Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:012/18
Data do Acordão:09/20/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
SUB- ROGAÇÃO.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
MUNICIPIO - PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO.
COMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA.
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23602
Nº do Documento:SAC20180920012
Data de Entrada:02/19/2018
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO - UNIDADE ORGÂNICA E O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA - JUIZ 3.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
CONFLITO Nº 12/18 - 70.

Acordam no Tribunal de Conflitos:

A Autora A…………… – …………, S.A., intentou no TAF de Castelo Branco a presente Acção Administrativa Comum contra B…………..., Ldª, C…… – ………., Ldª e, Município de Trancoso.

Pede a condenação solidária ou subsidiaria dos Réus no pagamento da quantia de €.89.899,46, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Após as contestações apresentadas nos autos por parte de todas os RR, a Autora requereu a fls. 218 a intervenção de terceiro – D………. e E………

Findos os respectivos articulados, o TAF de Castelo Branco proferiu decisão, tendo, oficiosamente, declarado o Tribunal/a jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria, para conhecer da presente acção, absolvendo os RR da instância.

Remetidos os autos ao Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Juiz 3, veio o mesmo por decisão que constitui fls. 583 a 589, a declarar-se incompetente em razão da matéria, considerando competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais e remetendo aos autos ao Tribunal de Conflitos para resolução do conflito negativo de jurisdição.


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Cumpre apreciar e decidir.

Na presente acção administrativa comum intentada por A………. – ………. S.A., em sub-rogação, contra três RR, entre eles, o Município de Trancoso, alega a Autora em sede de petição inicial e, em síntese, que:

No decurso de obras de construção civil devidamente licenciadas, com vista à construção de uma casa de habitação, um dos trabalhadores veio a ser vítima de um acidente qualificado como acidente de trabalho;

A Seguradora, ora Autora, foi condenada por decisão transitada em julgado, ao pagamento das quantias respectivas, uma vez que, a entidade empregadora, a construtura e 1ª Ré “B……….., havia transferido a responsabilidade civil decorrente de acidente de trabalho para a A……….;

A Autora imputa as causas do acidente, em conjunto e na medida das competências de cada uma das RR, da seguinte forma:

À 1ª Ré, por ser a entidade construtora e empregadora a quem imputa uma conduta omissiva em relação a cuidados e regras de segurança no trabalho;

À 2ª Ré em virtude de não ter sinalizado, de todo, a conduta de gás, violando deste modo o disposto no regulamento de segurança e sinalização das condutas de gás, dificultando ou impedindo a visualização e alerta da presença do tubo no local;

Ao 3º Réu – Município de Trancoso – enquanto entidade licenciadora da obra em questão e, tendo assegurado a presença de dois Engenheiros no local, tinha a obrigação de ter alertado a 1ª Ré para a presença da tubagem no local, nomeadamente, facultando-lhe toda a documentação necessária para o efeito, e assegurar-se que a 1ª Ré tinha implementado um plano para a realização da obra, bem como um estudo prévio do local.

Termina concluindo que, por força do disposto no artºs 17º, nº 4, 18º, nº 1 e 79º, nº 3 da Lei nº 98/2009, tem a Autora o direito de sub-rogação sob as RR relativamente a todas as quantias despendidas com a regularização do acidente sofrido e descrito nos autos.

Face à sumula supra enunciada, o TAF de Castelo Branco entendeu que a relação jurídica aqui em presença integra matéria da responsabilidade civil contratual, por via do contrato de seguro, e desta forma, excluiu a sua competência, desaplicando o disposto no artº 4º, nº 1 do ETAF.

Ao invés, o Tribunal Comum da Guarda entendeu que a acção se apresentava como uma acção de responsabilidade civil extracontratual [sendo a matéria respeitante à relação contratual anterior à discutida nos presentes autos] e que ao agir por via do mecanismo da sub-rogação, a Autora age no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual, uma vez que, se limita a demandar as entidades que, na sua óptica, deram causa ao prejuízo que sofreu e que por esta via, pretende ver ressarcido, sem alusão a qualquer relação contratual.


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Estamos, pois, perante um conflito negativo de jurisdição motivado pela pronúncia de duas decisões judiciais, de sentido inverso, emitidas, primeiro, por um tribunal da jurisdição administrativa e, subsequentemente, por um tribunal da jurisdição comum, decisões que, mutuamente declinaram a competência material para dirimir o litígio submetido a juízo.

