Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 011/06 |
| Data do Acordão: | 07/04/2006 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | SÃO PEDRO |
| Descritores: | CONFLITO DE JURISDIÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL. LICENÇA DE CONSTRUÇÃO. COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS. |
| Sumário: | I - São actos de gestão pública os compreendidos no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolveram ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas. II - Os actos e omissões relativos ao licenciamento municipal de obras particulares são actos de gestão pública. |
| Nº Convencional: | JSTA00063310 |
| Nº do Documento: | SAC20060704011 |
| Recorrente: | A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE S. ROQUE DO PICO E OS TAFS |
| Recorrido 1: | * |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Meio Processual: | REC PRE CONFLITO. |
| Objecto: | AC RL. |
| Decisão: | NEGA PROVIMENTO. DECL COMPETENTE TAF PONTA DELGADA. |
| Área Temática 1: | DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA. |
| Área Temática 2: | DIR JUDIC - ORG COMP TRIB. |
| Legislação Nacional: | CCIV66 ART501. ETAF96 ART3 ART51. DL 445/91 DE 1991/10/15 NA REDACÇÃO DO DL 250/94 DE 1994/10/15 ART26. CPC96 ART107. |
| Jurisprudência Nacional: | AC TCF DE 1981/11/05 IN BMJ N311 PAG195. |
| Referência a Doutrina: | MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG91. |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Acordam no Tribunal de Conflitos 1. Relatório A… devidamente identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial de São Roque do Pico, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra o MUNICÍPIO DA MADALENA, B… e C…, pedindo a condenação dos réus a pagarem uma indemnização a título de danos patrimoniais: a) no montante correspondeste à perda de a.078.340,10 euros, relativos à perda de lucros previsíveis, como consequência da conduta dolosa dos réus ao não emitirem a licença de utilização, entre Outubro de 1999 e Outubro de 2002, acrescida de juros de mora à taxa legal de 12% ao ano, desde a data da citação até integral pagamento; b) no montante de 27.100,00 euros, pelo não fornecimento de bens ou prestação de serviços, no período compreendido entre Outubro de 1999 e Outubro de 2002, como consequência da conduta dolosa dos réus ao não contratarem os serviços da autora, acrescida de juros à taxa legal de 12% ao ano, desde a data da citação até integral pagamento; c) no montante de 10.815,48 euros, correspondente à quantia que dispendeu com a aquisição de inertes e aluguer de equipamentos nos anos de 1999 e 2000, acrescida de juros à taxa legal de 12% ao ano, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento. Contestaram os réus invocando, em primeiro lugar a incompetência absoluta do tribunal, por entender em suma, que a alegada actuação dos réus releva claramente no âmbito da gestão pública, mais concretamente na denominada responsabilidade extracontratual da Administração Pública, e portanto, da competência dos Tribunais Administrativos. Por decisão de 5 de Novembro o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico absolveu os réus da instância por ter entendido que os actos praticados (ou não praticados) são iniludivelmente administrativos, quer quanto aos sujeitos requeridos, quer quanto à natureza do objecto, quer quanto ao fim, e, nessa medida, absolutamente incompetentes, em razão da matéria, os tribunais da ordem judicial. A autora interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa. Por acórdão 5-7-2006, a Relação de Lisboa confirmou a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de S. Roque do Pico, negando provimento ao recurso. A autora inconformada com tal acórdão recorreu do mesmo para o Supremo Tribunal de Justiça. No Supremo Tribunal de Justiça o Ex.mo Conselheiro Relator proferiu o seguinte despacho: “O Tribunal da Relação de Lisboa julgou incompetente em razão da matéria o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico por entender que a causa pertence ao âmbito da jurisdição administrativa. Assim, nos termos do disposto no art. 107°, 2 do C. P. Civil, o recurso destinado a fixar o tribunal competente devia ter sido interposto para o Tribunal de Conflitos. Remeta, pois, os autos ao Tribunal de Conflitos e informe o Tribunal da Relação de Lisboa”. No Tribunal de Conflitos, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser confirmado o acórdão da Relação de Lisboa. Com dispensa de vistos foi o processo submetido à conferência para julgamento. 2. Fundamentação 2.1. Matéria de facto Com interesse para o julgamento do recurso são relevantes os seguintes factos: a) A.... intentou no Tribunal Judicial de São Roque do Pico, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra o MUNICÍPIO DA MADALENA, B… e C…, pedindo a condenação dos réus a pagarem uma indemnização a título de danos patrimoniais: i) no montante correspondeste à perda de a.078.340,10 euros, relativos à perda de lucros previsíveis, como consequência da conduta dolosa dos réus ao não emitirem a licença de utilização, entre Outubro de 1999 e Outubro de 2002, acrescida de juros de mora à taxa legal de 12% ao ano, desde a data da citação até integral pagamento; ii) no montante de 27.100,00 euros, pelo não fornecimento de bens ou prestação de serviços, no período compreendido entre Outubro de 1999 e