 2007, pelo Instituto Nacional de Habitação (INH), pelo Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) e pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), neste caso, com excepção do património classificado - cfr. art.º 23.º, n.º 1, do citado diploma legal.
O réu não pagou até ao presente 92 meses de renda vencidos, apesar de várias interpelações para pagar e de diversos acordos judiciais e extrajudiciais.

Regular e pessoalmente citado, o réu não contestou, não constituiu mandatário, nem interveio por qualquer outra forma.

O Tribunal de Loulé veio a declarar-se incompetente, em razão da matéria para conhecer da causa, considerando competente o tribunal administrativo.

Interposto recurso pelo A, a Relação julgou improcedente a apelação e consequentemente, confirmou a sentença recorrida.

O Autor, continuando inconformado, intentou Recurso Jurisdicional para o Tribunal de Conflitos, nos termos do artigo 101.º, n.ºs 1 e 2 do NCPC, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) A conclusão sobre a competência da jurisdição administrativa alcançada pelo acórdão impugnado encontra-se escorada numa incorreta interpretação, rectius, desconsideração do pedido e causa de pedir que constituem a demanda;
B) O ora Recorrente apresentou um pedido e causa de pedir exclusivamente civilistas, em que avultam a existência de um contrato de arrendamento, celebrado em 1988, com cláusulas típicas de tal tipo contratual (sem que exista qualquer regulamentação jurídico-pública aplicável), o incumprimento da obrigação de pagamento da renda, que se manteve inalterada desde o início da relação contratual, requerendo, com base em tal, a resolução, judicial, do contrato e a devolução do imóvel, portanto, uma ação de despejo - exclusivamente baseada em disposições civis -, que não sofreu contestação;
C) Sendo que, ao partir de pressupostos errados, com desconsideração do caso concreto, o aresto iniciou, já eivado de erro, o trilho que, mal, levou à decisão de que a presente demanda se enquadra no âmbito da jurisdição administrativa, assim interpretando mal e violando o disposto nos artigos 64.º do Código de Processo Civil (“CPC”) e o disposto no artigo 4º, n.º 1, alíneas e) e f) do ETAF
D) Portanto, mal andou o aresto em crise ao considerar que o contrato em apreço se podia subsumir no âmbito do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, bem como mal andou ao insinuar, sem concretização, a aplicabilidade da alínea e) do referido preceito;
E) O que, aliás, parece ficar a dever-se a uma tendência, resultante de uma incorreta interpretação, nomeadamente dos arestos deste Tribunal de Conflitos, de que qualquer menção que haja a arrendamento social, conceito nem sequer tratado e que abrange uma multiplicidade de realidades distintas, faz com que seja acionado um pré-conceito de que o caso é para ser tratado pela jurisdição administrativa. Porém, tal entendimento superficial, que a mais das vezes desconsidera, como sucedeu no caso em apreço, a concreta configuração do litígio, é, como o demonstra, nomeadamente, a jurisprudência deste Tribunal, errado
F) Isto porque, no caso em apreço e em primeiro lugar, é evidente que não está em causa uma relação jurídico-administrativa, está em causa a resolução, judicial, de um contrato de arrendamento, por falta de pagamento da renda convencionada; incumprimento que legitima, comummente, a resolução em todos os contratos de arrendamento, encontrando-se o Recorrente, no caso em apreço, despojado de qualquer ius imperii, não atuando no âmbito de deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público;
G) Por outro lado, é evidente, como tem sido jurisprudência pacífica deste Tribunal de Conflitos, que inexistem no caso em apreço quaisquer dados ou elementos que sustentem a existência de um qualquer procedimento pré-contratual, ou, sequer, que tendo existido um procedimento qualquer para escolha do arrendatário que o mesmo possa ser subsumido no conceito de lei específica que o preveja;
H) Falece, assim, qualquer pretensão de submeter o presente litígio à jurisdição administrativa, por via do que se prevê na alínea e) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, tal como, de alguma forma, se insinuou na decisão sob apreço, que mal andou, portanto, em tal segmento;
I) Adiciona! e decisivamente, urge concluir, face ao supra exposto, que o contrato em apreço não é passível de ser enquadrado em qualquer dos três casos identificados na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º, sendo que, no que respeita à expressa submissão a um regime de direito público, deve ter-se, pelos termos do contrato, nomeadamente pela falta de previsão de qualquer poder a ser exercido por ato administrativo, por liminarmente arredada;
J) Por último, das três constelações de casos analisadas por este Tribunal, respeitantes a contratos de arrendamento com entidades públicas, resulta que o caso em apreço não se enquadra em nenhuma das situações em que a competência tem sido deferida à jurisdição administrativa, sendo de notar que, em coerência com a jurisprudência deste Tribunal, não estando em causa qualquer regime jurídico-público, nomeadamente, fixação de quantum de renda apoiada, com base no disposto no Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de maio, a apreciação de uma causa civil de extinção do contrato, como a caducidade ou a resolução por incumprimento, deve pertencer à jurisdição comum;
K) Razão pela qual, mal andou o acórdão impugnado, que, ao decidir como decidiu, interpretou mal e violou o disposto nos artigos 64,º do Código de Processo Civil (“CPC”) e o disposto no artigo 4.º , n.º 1, alíneas e) e f) do ETAF.

