Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:024/18
Data do Acordão:12/06/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:PROCEDIMENTO CRIMINAL.
PEDIDO CÍVEL.
PRESCRIÇÃO.
JURISDIÇÃO COMPETENTE.
Sumário:I - As acções que têm por objecto actos tributários, de liquidação e execução, e as acções de indemnização derivadas da prática de crimes fiscais, têm causas de pedir e pedidos diferentes;
II - Pelos danos causados por crimes fiscais respondem os agentes do crime não nos termos da lei tributária mas nos termos da lei civil;
III - A fonte da obrigação é a responsabilidade civil decorrente da prática do crime e não a lei que define a obrigação de pagar impostos ao Estado;
IV - Esta causa de pedir não resulta descaracterizada pelo facto de ser declarado prescrito o respectivo procedimento criminal;
V - Só assim não será se estivermos perante alguma das situações processuais tipificadas nas alíneas do nº1 do artigo 72º, do CPP, e se for essa a vontade do lesado;
VI - Assim, a competência material para conhecer de pedido de indemnização cível enxertado em acção penal por crime de fraude fiscal, continua a ser da jurisdição comum apesar da declaração de prescrição da parte criminal.
Nº Convencional:JSTA00071015
Nº do Documento:SAC20181206024
Data de Entrada:04/19/2018
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA, ALMADA INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CRIMINAL, JUIZ 3 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE ALMADA, UNIDADE ORGÂNICA 2.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Objecto:DECISÃO DO TAF DE ALMADA E CO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA
Decisão:ATRIBUI A COMPETÊNCIA AOS TRIBUNAIS COMUNS
Área Temática 1:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Legislação Nacional:ARTIGO 72º, N.º 1 DO CPP
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada vem - nos termos dos artigos 111º, nº2, do CPC - requerer a resolução do conflito negativo de jurisdição gerado entre esse mesmo tribunal e o tribunal judicial da comarca de Lisboa - Instância Local de Almada, Secção Criminal - os quais, por decisões já transitadas em julgado, se declararam mutuamente incompetentes em razão da matéria para conhecerem de «pedido de indemnização cível» por ele deduzido, em representação do Estado, contra A…………, B…………, e C…………, Lda., por dívidas de IRC e de IVA, na quantia total de 949.908,92€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, na sequência de «processo-crime por fraude fiscal na forma continuada», contra eles instaurado.

2. O Ministério Público junto deste Tribunal de Conflitos pronunciou-se a favor da atribuição da competência material à jurisdição comum, mais concretamente ao tribunal judicial da comarca de Lisboa - Instância Local de Almada, Secção Criminal - para a tramitação e decisão do referido pedido de indemnização cível.

3. Colhidos que foram os vistos legais, cumpre apreciar, e decidir, este conflito negativo de jurisdição.

II. Apreciação

1. O tribunal judicial em causa decidiu ser «materialmente incompetente para o conhecimento do pedido de indemnização cível» com base nesta argumentação [decisão de 29.01.2015]:

[…]

«Sustentam os demandados, em síntese, que desaparecendo o facto enquanto ilícito criminal desaparece também a ilicitude civil “comum”, por força da relação jurídica e sistemática que intercede entre ambos os domínios, deixando de verificar-se os pressupostos de ressarcimento por via da responsabilidade aquiliana. […]

Compulsados os autos, verifica-se que o Ministério Público, a folha 2000, após o despacho que determinou a prescrição do procedimento criminal, proferido pelo Juiz de Instrução [JIC] a folhas 1969 e seguintes, requereu que os autos prosseguissem termos para conhecimento do pedido de indemnização cível que deduziu a folhas 801 e seguintes.

O JIC, a folha 2002, determinou a remessa para julgamento do pedido de indemnização cível.

O Juiz de julgamento, folhas 2033 e seguintes, recebeu o pedido de indemnização cível feito pelo Ministério Público a folhas 801 e seguintes, e designou data para julgamento.

O que se mostra em causa nestes autos é a representação da Fazenda Pública, pelo Ministério Público, deduzindo pedido de indemnização cível baseado nos crimes de fraude fiscal mencionados na acusação e que foram declarados prescritos.

Desta forma, concorda-se com os demandados por se mostrarem em causa direitos emergentes da relação jurídica tributária, cujo regime decorre inteiramente do direito tributário, e para cuja apreciação se mostra competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.

