Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0180/20.9T8FVN.S1
Data do Acordão:03/17/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Sumário:I - É da competência dos tribunais administrativos a apreciação de uma acção na qual um município pretende a reversão da propriedade de um lote de terreno que, em execução de deliberação do executivo municipal e com o objectivo de captar investimento privado para uma zona industrial municipal, vendeu por preço simbólico a um particular, ao abrigo do disposto no Regulamento Municipal de Acesso aos Incentivos à Instalação de Unidades Industriais, que faz parte integrante da respetiva escritura de compra e venda, com fundamento no incumprimento das obrigações constantes da escritura e do Regulamento.
II - Das regras do Regulamento resulta uma posição de autoridade do contraente público, tendo em vista os fins e interesses públicos visados; a relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, deve ser qualificada como uma relação jurídica administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P27630
Nº do Documento:SAC202103170180
Recorrente:TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA–JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA-JUIZ 3
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA (JUÍZO ADM. COMUM)
Recorrido 1:AUTO PEÇAS 2009, LDA
Recorrido 2:MUNICÍPIO DE PEDROGÃO GRANDE
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: TRIBUNAL DOS CONFLITOS

1. Em 4 de Abril de 2017, o Município de Pedrógão Grande intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria uma ação administrativa contra Autopeças, Lda., formulando o seguinte pedido:
I - Declarar-se que:
a) A R. incorreu em incumprimento das obrigações contratuais assumidas na escritura de compra e venda ao não concluir a obra dentro do prazo acordado e não ter iniciado a laboração no prazo fixado na escritura e no regulamento municipal de acesso aos incentivos à instalação de unidades industriais;
b) Tem a A. direito à reversão do aludido prédio, integrando-o no seu domínio privado.
c) Está a R. obrigada a restituir o aludido imóvel á R.
II - Condenar-se a R. a;
a) Reconhecer quanto vem peticionado e será declarado;
b) A restituir o aludido imóvel á R.”.
Alegou, para o efeito e em síntese, assistir-lhe o direito à reversão “para o seu domínio privado” de um terreno para construção que vendeu à ré em 17 de Fevereiro de 2009, pelo preço simbólico de € 47,50, porquanto a ré não concluiu a obra e não iniciou a laboração da actividade no edifício que construiu nos prazos estipulados no Regulamento Municipal de Acesso aos Incentivos à Instalação de Unidades Industriais (Actividades Produtivas).
Disse ainda que o contrato foi celebrado “em execução da deliberação tomada em reunião ordinária do executivo de trinta de Janeiro de 2009” e que o montante do preço “foi calculado nos termos do art.º 5.º n.º 1 do citado Regulamento Municipal, à razão de 1 €/m²” e que “é patentemente simbólico, e (…) serve para captar investimento privado” para a zona industrial do Pinheiro Bordalo – Graça, em Pedrógão Grande.
A ré contestou, negando ter incorrido “em qualquer incumprimento das obrigações contratuais assumidas na escritura de compra e venda” e sustentando que a acção deve ser julgada improcedente.