Foi dada vista ao Ministério Público que emitiu parecer no sentido da competência dos tribunais administrativos.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação.

A. De Direito

O Tribunal de Loulé fundou a sua decisão de incompetência no facto de considerar os tribunais administrativos como os competentes em razão da matéria para conhecer da acção, porquanto, o contrato em causa respeita a habitação do Estado, no âmbito da designada habitação social com exigências e pressupostos de atribuição específicos e com características de direito público.

Nesta mesma linha, decidiu a Relação de Évora.

Vejamos.

Conforme dispõe o art.º 209.º da Constituição da República Portuguesa, CRP, existem diversas ordens ou categorias de tribunais (Cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada, 3.ª ed., p. 805), uma das quais a dos tribunais judiciais, que são, nos termos do artigo 211.º da lei fundamental, os «comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».

A competência residual dos tribunais judiciais resulta também do art.º 18.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, a Lei n.º 3/99, de 13.01 e do art.º 64.º do CPC, com a redacção dada pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, ao referir que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Outra ordem ou categoria é a dos tribunais administrativos e fiscais, aos quais, de acordo com o preceituado no art.º 212º, n.º 3, da Constituição, compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

A competência dessa jurisdição encontra-se ainda prevista e regulada nos art.ºs 1.º e 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19/02).

Aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, competindo-lhes, nomeadamente, conhecer das acções sobre responsabilidade civil dos entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso, do mesmo passo que lhes é retirada competência para conhecimento de acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público (arts. 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 1.º e 4.º do ETAF).

A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns” (Cf. Acs STJ de 27.05.03, Proc. nº 03A1376 e de 11.12.03, Proc. n.º 03B3845, disponível em http://www.dgsi.pt).

A competência material está ligada à defesa de interesses de ordem pública, pelo que o seu conhecimento deve preceder qualquer outro, podendo ser arguida pelas partes ou suscitada oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão sobre o fundo da causa, nos termos dos art.ºs 101.º, 102.º, n.º 1, 288.º n.º 1, a), e 494.º, a), do Código de Processo Civil e art.º 13.º do CPTA.

Como é jurisprudencialmente incontroverso, a competência do Tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca - cf. Acs. do STJ, de 20.2.1990, BMJ n.º 394, p. 453, e de 9.5.95, CJSTJ, ano II, tomo II, p. 68, entre vários.

Porém, MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, p. 90), acerca do critério aferidor da competência material, ensina:

“São vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei).
Constam das várias normas que prevêem a tal respeito.
Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes).
A competência do tribunal - ensina Redenti (vol. 1, pág, 265), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.
E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes”.

Esta última referência também tem que ser acentuada, pois que a competência em razão da matéria afere-se não apenas nos termos objectivos mas igualmente nos termos subjectivos em que a acção é posta (vide Ac. STA de 13.05.93, Rec.31.478).