O poder jurisdicional, é sabido, encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas que perante eles se suscitam - cfr. arts. 209º e segs da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Nos termos do disposto no artº 211º, nº 1 da CRP, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.

Estabelecendo o artº 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (também o artº 64º do CPC).

Por sua vez, artº 212º, nº 3 da CRP estabelece que, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Também o artº 1º, nº 1 do ETAF, na redacção aplicável, estatui que, “os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

A existência de várias categorias de tribunais supõe, naturalmente, um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.

A determinação do tribunal competente em razão de matéria, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respectivos fundamentos, ou seja, afere-se por referência à relação jurídica controvertida, tal como exposta na petição inicial, atendendo-se ainda à identidade das partes, pretensão formulada e respectivos fundamentos, sendo, no entanto, nesta fase, indiferente o juízo de prognose acerca da viabilidade ou não da acção, face à sua configuração - cfr. entre muitos outros, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 28-09-2010, processo nº 2/10 de 29-03-2011, processo nº 2510, de 02-03-2011, processo 9/10 e de 09-09-2010, proc. 011/10.

Regressando à presente acção, a nosso ver, o Tribunal da Comarca da Guarda decidiu conforme ao direito, pois, ao invés do decidido no TAF de Castelo Branco, o Município de Trancoso é demandado no pedido [concreto] formulado pela Autora [subsidiário ou solidário com as demais RR] com base numa causa de pedir de responsabilidade extracontratual e não numa causa de pedir contratual.

A acção proposta pela Autora, além de ter como causa de pedir o exercício da sua actividade seguradora ao ter contratado com a Ré B……….., Ldª, contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho e ter no âmbito do processo de acidente de trabalho, com a regularização do mesmo, despendido a quantia global de 89.899,64€ que peticiona na presente acção, tem por outro lado, igualmente, em sede de causa de pedir, a responsabilidade das demais RR, fundando-se o pedido contra o Município do Trancoso na falta de informação, enquanto entidade licenciadora da obra, à 1ª Ré da passagem na área onde ocorreu o acidente de trabalho de uma conduta de gás apesar da presença no local e no momento em que ocorreu o acidente, de 2 engenheiros daquele Réu e a obrigação de ter alertado a 1ª R para a presença da tubagem no local, nomeadamente, facultando-lhe toda a documentação necessária para o efeito, e assegurar-se que a 1ª R tinha implantado um plano para a realização da obra, bem como um estudo prévio do local – cfr. artºs 32º a 35º, 38º e 42º da Petição inicial.

Com efeito, a competência dos tribunais fixa-se [independentemente de modificações de facto ou de direito que venham a ocorrer, em função da data da propositura da acção – 06.01.2016 – cfr. artºs 5º, nº 1 do ETAF e 38º da Lei nº 62/2013 de 26/08 – Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Cientes que a causa de pedir não assenta numa relação contratual, [que apenas existiu num momento prévio e situado no processo por acidente de trabalho], é inequívoco que nos situamos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, pois a responsabilidade civil do Município de Trancoso, a existir terá de ser fundada exclusivamente em normas de direito público e terá exclusivamente natureza extracontratual, por não resultar de qualquer vínculo contratual que tivesse sido estabelecido entre a Autora e o Município.

E, assim sendo, e constituindo o Réu Município uma pessoa colectiva de direito público, estamos no âmbito de aplicação do disposto no artº 4º, nº 1, al. g) do ETAF, onde se dispõe: «Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a …Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo acções de regresso», sendo que a mesma também não se mostra excluída pelos nºs 3 e 4 do mesmo normativo legal – cfr. ainda o que se deixou consignado no Acórdão deste Tribunal de Conflitos proferido em 07.10.2009, in rec. nº 01/2009.

Desta forma, quer do ponto de vista dos sujeitos processuais, quer do ponto de vista da relação jurídica que fundamenta a pretensão da Autora, deparamo-nos com uma relação jurídica tipicamente de direito administrativo e perante um litígio que tem por objecto a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público, não restando dúvidas que a competência para decidir do mérito da presente acção pertence à jurisdição administrativa.


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Pelo exposto, julga-se que a competência para a acção cabe aos tribunais administrativos.

Sem custas.

Lisboa, 20 de Setembro de 2018. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Graça Maria Lima de Figueiredo Amaral – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Maria de Fátima Morais Gomes – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Rosa Maria Mendes Cardoso Ribeiro Coelho.