Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:063/13
Data do Acordão:02/06/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:COSTA REIS
Descritores:ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO
ARRENDATÁRIO
RESTITUIÇÃO
IMÓVEL
Sumário:I – A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, repetidamente, afirmado que a competência para julgar os litígios emergentes de contratos celebrados ao abrigo do regime do citado DL166/99, regime de renda apoiada, decorrentes de questões relacionadas com a fixação do valor das respectivas rendas e com a forma do seu pagamento cabe aos Tribunais Administrativos.
II – Todavia quando, em razão da celebração de um contrato ao abrigo daquele diploma, surge um litígio não em função de questões relacionadas com os referidos aspectos mas, apenas e tão só, com a validade da transmissão da posição de arrendatário e com a consequente legitimidade do Réu em ocupar o imóvel que dele é objecto, isto é, com questões que nada têm a ver com o regime estabelecido no citado diploma, o mesmo não pode ser convocado para dirimir este litígio.
III – Se assim é e se o pedido que foi formulado foi o da condenação do Réu a reconhecer que o imóvel pertence ao Município de Cascais e a consequente restituição da sua posse o que está em causa é um pedido tipicamente civilístico.
IV – Por isso, cabe à jurisdição comum conhecer da acção onde os referidos pedidos foram formulados fundados na mencionada causa de pedir.
Nº Convencional:JSTA000P17026
Nº do Documento:SAC20140206063
Data de Entrada:11/20/2013
Recorrente:EMGHA - EMPRESA DE GESTÃO DO PARQUE HABITACIONAL DO MUNICÍPIO DE CASCAIS, E.M..,NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA E O 1º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES E DE COMARCA DE CASCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 63/13.

Acordam no Tribunal de Conflitos:

1. EMGHA – Empresa de Gestão do Parque Habitacional do Município de Cascais, E.M., intentou, no Tribunal de Família e Menores de Cascais, contra A……, acção declarativa, sob a forma sumária, pedindo que o Réu fosse condenado a reconhecer que o imóvel identificado na petição inicial era propriedade do Município de Cascais e a restituí-lo livre e devoluto de pessoas e bens e a pagar-lhe determinadas quantias em dinheiro relacionadas com a sua ocupação.
Alegou, em síntese, que o mencionado prédio era propriedade do Município de Cascais e que foi dado de arrendamento ao pai do Réu para fins habitacionais e que, tendo aquele falecido, o dito contrato caducou por não se verificar nenhum dos pressupostos que permitia a sua transmissão para o Réu. Todavia, e apesar disso, este encontra-se ocupá-lo sem questão qualquer título e recusa-se a restituí-lo, impedindo dessa forma que o mesmo seja atribuído a pessoas carenciadas.

O Tribunal de Família e Menores de Cascais julgou-se incompetente, em razão da matéria, para o conhecimento do litígio e, por razões opostas, igual pronúncia negativa foi emitida TAF de Sintra para onde o processo foi remetido. O Tribunal de Cascais por entender que o litígio se refere a um arrendamento celebrado ao abrigo do regime da renda apoiada e que o complexo normativo deste regime é constituído por regras de direito público, pelo que cabia aos Tribunais Administrativos a competência para o seu julgamento. O TAF de Sintra por entender que o pedido principal formulado nesta acção era o de condenação do Réu a reconhecer que o mencionado imóvel pertencia ao Município de Cascais e a restituí-lo livre de pessoas e bens e que, sendo assim, esta acção mais não era do que uma acção de reivindicação prevista no art.º 1311.º do CC para a qual a jurisdição administrativa era incompetente.
É, assim, seguro que se encontram em conflito duas decisões já transitadas, proferidas por Tribunais de diferentes jurisdições, rejeitando cada uma delas a competência para conhecer do mérito da presente acção e atribuindo-a reciprocamente.
Cumpre decidir esse conflito o qual, no entender do Ilustre Magistrado do M.P., deve ser dirimido com a atribuição da competência aos Tribunais Administrativos.

2. É sabido que, nos termos constitucionais, "os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais" (art.º 211.º/1 da CRP), e que aos tribunais administrativos "compete o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas" (seu art.º 212.º/3), normativo que foi vertido para a legislação ordinária pelo ETAF onde se dispôs que “os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.” (seu art.º 1.º/1) e que nessa matéria, entre outras, lhes compete resolver questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja um entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público” [seu art.º 4.º/1/f) com sublinhado nosso]

O que quer dizer que, por um lado, a jurisdição dos Tribunais Judiciais se define por exclusão, visto lhes caber julgar todas as acções que não sejam legalmente atribuídas a outros Tribunais, e, por outro, que os conceitos de relação jurídica administrativa e de contrato administrativo são decisivos quando se trata de identificar a competência dos Tribunais Administrativos. Sendo que, tratando-se de contrato, a jurisdição administrativa só poderá ser chamada a decidir nas circunstâncias constantes da transcrita al.ª f) do nº 1 do art.º 4.º, isto é, quando o seu objecto for passível de acto administrativo, quando uma parte substantiva desse contrato for regida por normas de direito público e quando uma das partes seja uma entidade pública e ambas o tenham submetido a um regime de direito público.


Sendo assim, e sendo que é ponto assente que a determinação do Tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor se afere em função dos termos em que ela é desenhada e dos fundamentos em que se baseia, isto é, do pedido e da causa de pedir importará atentar nos termos a acção foi proposta e no pedido que foi formulado (Vd., a título exemplificativo, Acórdãos Tribunal de Conflitos de 11/7/00 (Conflito n.º 318), de 3/10/00, (Conflito n.º356), de 6/11/01(Conflito n.º 373), de 5/2/03, (Conflito n.º 6/02), de 29/10/2006 (Conflito n.º 18/06) e de 15/07/2007 (Conflito n.º 5/07) e do Pleno do STA de 9/12/98, rec. n.º 44.281 (BMJ 482/93) e do STJ de 21/4/99, rec. n.º 373/98 e Prof. Manuel de Andrade ”Noções Elementares de Processo Civil” pg. 88 e seg.s.)

3. A presente acção foi intentada pela EMGHA, empresa municipal que gere social, patrimonial e financeiramente os fogos habitacionais pertencentes ao Município de Cascais contra o ocupante do imóvel cuja restituição é pedida, fundamentando-se esse pedido, por um lado, na celebração de um contrato de arrendamento com o pai do Réu, a coberto do DL 166/93, de 7/05, o falecimento daquele e a ocupação do arrendado pelo Réu sem dispor de título que legitime essa ocupação e, por outro, na recusa da sua restituição. Daí que se tivesse pedido a condenação do Réu (1) a reconhecer que o imóvel por si ilegalmente ocupado era propriedade daquele Município, (2) a restituí-lo livre de pessoas e bens e (3) a pagar determinadas importâncias relacionadas com essa ocupação.
E o Réu contestou alegando que vivia com a sua mulher e filho em economia comum com o seu falecido pai, não só para cuidar dele mas também por carências económicas, e que, por isso, lhe sucedeu na titularidade daquele contrato de arrendamento, transmissão essa que a Autora reconheceu e que ainda hoje se mantém. Deste modo, e porque nada devia, a acção deveria ser julgada improcedente.
Vejamos a quem cabe julgar esta acção.

4. A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, repetidamente, afirmado que a competência para julgar os litígios emergentes de contratos celebrados ao abrigo do regime do citado DL166/99, regime de renda apoiada, decorrentes de questões relacionadas com a fixação do valor das respectivas rendas e com a forma do seu pagamento cabe aos Tribunais Administrativos (Vd., a título de ex., Acórdãos de 5.3.2013 (proc. n.º 4/13), de 14.3.2013, (proc. n.º 5/13), de 18/04/2013 (proc. 28/12), de 30/05/2013 (conflitos 21/13 e 22/13).). E fundamenta esse entendimento no facto das normas do referido diploma estabelecerem, por razões de índole social, regras imperativas sobre essa parte do contrato, as quais têm de ser observadas independentemente da vontade do arrendatário, sendo, por isso, claramente, tais normas de direito administrativo.

Ora, o litígio aqui em causa, apesar de ter na sua origem remota um contrato de arrendamento celebrado a coberto daquele diploma, não resulta de divergências relacionadas com a problemática das rendas ou com a forma do seu pagamento mas, apenas e tão só, com a validade da transmissão da posição de arrendatário e com a consequente legitimidade do Réu em ocupar o imóvel que dele é objecto. Ou seja, o que se discute nesta acção nada tem a ver com o regime de renda limitada estabelecido no citado diploma mas, apenas e tão só, com a questão da caducidade do contrato de arrendamento ora em causa e com a consequente legalidade da ocupação que o Réu vem fazendo. E, porque assim é, o citado DL 166/99 não pode ser convocado para dirimir este litígio.
É isso que explica que os primeiros pedidos formulados na acção sejam o da condenação do Réu a reconhecer que o imóvel que ocupa é propriedade do Município de Cascais e o da sua restituição livre de pessoas e bens e só, complementarmente, se pede a condenação do Réu no pagamento de certas importâncias relacionadas com aquela ocupação as quais, sintomaticamente, em lado nenhum são qualificadas como rendas. Ou seja, o verdadeiro pedido que a Autora formula é o da condenação do Réu a reconhecer que o imóvel pertence ao Município de Cascais e a consequente restituição da sua posse, foi essa e só essa a pretensão que a trouxe a juízo, e, nesta conformidade, o pagamento daquelas importâncias configura-se como um pedido indemnizatório pela ocupação ilegal de um imóvel e não como um pedido de pagamento de rendas em atraso.
Ora, esse pedido é tipicamente civilístico e, por o ser, o direito invocado na petição inicial é a Lei 6/2006, de 27/02 (NRAU), - art.ºs 27.º, 28.º e 57.º - e o Código Civil - art.ºs 1258.º, 1259.º, 1260.º e 1262.º e 1311.º e 2133.º e 2157.º - e não, como seria natural se estivessem em causa questões relacionadas com normas de direito administrativo, o DL 166/99. Em ponto algum do petitório o Autora invoca como fundamento do seu direito o regime de renda apoiada consagrado neste último diploma.
É, pois, seguro que o caso sub judicio não se inclui na hipótese do art. 4º, n.º 1, al. f), do ETAF uma vez que não existem naquele DL 166/99 normas de direito público que regulem os aspectos controvertidos nestes autos.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em atribuir a competência para conhecimento desta acção à jurisdição comum.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2014. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – José Tavares de PaivaVítor Manuel Gonçalves GomesAntónio da Silva GonçalvesJorge Artur Madeira dos SantosJoão Carlos Pires Trindade.