Temos, assim, que não deixar de considerar os sujeitos activos e passivos, não perdendo de vista que “[a] competência funcional da justiça administrativa, consiste, como regra geral, em julgar as acções e recursos destinadas a dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas” sendo certo que, com esta expressão, “teve o legislador constitucional e ordinário, em vista apenas os vínculos que intercedem entre a administração e os particulares (ou entre actividades distintas) emergentes do exercício da função administrativa e não genericamente autoritária de qualquer agente do Estado” (Ac. STA de 01.10.96, Rec. 39.389).

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 815) dizem, em comentário ao artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República:

“Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n.º 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.

Também VIEIRA DE ANDRADE (A Justiça Administrativa, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 55) sustenta: “Esta questão sobre o que se entende por “relação jurídica administrativa”, sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração (...)”.

Importa, assim, verificar se o caso cabe no âmbito da competência dos tribunais administrativos, de acordo com o critério substancial das “relações jurídicas administrativas e fiscais” do n.º 3 do artigo 212.º da CRP, reproduzido no ETAF, ampliado e restringido em algumas situações previstas no artigo 4.º do ETAF - cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I pp. 26 e 27; e VIEIRA DE ANDRADE, ob, cit. pp. 53 e ss.

Para esse efeito, é entendimento jurisprudencial e doutrinário constante o de que “a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, relevando, designadamente, a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos” cfr., por todos, o acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 20.09.2012, proc. 02112.

O contrato de arrendamento para habitação celebrado em 01.07.1988, que se discute na presente acção, teve por outorgantes, de um lado, o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado e do outro o réu A…………...

O autor sucedeu ao Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado, nos termos do Dec. Lei n.º 175/2012, de 02/08, mantendo as atribuições e competências inerentes à sucessão operada, designadamente quanto ao património imobiliário de que é actualmente o proprietário e quanto às posições contratuais em contratos e acordos já celebrados, em 1/06/2007, pelo Instituto Nacional de Habitação (INH), pelo Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) e pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), neste caso, com excepção do património classificado - cfr. art.º 23º. n.º 1 do citado diploma legal.

O imóvel locado pertencia, ao tempo da celebração, ao IGAPHE, ao qual sucedeu o ora A. e situa-se no Bairro do IGAPHE, em ……….., tratando-se, nomeadamente, de arrendamento que respeita a habitação do Estado, no âmbito da designada habitação social.

A habitação social está sujeita a um regime único de atribuição, independentemente da entidade proprietária ou administradora, de todos os seus fogos (cfr. Dec. Lei nº 797/76, de 6/11).

As cláusulas contratuais relativas ao contrato invocado afastam-se do regime normal do contrato de arrendamento, como se constata, desde logo, da cláusula III que prevê uma renda técnica, da cláusula IV que prevê duas sanções pecuniárias consoante a mora do arrendatário, da cláusula IX/1) e 4) onde se estabelecem as situações em que o senhorio pode resolver o contrato antes do termo e designadamente quando o inquilino incorra em qualquer irregularidades para obtenção da casa ou quando este não informe o senhorio de quaisquer alterações nos seus rendimentos e agregado familiar) e da cláusula X (as partes contratuais comprometeram-se a ajustar os valores da renda de acordo com o rendimento do agregado familiar, nos termos da legislação em vigor, se, nos termos da Portaria n.º 288/83, de 17/3, for concedido ao inquilino um subsídio equivalente à diferença entre a prestação pessoal de renda e a renda técnica).

Toda esta regulamentação, conjugada com o facto de arrendamento ter por objecto imóvel, propriedade de instituto público, apela à aplicação de um regime de direito público na atribuição da habitação arrendada e na regulação contratual.

O Dec. Lei n.º 797/76, de 6-11, criou os “serviços municipais de habitação social”, com a função de “gestão do parque habitacional do respectivo município, a atribuição, segundo os regimes legalmente fixados, dos fogos construídos ou adquiridos para fins habitacionais pelo Estado, seus organismos autónomos, institutos públicos personalizados, pessoas colectivas de direito público, instituições de previdência e Misericórdias situados na respectiva área” (art.1.º).