Considerando tratar-se de um conflito relativo a uma relação jurídica de natureza exclusivamente privada, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da causa, atribuindo a competência aos tribunais comuns, “nos termos conjugados do artigo 4.º, n.º 1, alíneas e) e o) do ETAF, dos artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1 e 99.º, n.º 1, e artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea a), do CPTA, e em consequência” absolveu a ré da instância: “Com efeito, pese embora uma das partes intervenientes no contrato sub judice seja uma pessoa colectiva de direito público, o mesmo titula a compra e venda de um bem imóvel que:
(i) As partes não qualificaram expressamente como contrato administrativo;
(ii) Numa relação jurídica que não se encontra submetida a um regime substantivo de direito público (o que não é infirmado pela remissão para o Regulamento Municipal de Acesso aos Incentivos à Instalação de Unidades Industriais (Actividades Produtivas) que ali se acorda);
(iii) Não tem um objecto passível de acto administrativo que possa ser unilateralmente imposto pelo A., na medida em que constitui a contraparte em obrigações de facere;
(iv) Não confere à R. direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do A.; e
(v) Não foi sujeito a qualquer procedimento de contratação pública,
não podendo, por isso, dar-se aqui conta da existência de um qualquer contrato administrativo, nos termos e para os efeitos do supracitado artigo 4.°, n,° 1, alínea e), do ETAF, nem, a fortiori sensu, de uma relação jurídica administrativa.”
Remetidos os autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Competência Genérica de Figueiró dos Vinhos, o tribunal declarou-se incompetente em razão do valor para a tramitação e julgamento da ação, à qual fixou o valor de € 144.418,82; consequentemente, determinou a remessa para o Juízo Central Cível de Leiria.
Por sentença de 30 de Novembro de 2020 o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 3 julgou-se incompetente em razão da matéria para preparar e julgar a ação e absolveu a ré da instância, atribuindo a competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O tribunal considerou, em síntese, que a causa de pedir invocada diz respeito a uma relação contratual de natureza administrativa, estando em causa atos de gestão pública: “é incontornável a análise da mesma de acordo com as regras e deliberações emanadas pelo Município de Pedrógão Grande”. “Com efeito, a celebração de um contrato de compra e venda civil configura apenas um meio de transmissão do direito de propriedade sobre um lote de terreno, que não é objecto do litígio, pois o litígio reside na alegada falta de cumprimento das normas de direito público estabelecidas pelo Município no Regulamento Municipal, criadas por este com o objectivo de atrair investimento privado e criar em prego no Município em causa. E as regras que permitiram ao Autor transmitir o lote de terreno à Ré por um preço simbólico de € 47,50 têm em vista o cumprimento por esta de regras de direito público constantes no aludido Regulamento Municipal de Acesso aos Incentivos à Instalação de Unidades Industriais”. Citou, em apoio da decisão, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Maio de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 60/08.6TBMCD.P1.
O Município de Pedrógão Grande requereu, entretanto, o envio dos autos ao Tribunal de Conflitos, para resolução do conflito negativo de jurisdição.

2. Remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, por despacho do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça foi determinado que se seguissem os termos resultantes da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).
Notificadas deste despacho, as partes não se pronunciaram.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente ação ao Tribunal Central Cível de Leiria, por se tratar de contrato cujo cumprimento é regido pelo Código Civil e por se manter “a ideia de total liberdade contratual, ainda que as partes tenham sujeitado o contrato a sujeições que correspondem a verdadeiros direitos potestativos”.

3. Cumpre decidir o presente conflito.
Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.

4. Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido do autor, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos, “por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 4 de Abril de 2017, na falta de disposições de direito transitório aplicáveis, é por referência às versões da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 2, da Lei de Organização do Sistema Judiciário; recorda-se que a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que alterou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo). Releva, portanto, a versão do n.º 1 do artigo 1.º e do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.

5. No caso presente, o autor, pessoa colectiva pública, alegou ter vendido à ré um lote de terreno destinado a construção, inserido na Urbanização Municipal da Zona Industrial do Pinheiro Bordalo, em execução de deliberação tomada em reunião ordinária do executivo municipal e de acordo com as regras definidas no Regulamento Municipal de Acesso aos Incentivos à Instalação de Unidades Industriais (Actividades Produtivas), regulamento que faz parte integrante da escritura pública de compra e venda, ficando a ré obrigada ao cumprimento das condições por ele impostas.
O preço da compra e venda foi calculado de acordo com as regras do mesmo Regulamento, em ordem ao objectivo já referido de captação de investimento privado para a zona industrial.
Salientam-se as seguintes regras do Regulamento:
Artigo 1.º, n.º 1:
1. O Regulamento Municipal de Acesso aos Incentivos à Instalação de Unidades industriais (Actividades Produtivas) fixa as regras aplicáveis aos apoios que o Município da Pedrogão Grande coloca à disposição das empresas já instaladas ou a instalar na área geográfica do concelho”.
Artigo 10.º:
1. Em caso de incumprimento das condições de atribuição dos incentivos, em especial no que se refere à manutenção dos postos de trabalho, devem ser devolvidas à Câmara Municipal de Pedrógão Grande as importâncias recebidas, em condições a definir caso a caso, por aquela.
2. No caso da atribuição de lotes de terreno, as obras de construção das instalações devem ter início no prazo máximo de doze meses, contados a partir da data de celebração do respectivo contrato de compra e venda e da correspondente entrega do lote com as respectivas infraestruturas sendo concluídas no prazo máximo de dois anos.
3. Caso assim não suceda, opera-se a resolução daquele contrato e a reversão do objecto da venda para o Município de Pedrógão Grande, pelo preço do custo, com fundamento no não cumprimento das cláusulas contratuais, bem como das edificações nele implantadas e de outras benfeitorias que porventura tenham sido aí efectuadas, cujo valor será posteriormente determinado, mediante acordo entre ambas as partes.
4. A laboração da respectiva actividade deve ter início no prazo máximo de três meses, após a conclusão das obras, embora limitado ao prazo de um ano salvo motivo devidamente justificado e aceite pela Câmara Municipal de Pedrógão Grande, que julgará, ou não, atendíveis as razões apresentadas, proferindo a competente deliberação, cujo teor deve ser notificado ao interessado.
5. O não cumprimento das condições acima referidas, impostas no título contratual, obriga o adquirente do lote a comunicar à Câmara Municipal de Pedrogão Grande, por escrito, até quinze dias antes do termo do prazo, por carta registada, com aviso de recepção, as razões justificativas do atraso, podendo aquela admitir uma eventual prorrogação do prazo de construção e/ou laboração, com base na justificação que seja apresentada para esse efeito.
6. Caso assim não suceda, a Câmara Municipal de Pedrógão Grande deve notificar, por carta registada, com aviso de recepção, e possuidor do lote informando-o da sua pretensão de exercer o direito de reversão, com a indicação expressa dos motivos que originaram tal decisão.
7. Havendo acordo na restituição do imóvel, a Câmara Municipal de Pedrógão Grande deve efectuar a escritura pública de reversão, independentemente da vontade do possuidor do imóvel, pela simples e eventual verificação da cláusula contratual que expressamente a admite.
8. Não havendo acordo por parte do possuidor do lote, cabe à Câmara Municipal de Pedrógão Grande promover a instauração da competente acção judicial, com fundamento na reversão, tendo em vista à restituição do imóvel em causa.
9. À cobrança coerciva, que porventura se torne necessária, pelo não cumprimento do disposto no contrato celebrado com a entidade beneficiária, aplicar-se-ão as regras do processo de execução fiscal, previstas no Código de Processo Tributário
O autor justifica o pedido alegando o incumprimento das obrigações a que a ré se vinculou na escritura pública de aquisição do lote de terreno, nas quais se incluem as definidas no Regulamento Municipal, o que motivou o envio de uma carta à ré na qual, para além do mais, disse o seguinte:
Assim, deverão Vª Exª. proceder à resposta em sede de audiência prévia no prazo de 10 dias úteis, informando se acorda amigavelmente, da reversão do lote, sob pena de não havendo acordo, o município de Pedrógão Grande instaurar adequada acção judicial para esse efeito, nos termos da cláusula 10ª, nº 6 e 7 desse citado regulamento municipal”. Conclui ter cumprido o procedimento imposto pelo Regulamento, arrogando-se o direito de obter a reversão do terreno a seu favor, sempre nos termos do Regulamento.