Outubro de 2002, como consequência da conduta dolosa dos réus ao não contratarem os serviços da autora, acrescida de juros à taxa legal de 12% ao ano, desde a data da citação até integral pagamento; iii) no montante de 10.815,48 euros, correspondente à quantia que dispendeu com a aquisição de inertes e aluguer de equipamentos nos anos de 1999 e 2000, acrescida de juros à taxa legal de 12% ao ano, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento. b) Contestaram os réus invocando, em primeiro lugar a incompetência absoluta do tribunal, por entender em suma, que a alegada actuação dos réus releva claramente no âmbito da gestão pública, mais concretamente na denominada responsabilidade extracontratual da Administração Pública, e portanto, da competência dos Tribunais Administrativos. c) Por decisão de 5 de Novembro o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico absolveu os réus da instância por ter entendido que os actos praticados (ou não praticados) são iniludivelmente administrativos, quer quanto aos sujeitos requeridos, quer quanto à natureza do objecto, quer quanto ao fim, e, nessa medida, absolutamente incompetentes, em razão da matéria, os tribunais da ordem judicial. d) A autora interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa. e) Por acórdão 5-7-2006, a Relação de Lisboa confirmou a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de S. Roque do Pico, negando provimento ao recurso. 2.2. Matéria de direito A questão que se coloca, neste processo, é a de saber qual a jurisdição competente para julgar um pedido de indemnização por factos ilícitos formulado contra o Município de Madalena, B… (Presidente da Câmara) e C… (funcionário do Município). Tanto a 1ª instância, como a Relação entenderam que os factos ilícitos imputados aos titulares dos órgãos do réu, deveriam ser qualificados como actos de gestão pública e, por isso, consideraram os tribunais da “ordem judicial” materialmente incompetentes para julgar a acção. No recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a autora insurgia-se contra a declarada incompetência material, com os argumentos já invocados junto da Relação, ou seja: “V - o cerne deste caso concreto radica em saber se os réus, ora recorridos, agiram ou não desprovidos da veste pública. VI - quando os réus B… e C… em conluio, manipularam os residentes do lugar dos Toledos, concelho da Madalena para se manifestarem contra a Central de Britagem de Pedra que a autora estava a instalar, parece óbvio que estamos perante um acto de gestão privada, desprovido de veste pública e como tal deve ser competente para decidir o Tribunal de São Roque e não os Tribunais Administrativos; VII - A ré Município da Madalena demorou três anos para deliberar de que as obras de construção civil de instalação da Central de Britagem estavam isentas de licenciamento, não obstante os réus B… e C…,, durante esse período terem agido com o intuído de afectar a actividade da ora autora, pois sabiam as obras de construção civil estavam isentas de licenciamento, apesar de fazerem crer que não. VIII - os réus B… e C… praticaram actos de gestão privada e não de gestão pública, pelo que agiram desprovidos da veste pública. Grande parte dos prejuízos causados à autora decorrem de actos em que os réus B… e C… não estavam munidos da veste pública” (cfr. Fls. 384). Vejamos. A competência do tribunal afere-se em função da pretensão (pedido e causa de pedir) do autor. “A competência do tribunal - ensina Redenti - “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; (…). É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1079, pág. 91 Na presente acção a autora resume a sua pretensão pedindo o ressarcimento de três tipos ou categorias de danos. Um primeiro tipo de danos emergente pela não emissão dolosa de uma licença de utilização; um segundo tipo de danos emergente de uma conduta dolosa dos réus em não celebrarem com a autora contratos de fornecimento de bens e serviços e, finalmente um terceiro tipo de danos com aquisição de inertes e aluguer de equipamentos. Todos estes danos estão conexionados com a não emissão tempestiva da licença de utilização de uma Central de Britagem, entre Outubro de 1999 e Outubro de 2002, englobando os lucros cessantes, a inexistência de contratos com o Município e os gastos no ano de 2000 no aluguer de máquinas e aquisição de inertes, resultantes de tal indústria. Tal decorre, com toda a clareza do alegado no art. 43º, 44º, 45º, 46º e 47° da petição inicial: “43º Não fora a conduta persecutória dos réus, a autora tinha no mínimo obtido o alvará de licença de utilização das obras de construção civil, em Outubro de 1999 (quarenta e cinco dias após a entrega do pedido de licenciamento, documento 6, pois as obras existentes nessa data não sofreram qualquer alteração). 44° Na verdade, a conduta dos réus impediu que a Central de Britagem iniciasse a sua laboração, pelo menos, durante trinta e seis meses antes do seu início, ou seja em Outubro de 1999, e em vez de Outubro de 2002, como viria a suceder. 45º O artigo 22° da Constituição da República diz: “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticados no exercício das suas funções e por causa do exercício de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem. 46°. Os titulares dos órgãos da 1ª ré, neste caso concreto os réus B… e C… e os seus funcionários não agiram nos termos a que estavam obrigados no exercício das suas funções. 