[…]

Desta forma, este tribunal só seria competente quando o facto ilícito tributário tivesse causado danos indemnizáveis no âmbito da esfera jurídica privada de algum lesado, que não é o caso, sendo alegadamente lesado o Estado.

[…]

Por seu lado, o tribunal da jurisdição administrativa e fiscal, em causa, devolveu essa competência ao tribunal da jurisdição comum, arrazoando assim [decisão de 07.12.2017]:

[…]

«Em causa está a relação tributária decorrente de dívidas de IRC e IVA que o Estado pretende cobrar em dois processos de execução fiscal [melhor identificados a folhas 2053 do processo físico].

[…]

Nos presentes autos não se pretende discutir qualquer questão relacionada com os processos executivos, mas sim que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, na sua Secção Tributária, conheça do pedido de indemnização cível deduzido pelo Ministério Público.

[…]

Por força do princípio da adesão consagrado no artigo 71º do Código de Processo Penal, deve o pedido de indemnização cível fundado na prática de um crime ser deduzido no âmbito do processo penal em que se aprecia a responsabilidade criminal emergente da infracção cometida.

[…]

Os pedidos de indemnização cível apresentados e admitidos em processo penal devem prosseguir e ser apreciados no âmbito desse processo, ainda que o processo penal [propriamente dito] venha a ser arquivado por prescrição.

E, em abono da competência material dos tribunais da jurisdição comum nestes casos, cita acórdão de fixação de jurisprudência, do STJ, datado de 15.11.2012 [publicado no DR, Série I, nº4, de 07.01.2013], que uniformizou jurisprudência no sentido de que «Em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107º, nº1, do RGIT, é admissível, de harmonia com o artigo 71º do CPP, a dedução de pedido de indemnização cível tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social».

2. A «questão» colocada a este Tribunal de Conflitos consubstancia-se em saber se o tribunal criminal continua «materialmente competente» para conhecer do pedido de indemnização cível enxertado em processo criminal, mesmo que este último tenha sido arquivado com base na «prescrição», e àquele pedido subjaza uma «relação jurídico-tributária».

No presente caso, como ressuma do que ficou dito, os arguidos foram acusados de crime de fraude fiscal na forma continuada e o Ministério Público, representando o Estado, deduziu pedido de indemnização cível, para que ele fosse ressarcido das quantias de que os arguidos, fraudulentamente, o haviam privado. E estas são as correspondentes ao IRC e IVA não pagos - no montante de 949.908,92€ - acrescidas de juros de mora.

Tendo sido arquivado o processo-crime propriamente dito, na fase de instrução, o Ministério Público «requereu a continuação dos autos» para conhecimento do pedido de indemnização, o juiz de instrução criminal remeteu-os para julgamento, e o tribunal, tendo recebido o pedido de indemnização cível, agendou data para o julgamento. Este último «despacho» é do seguinte teor: «I. Autue os presentes autos como processo comum [com intervenção de tribunal singular]. II. O tribunal é competente […]. III. Recebo o pedido de indemnização cível, formulado pelo Ministério Público a folhas 81 e seguintes, contra A…………, B………… e C…………, Lda. […], pelos factos descritos e com o enquadramento jurídico aí referido. IV. Mantêm-se os defensores constituídos. V. Para audiência de julgamento designo o dia […]. VI. Notifique-se o Ministério Público, os demandados, os defensores, tendo-se ainda em atenção o preceituado nos artigos 313º, nº2, 315º e 317º do CPP».

No fundo, e já em sede de julgamento, o tribunal criminal entendeu que tendo findado, por arquivamento baseado em prescrição, o processo criminal, deixava de haver motivo para persistir a adesão do pedido de indemnização cível, o qual devia ser conhecido pelo tribunal da jurisdição administrativa e fiscal, dado que lhe subjaz uma relação jurídica de natureza tributária.

Mas não é assim.

3. Segundo a nossa lei processual penal a regra é a da «adesão obrigatória da acção cível de indemnização» à «acção penal». Mas, e sublinhe-se, não se trata de uma qualquer acção cível, mas apenas daquela que visa a «indemnização de perdas e danos emergentes de crime» [artigo 71º do Código de Processo Penal (CPP) - ver Assento nº7/99, de 17.06.1999, in DR, I-A Série, de 03.08.1999].

Relativamente a este tipo de responsabilidade extracontratual, diz o artigo 129º do Código Penal [CP] que «A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil».