6. Não está em dúvida que se trata de um contrato de compra e venda, cujo regime essencial se encontra no Código Civil.
No entanto, importa apurar se, no concreto litígio que está em causa, nos encontramos perante uma questão de natureza meramente privada (ou jurídico-civil), relativa ao incumprimento de um contrato de compra e venda de um imóvel, ou perante uma questão jurídica que assume contornos que lhe conferem natureza administrativa.
Na verdade, o âmbito da jurisdição administrativa não se limita aos contratos administrativos, abrangendo contratos celebrados por entidades públicas “especialmente regulados por legislação administrativa avulsa” (José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Coimbra, 2020, pág. 110), como é o caso, tendo em conta a submissão do contrato ao referido Regulamento Municipal.
Essa submissão permite concluir pela qualificação do presente litígio como respeitante a uma relação jurídica administrativa, incluído na al. o) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Recorrendo de novo ao ensinamento de José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., pág. 51 e segs., e ao critério substancial de delimitação da justiça administrativa, diremos que, “na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…) A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica. (…) lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Não se trata de uma situação equiparável à que foi considerada no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 11 de Abril de 2019, www.dgsi.pt, processo n.º 049/181:
(…) No contrato em causa Autor e Ré actuaram como qualquer ente privado numa relação jurídica privada. Um vende e outro compra determinado bem.
Não se vislumbra que o Autor tenha agido «numa situação de “jus imperii”» como se afirma no Parecer do MP.
As partes, Autor e Ré celebraram entre si, como dois entes privados e nessa qualidade, um contrato de empreitada, cujo objecto é puramente privado.
Este contrato reveste uma natureza privada e não pública.
Não estamos perante um contrato que deva ser qualificado pela lei como administrativo, nem quanto às pessoas que o celebraram nem quanto ao seu objecto.
Esse contrato não é qualificado pela lei como administrativo nem no seu objecto - venda de um terreno - está em causa um litígio relativo a cláusulas ou normas específicas de interesse público.
Assim, entendemos que nesta hipótese o Tribunal Judicial Comum é o competente em razão da matéria”.
No caso dos autos, o autor alega ter vendido à ré o lote em causa ao abrigo do disposto no Regulamento Municipal de Acesso aos Incentivos à Instalação de Unidades Industriais, que faz parte integrante da respetiva escritura de compra e venda.
Em concreto, para fundamentar o pedido de reversão, invoca o incumprimento das obrigações a que a ré se vinculou na escritura pública de aquisição, bem como daquelas que constam do Regulamento e a que também se obrigou.
Refere ainda que o preço, simbólico, praticado na venda foi calculado nos termos do art. 5.º, n.º 1, do Regulamento, tendo em vista a captação de investimento privado para aquela zona industrial.
Do exposto resulta assim que, segundo o autor, a relevância do Regulamento na relação jurídica em apreço não se limita a uma aplicação subsidiária ou secundária, mas antes a uma aplicação essencial na, e para, a vivência do contrato.
Nos termos do n.º 4 da transcrito artigo 10.º, “a laboração da respectiva actividade deve ter início no prazo máximo de três meses, após a conclusão das obras, embora limitado ao prazo de um ano salvo motivo devidamente justificado e aceite pela Câmara Municipal de Pedrógão Grande, que julgará, ou não, atendíveis as razões apresentadas, proferindo a competente deliberação, cujo teor deve ser notificado ao interessado.
Esta disposição traduz a inexistência de uma posição de paridade entre autor e ré na relação contratual, mas, antes, uma posição de autoridade do contraente público, tendo em vista os fins e interesses públicos visados pelo Regulamento.
Para além disso, cumpre ter em conta a disposição constante do n.º 9 do artigo 10.º, segundo a qual à cobrança coerciva, que porventura se torne necessária pelo não cumprimento do disposto no contrato celebrado com a entidade beneficiária, se aplicam as regras do processo de execução fiscal, previstas no Código de Processo Tributário.
Por fim, refira-se lateralmente o teor da já mencionada carta enviada pelo autor à ré, na qual lhe concede um prazo de 10 dias úteis para proceder à resposta em sede de “audiência prévia” – artigo 121.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo.

7. Afigura-se, portanto, que no caso dos autos o autor não estruturou a relação material controvertida na mera violação de obrigações fixadas num contrato de compra e venda.
A relevância das normas contidas no regulamento (que integra a escritura de compra e venda) e o preço acordado (revelador da intenção subjacente ao contrato), alegados na petição inicial, apontam para a existência de poderes de autoridade do autor, bem como para a imposição de restrições de interesse público e de deveres perante a administração característicos de uma relação jurídica administrativa.
Pelo exposto, conclui-se que a relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, deve ser qualificada como uma relação jurídica administrativa.

8. Nestes termos, julga-se competente para a presente acção o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria ( artigo 7.º, a), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, 1,º f) da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio, e 19.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

A relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STA, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa, votou favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.