Como se refere na obra “Arrendamentos Sociais”, do C.I.J.E, da Fac. de Direito da Universidade do Porto, ed. Almedina, 2005 (ainda antes da publicação da Lei n.º 21/09), “a relação de arrendamento social é encabeçada pelo Estado mas também, e sobretudo, pelos organismos autónomos, pelos institutos públicos, autarquias locais e IPSS, sempre que tenham construído ou adquirido prédios com apoio financeiro do Estado. São estes os arrendamentos sujeitos a renda apoiada, de acordo com o art. 82º, nº 1, do RAU” (pp. 32 e 33).

Não pode, é certo, sustentar-se que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público, o contrato em causa, atentas as cláusulas referidas.

Para tanto, como sustenta AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2013, Almedina, pp 163 e s., citado pelo recorrente, teriam de optar “de modo expresso e inequívoco, por qualificar como administrativo ou submeter a um regime de Direito Administrativo” ou “reconhecida de modo expresso e inequívoco, a possibilidade de o contraente público exercer específicos poderes de autoridade no âmbito da relação, através da prática de actos administrativos” e não apenas “através de meros direitos potestativos, passíveis de serem estipulados no âmbito de relações de natureza privada.”

Mas isso não é relevante. Na verdade, os prédios dos institutos públicos, como era o caso, estavam sujeitos ao regime de renda apoiada - artigo 9.º da Lei 4685, de 20/9. E a sua atribuição sempre obedeceu, por razões de interesse público, a concurso prévio, regulado por normas de direito administrativo - cfr, DL 797/76, de 6/11 (alterado pelo DL n.º 261/77, de 22/6), DR. n.º 50/77, de 11/8, e Decreto 49034, de 28/5/69 (cap. III).

E as cláusulas a que já atrás se fez referência apontam no sentido de estarmos perante um contrato sujeito ao regime de renda apoiada, celebrado na sequência da atribuição da habitação, administrativamente regulada.

Este Tribunal dos Conflitos, por acórdão de 25.9.12 (proferido no conflito n.º 12/11), já tomou posição sobre o assunto; pois disse que o regime da renda apoiada, constante do DL n.º 166/93, «é claramente um regime de direito público», sendo as suas normas «regras de direito administrativo».

A jurisprudência deste TC tem perfilhado esta orientação de atribuir a competência do julgamento deste tipo de acções à jurisdição administrativa para o conhecimento dos litígios relativos ao arrendamento social.

Não obstante a maioria dessa jurisprudência se reportar a contratos de arrendamento celebrados após a vigência do DL 166/93, a sua fundamentação é transponível para casos como o presente em que o objecto do arrendamento e o regime da sua atribuição (que também nos remete para a hipótese do artigo 4.º/1/e) do ETAF) igualmente relevam do direito público administrativo.

Neste sentido vejam-se os acórdãos proferidos em 18.04.13, proc. 028/12 (onde se faz alguma história sobre a evolução legislativa nessa matéria), em 11.12.13, proc. 030/12, em 16.01.14, proc. 015/13, em 29.01.14, proc. 060/13, em 6.02.14, proc. 058/13, em 13.02.14, proc. 064/13, em 29.04.14, proc. 065/13, em 15.05.14, proc. 014/14 e em 26.06.14, proc. 040/13.

Não havendo nota de discrepância jurisprudencial, não se justifica que se pugne mais afincadamente pelo rebate da argumentação do recorrente ou pelo reforço da sustentação da decisão recorrida.

III. Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal de Conflitos em negar provimento ao presente recurso, em confirmar, pelas razões expostas, o acórdão recorrido e em atribuir a competência para se conhecer da acção dos autos à jurisdição administrativa.

Sem custas.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2014. - Paulo Arminio de Oliveira Sá (relator) - José Francisco Fonseca da Paz - Fernanda Isabel de Sousa Pereira - Alberto Augusto Andrade de Oliveira - João Moreira Camilo - Vítor Manuel Gonçalves Gomes.