Não há dúvida, pois, de que o regime vertido nos artigos 71º a 84º do CPP, que traduz o princípio da adesão, apenas adjectiva o artigo 129º do CP, limitando-se à indemnização por perdas e danos emergentes de crime, e de que apenas este tipo de indemnização, emergente de ilícito criminal, se mostra regulada pela lei civil.

Seria legalmente inadmissível, e ao tribunal criminal faleceria competência, em razão da matéria, para dele conhecer, caso o pedido cível não se fundasse «na indemnização por danos ocasionados pelo crime», pois que a acção cível que adere ao processo penal é a que tem por objecto «a indemnização por perdas e danos emergentes do crime», e só essa.

Assim, o pedido cível fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, resultando do dito regime que só o poderá ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei [artigo 72º do CPP].

São razões de economia de meios e de gastos, de cautela - no que respeita a possíveis decisões contraditórias - de celeridade processual, de maior protecção da vítima, e de eficácia - mediante a apreensão pelo tribunal de todos os elementos pertinentes para a apreciação do pedido - que levaram o legislador a transferir esta verdadeira acção cível para o âmbito do processo penal [Germano Marques da Silva, Curso, volume I, página 324; Simas Santos e Leal Henriques, CPP Anotado, volume I, 1999, página 380].

A jurisprudência, e quase unânime, aponta no sentido de que a competência do tribunal criminal para conhecer da acção cível enxertada na acção penal, não se confunde com a competência da jurisdição administrativa e fiscal, em processo de execução.

Realça que as acções que têm por objecto «actos tributários», de «liquidação e execução», e as acções de indemnização derivadas da prática de crimes fiscais, têm «causas de pedir e pedidos diferentes», e que pelos danos causados pelos crimes fiscais respondem os agentes do crime não «nos termos da lei tributária mas nos termos da lei civil». A fonte da obrigação é a responsabilidade civil que decorre da prática do crime e não a lei que define a obrigação de pagar certas quantias ao Estado, nomeadamente a título de impostos. Deste modo, o «facto jurídico concreto» que enforma a acção aderente não se identifica com o «mero incumprimento de uma obrigação fiscal», mas com o «incumprimento portador dos elementos típicos do crime» [ver AC do STJ de 11.12.2008, Processo 08P3850/08; AC do STJ de 04.02.2010, Processo 106/01.91DPRT.S1; AC do STJ de 15.09.2010, Processo nº322/05.4TAEVR.E1.S1; AC do STJ de 15.11.2012, Processo 1187/09.2TDLSB.L2-A.S1].

Não é, assim, a natureza da relação jurídica subjacente à dívida tributária que é pressuposto do pedido de indemnização cível, mas sim a obrigação de indemnização pelo valor do dano, que efectivamente corresponde ao montante em dívida pelo incumprimento dessas contribuições.

Ora, este pressuposto, ou, se quisermos, esta «causa de pedir», não resulta descaracterizada pelo facto de ser declarado prescrito o procedimento criminal. Embora não podendo, por tal razão, prosseguir o processo para responsabilizar o arguido criminalmente, nada impede que ele prossiga para o «responsabilizar civilmente», com base no mesmo comportamento ilícito, culposo e danoso.

Só assim não será se estivermos perante alguma das situações processuais que são tipificados nas várias alíneas do nº1 do artigo 72º, do CPP, e se for essa a vontade do lesado. Sendo certo que, no presente caso, apesar do arquivamento do processo penal, por via da prescrição, o lesado «expressamente requereu» a continuação do processo para apuramento da responsabilidade civil.

É esta, aliás, a opção legislativa imanente ao disposto no artigo 377º, nº1, do CPP, segundo o qual «a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no nº3 do artigo 82º» [norma esta que permite ao tribunal, de forma oficiosa ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal].

4. Resulta do exposto, que este conflito negativo deverá ser resolvido mediante a atribuição da competência material aos tribunais da jurisdição comum, e, no caso, ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Instância Local de Almada.

IV. Decisão

Nestes termos, decidimos o presente «conflito de jurisdição», atribuindo aos tribunais da jurisdição comum a «competência material» para conhecer do pedido de indemnização civil aqui em causa.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2018. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – António Pedro de Lima Gonçalves – José Francisco Fonseca da Paz – António Pires Henriques da Graça – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Graça Maria Lima de Figueiredo Amaral.