47° Os titulares dos órgãos da 1ª ré, ou seja, os réus B… e C…, e a 1ª ré tinham de se limitar a emitir o não a licença relativa às obras de construção civil da Central de Britagem de Pedra” É, portanto, claro que, tal como a autora desenhou a causa e formulou a sua pretensão, os factos ilícitos geradores da responsabilidade civil são os actos e omissões dos réus B… e C…, enquanto “funcionários” do Município réu. A argumentação da autora, alegando que os réus manipularam a população contra a instalação da Central de Britagem, não é determinante, pois não foi essa alegada manipulação que lhe causou os peticionados danos. Os danos resultaram, sim, do facto sintetizado no art. 15° da petição inicial, ou seja no facto da autarquia ter estado “três anos para emitir uma licença de utilização”. A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos pode ser accionada nos Tribunais Judiciais, quando os actos lesivos sejam praticados “no exercício de actividades de gestão privada” (art. 501° do C. Civil). E podem ser accionada na Jurisdição Administrativa, quando tais actos sejam praticados no exercício de actividades de gestão pública (art. 3º e 51º, 1, al. h) do ETAF então em vigor — Dec.lei 129/84, de 27 de Abril). “Actos de gestão pública — como se diz no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 4-4-2006, proferido no 08/03 - são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado - Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos: — do Tribunal dos Conflitos de 5-11-1981, processo n.° 124, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.° 311, página 195; — do Tribunal dos Conflitos de 20-10-1983, processo n.° 153, publicado em Apêndice ao Diário da República de 3-4-1986, página 18; — do Tribunal dos Conflitos de 12-1-1989, processo n.° 198, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n° 330, página 845; — do Tribunal dos Conflitos de 12-5-1999, processo n.° 338, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-7-2000, página 19; — do Supremo Tribunal Administrativo de 22-11-1994, recurso n.° 33332, publicado em Apêndice ao Diário da República de 18-4-1997, página 8256; — de 29-6-2004, do Tribunal dos Conflitos, recurso n.° 1/04. )“ Como se destaca no acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no processo n.° 124 citado: «A solução do problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o Estado, reside em apurar: — Se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas do direito privado; — Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.» No caso dos autos, como se viu, a prática e a omissão de actos relacionados com a emissão da licença de utilização de uma Central de Britagem, ou melhor com a sua emissão tempestiva foram, na tese da autora, os actos que lhe causaram os prejuízos invocados (os actos ilícitos). Ora, a licença de utilização a emitir pela 1ª ré, era sem dúvida um acto de gestão pública. O Dec. Lei 445/91, de 15 de Outubro, com as modificações introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 250/94 de 15 de Outubro atribuía às Câmaras Municipais e ao seu Presidente atribuições em matéria de licenciamento de obras particulares. Mais concretamente a atribuição da licença e alvará de utilização era da competência do Presidente da Câmara (art. 26° do citado diploma). O preâmbulo do Dec. Lei 250/94, de 15 de Outubro chama-lhe “regime de licenciamento municipal de obras particulares”. O atraso na emissão de tal licença bem como a falta de diligência na análise da respectiva situação de facto, sobre a necessidade, ou não, de licenciamento da construção, também são actos inerentes às atribuições que em matéria de licenciamento de obras são cometidas aos órgãos do Município. O autor juntou, inclusivamente, aos autos fotocópia do auto de embargo relativo à instalação de uma Britadeira, o que mostra que toda a actividade causadora dos danos se relacionava com as funções da Câmara Municipal no âmbito dos seus poderes públicos no licenciamento municipal de obras particulares. Não é duvidoso que o regime de licenciamento de obras particulares, implicando um condicionamento do “jus aedificandi”, por razões de interesse geral (ordenamento do território, salubridade e estética das povoações) tem natureza de direito público, pelo que a intervenção das entidades com atribuições nesta matéria, no âmbito das mesmas, traduz o exercício de uma actividade de gestão pública, Nos termos do art. 51, al. h) do ETAF compete aos tribunas administrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado e dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso. Assim, deve negar-se provimento ao recurso, considerando os tribunais judicias incompetentes em razão da matéria para apreciar a presente acção, sendo competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada — cfr. art. 107°, 2 e 3 do C.P. Civil. 3. Decisão Face ao exposto, os juízes do Tribunal de Conflitos acordam em negar provimento ao recurso, considerando incompetente em razão da matéria o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico e competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada. Sem custas. Lisboa, 4 de Julho de 2006. António Bento São Pedro (relator) – António da Silva Henriques Gaspar – Manuel Maria Duarte Soares – João Moreira Camilo – António Políbio Ferreira Henriques – Edmundo António Vasco Moscoso. |