Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:08/20
Data do Acordão:04/27/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO DE EMPREGO-INSERÇÃO
ACIDENTE
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:I - O acidente sofrido por trabalhador, a exercer funções de pedreiro para uma Junta de Freguesia, no âmbito de um contrato emprego-inserção, no tempo e local do trabalho prestado, deve ser considerado como acidente de trabalho, nos termos dos arts. 3º, 8º e 9º, da Lei nº 98/2009, de 4/9.
II – Nos termos do disposto no art. 4º, nº 4, alínea b) do ETAF, incumbe aos Tribunais Judiciais a competência para conhecer do processo visando a reparação dos danos resultantes de tal acidente.
Nº Convencional:JSTA000P27575
Nº do Documento:SAC2021042708
Data de Entrada:04/22/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL DA COMARCA DE PORTALEGRE - INST. CENTRAL - SEC. TRABALHO J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO
RECORRENTE: A………
RECORRIDA: JUNTA DE FREGUESIA DE GALVEIAS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 8/20

Acordam no Tribunal dos Conflitos

A………. intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal Castelo Branco (TAF de Castelo Branco) acção contra a Freguesia de Galveias, pedindo a condenação desta numa indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de um acidente ocorrido quando o Autor prestava trabalhos de pedreiro, por ordem e conta daquela autarquia com a qual celebrara um contrato de emprego inserção, ao abrigo da Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro.
Por sentença de 04.07.2019 (fls. 197/201), o TAF de Castelo Branco, apoiando-se em jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que cita, julgou-se materialmente incompetente e absolveu a Ré da instância, com fundamento de a indemnização pretendida pelo Autor derivar de acidente que sofreu enquanto prestava serviço no âmbito do “Contrato Emprego Inserção”, contrato que não configura a modalidade de relação jurídica de emprego público, pelo que tal sinistro não pode considerar-se um acidente em serviço nos termos do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, devendo antes ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009.
Interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), foi esta sentença mantida por decisão sumária do Relator, confirmada por acórdão proferido em 30.01.2020, igualmente com apoio da jurisprudência do Tribunal dos Conflitos.
Deste acórdão recorreu o Autor para este Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do nº 2 do art. 101º do CPC e da al. c) do art. 3º da Lei nº 91/99, de 4 de Setembro.
Defende, em síntese, que a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos invocada nas decisões referidas não tem aplicação à situação dos autos, porque o contrato de emprego inserção tinha por objecto a execução de trabalho socialmente necessário na área de trabalho não qualificado de agricultura e produção animal combinada e as funções por si efetivamente desempenhadas eram as de pedreiro, na reparação de prédios da Ré, o que extravasa totalmente o âmbito do contrato de emprego-inserção celebrado entre as partes. Conclui que não é aqui aplicável a exclusão prevista na al. b) do n.º 4 do art.º 4.º do ETAF, pelo que são os tribunais administrativos os competentes para julgar esta questão.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da confirmação da decisão recorrida com a consequente atribuição da competência para conhecer desta acção aos tribunais judiciais.

Vejamos.

A questão suscitada nos autos é a de saber qual a jurisdição competente quando está em causa um acidente sofrido por um trabalhador, beneficiário do Rendimento Social de Inserção, ao serviço de uma Junta de Freguesia, no âmbito de um “contrato emprego-inserção”.
Esta questão já foi apreciada pelo Tribunal dos Conflitos, por diversas vezes, sendo uniforme a posição assumida (cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos nº 15/17, de 19.10.2017, nº 53/17, de 25.01.2018, nº 40/18, de 31.01.2019, nº 42/18, de 28.02.2019, nº 15/19, de 30.01.2019 e nº 37/19, de 6.02.2019, 50/2029, 51/2019, 52/2019 de 25.06.2020 e nº 44/19, de 03.11.2020).
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP).
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Deste último preceito importa reter o disposto na alínea b) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios “decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.
O “contrato emprego-inserção” insere-se no regime jurídico do Rendimento Social de Inserção criado pela Lei nº 13/2003, de 21/5, fazendo parte do programa de inserção previsto naquele regime e está regulamentado na Portaria nº 128/2009, de 20/1.
Daquele contrato não decorre o estabelecimento de qualquer vínculo de trabalho em funções públicas nos termos da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP).
Efectivamente, o art. 6º da LTFP (Lei nº 35/2014, de 20/6), prevê as modalidades de prestação de trabalho em funções públicas que se traduzem no vínculo de emprego público e no contrato de prestação de serviço. E, conforme o nº 3 deste preceito, as modalidades do vínculo de emprego público são o contrato de trabalho em funções públicas, a nomeação e a comissão de serviço. Por sua vez, o art. 10º dispõe que “O contrato de prestação de serviço para o exercício de funções públicas é celebrado para a prestação de trabalho em órgão ou serviço sem sujeição à respetiva disciplina e direção, nem horário de trabalho” e o nº 2 que as suas modalidades são o contrato de tarefa e o contrato de avença.
Ora, o DL n.º 503/99, de 20/11 (regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública) determina no seu artigo 2º que “O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado” (nº 1) e que “O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes” (nº 2). Ao que acresce que “O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior” (nº 3).
Por outro lado, nos termos do nº 4, “Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código”.
Por sua vez, de acordo com o nº 5, “O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de protecção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social”. Por último, dispõe o nº 6 que “As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho”.
Assim, não pode o acidente em apreço considerar-se abrangido pelo regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública.
Já a Lei nº 98/2009, de 4/9, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, prevê de forma ampla o seu âmbito de aplicação no que respeita a acidentes de trabalho e é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho. O art. 284º deste Código remete a regulamentação da prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais para “legislação específica”, que é justamente a Lei nº 98/2009.
Independentemente da natureza jurídica da relação estabelecida entre a Junta de Freguesia e o trabalhador, a situação em apreço cabe na previsão normativa do art. 3º, de acordo com a qual “O regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos” (nº 1) e “Quando a presente lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços” (nº 2). E que, “Para além da situação do praticante, aprendiz e estagiário, considera-se situação de formação profissional a que tem por finalidade a preparação, promoção e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador” (nº 3). A entidade por conta de quem o trabalho é prestado é obrigada a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na Lei nº 98/2009 para “entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, conforme o art. 79º, nº 1.
O acidente em causa nos autos é susceptível de ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos dos arts 3º, 8º e 9º, da Lei nº 98/2009, de 4/9, já que é subsumível ao conceito de acidente de trabalho previsto no art. 8º, nº 1, segundo o qual “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte”.
E, como bem refere a Exma. Procuradora Geral Adjunta “o eventual desrespeito pelas cláusulas ou pelo regime do emprego-inserção estabelecidas pela Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, na redacção da Portaria n.º 164/2011, de 11 de Abril, cometendo ao trabalhador tarefas diferentes das acordadas, não altera o modo de vinculação entre as partes que é a proveniente do contrato de emprego-inserção celebrado.” e “não investe este numa relação de emprego público, nem colide com qualquer elemento da noção de acidente de trabalho”.
Assim, e atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. b), do ETAF, é de concluir, tal com tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos em casos idênticos, que o acidente dos autos não pode considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública. Antes devendo ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei nº 98/2009, razão pela qual a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e, confirmando o acórdão recorrido, atribuir a competência aos tribunais judiciais para conhecer da presente acção.
Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, a relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STJ, Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza tem voto de conformidade.

Lisboa, 27 de Abril de 2021
Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa