Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0535/20.9T8STB.E1.S2
Data do Acordão:12/02/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Cabe à jurisdição administrativa a apreciação de uma acção instaurada contra o Estado na qual os autores pedem a resolução de um contrato de compra e venda com fundamento na falta de afectação do prédio vendido à finalidade de interesse público que o justificou, a promoção do desenvolvimento urbano-industrial da zona e que sempre permitiriam ao adquirente público o recurso à via da expropriação.
Nº Convencional:JSTA000P28743
Nº do Documento:SAC202112020535
Recorrente:..................
....................
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal dos Conflitos

Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 23 de Janeiro de 2020, AA e BB intentaram no Tribunal da Comarca de Setúbal uma ação declarativa de condenação, com processo comum, contra o Estado Português, formulando o seguinte pedido:
“(…) deve a acção ser julgada procedente por provada, em consequência:
a) Devendo declarar-se como não verificada a afectação do imóvel ao fim a que se destinava e que determinou a outorga da escritura de 21 de Março de 1978;
b) Devendo decretar-se verificada a condição resolutiva constante do clausulado da escritura de compra e venda e determinada a destruição retroactiva do negócio, devendo ser fixado prazo para, antes da sentença, ser depositado o preço recebido de acordo com o princípio nominalista e o réu condenado a restituir o prédio ao autor - cf. doc. 7.
c) Devendo ainda decretar-se sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no depósito do preço e na restituição do prédio aos autores;
d) Subsidiariamente, quando assim eventualmente se não entenda, devendo considerar-se existir incumprimento da obrigação constante do clausulado da escritura, sendo decretada a resolução do negócio, pelo que, não sendo legalmente possível a restituição, deve o réu ser condenado a pagar ao autor a quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença correspondente ao valor actualizado do prédio, por ser impossível determinar de imediato esse valor - cf. doc. 7;
e) Subsidiariamente e quando assim também eventualmente se não entenda, devendo considerar-se existir alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, sendo igualmente decretada a resolução do negócio, pelo que, não sendo legalmente possível a restituição, deve o réu ser condenado a pagar ao autor a quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença correspondente ao valor actualizado do prédio, por ser impossível determinar de imediato esse valor- cf. doc. 7.
f) O R. condenado a pagar as custas.”.
Alegaram para o efeito, e em síntese, assistir-lhes, na qualidade de sucessores de CC e DD, o direito à resolução do contrato de compra e venda do prédio misto identificado nos autos, que aqueles venderam, em 21 de Março de 1978, ao extinto Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines (GAS).
Fundamentaram a sua pretensão na circunstância de o GAS e as entidades que lhe sucederam após a sua extinção não terem procedido à afetação a que o imóvel se destinava (“empreendimentos integrados no Plano Geral da Área de Sines”), circunstância que consideram ter sido determinante para a realização da escritura.
O Ministério Público contestou, em representação do Estado Português, excecionando a sua ilegitimidade e a incompetência material da jurisdição comum para conhecer da causa, que considera dever ser atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa.
Sustentou, em suma, que o contrato foi celebrado no âmbito dos poderes discricionários do GAS, na medida em que, se os vendedores não tivessem concordado com a venda, o GAS desencadearia a expropriação do prédio.
Por fim, impugnou os factos alegados pelos autores.
Os autores responderam às excepções, defendendo, além do mais, que as partes celebraram o contrato no estrito domínio da liberdade contratual, ambas desprovidas de poderes de autoridade e sem que o preço acordado possa ser equiparado a uma indemnização no âmbito de um processo de expropriação. Reafirmaram, assim, a competência material dos tribunais judiciais para a decisão do litígio dos autos.
O Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Central Cível de Setúbal – Juiz …, dispensou a realização de audiência prévia e proferiu despacho saneador-sentença, em 4 de Novembro de 2020, julgando verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, declarando-se incompetente em razão da matéria para apreciar o mérito da ação e atribuindo a competência aos tribunais administrativos.
Para tanto, concluiu que o prédio em causa foi adquirido no exercício das competências administrativas do GAS, no desenvolvimento de uma relação jurídica administrativa com os particulares, uma vez que “se os antecessores dos AA não tivessem concordado com a venda, o gabinete desencadearia ou poderia desencadear a respetiva expropriação, o que advinha dos poderes de autoridade atribuídos, com possibilidade de imposição de restrições interesse público”.
Os autores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 25 de Março de 2021, manteve o despacho recorrido, considerando estarmos “perante um contrato administrativo por natureza, que se integra na categoria de contratos administrativos prevista no art. 280.º, n.º 1, al. b), 1.ª parte do CCP: «contrato com objeto passível de ato administrativo»; logo, sujeito ao regime do Direito Administrativo”.
Daquele acórdão da Relação de Évora vieram os autores interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

2. Nas alegações que apresentaram, os recorrentes formularam as seguintes conclusões (transcrevem-se as que interessam ao julgamento do presente recurso):
“(…) 4.ª. Não podem os recorrentes conformar-se com tal decisão do Tribunal da Relação de Évora] por entenderem que a mesma resulta de deturpada subsunção dos factos aos normativos aplicáveis, designadamente os artigos 1.º e 4.º do ETAF e dos artigos 60.º, n.º 2, 64.º e 54.º do Código de Processo Civil;
5.ª Pois que os fins e a natureza da escritura de compra e venda do prédio referida nos autos em momento algum se equipara a uma relação do foro administrativo;
6.ª Tendo as partes actuado livres na sua vontade e munidas de total liberdade de estipulação, o GAS querendo comprar e os vendedores querendo vender. Foram livremente estipuladas as cláusulas da escritura e foi livremente estipulado o preço;
7.ª O que não aconteceria no âmbito de uma relação administrativa na qual uma das partes actua na prossecução de interesses públicos podendo impor a sua vontade.
8.ª Na escritura de compra e venda em crise não houve qualquer expropriação não houve pagamento de indemnização, assim como não houve actuação do GAS munido de ius imperii, sendo a escritura outorgada em cartório notarial;
9.ª As partes adoptaram uma estrutura para a forma de transmissão de propriedade – vulgar escritura de compra e venda – e não escritura lavrada perante notário privativo do GAS ou de outro ente público, sendo todo o conteúdo da escritura um negócio jurídico de direito privado não havendo em momento algum invocação de normas jurídico-administrativas para a sua celebração;
10.ª Não se verificaram os trâmites da expropriação amigável, previstos no artigo 33.º do Código das Expropriações e manifestamente distintos das aquisições celebradas ao abrigo de Direito Privado e previstas no artigo 11.º do mesmo Código, caracterizadas, a primeira, por acta de investidura judicial o qual apenas teria lugar após a celebração da escritura e depois de junto pelo expropriante o depósito do montante da indemnização, cujo pagamento não seria assim contemporâneo da escritura, como foi no caso dos autos;
11.º As declarações das partes, que, reitere-se, foram, de celebração de negócio jurídico de natureza privada, exprimem a sua vontade real, conforme aliás preceituado pelo artigo 238.º do CC;
12.º Nenhuma regra de Direito Administrativo é convocada para decidir o litígio, tal como os Recorrentes, AA da acção, configuram a causa de pedir (cfr. p.i.);
13.ª O facto de ser o extinto GAS entidade pública não significa nem altera o facto de o negócio jurídico entre as partes outorgado – escritura pública de compra e venda – ser negócio jurídico de direito privado;
14.ª Sendo toda a matéria que lhe subjaz igualmente de Direito Privado não podendo ser dirimida através de normas de Direito Administrativo, pois não foram tais normas que nortearam a sua outorga;
15.ª Ademais, a expropriação era subsidiária à celebração de escrituras de compra e venda, nos termos dos artºs 3.º/1. Al. j) e 36.º do D.L. 270/71 (…);
(…) 19.ª Mais acresce que tem a jurisprudência entendido que a configuração da causa de pedir feita pelo Autor confere competência material aos Tribunais, pelo que, havendo os ora Recorrentes conferido à causa de pedir matéria do foro privado, civil, deveria o Tribunal a quo conhecer do litígio;
(…) 23.ª Concluindo-se assim que, sendo privada a relação jurídica existente entre o GAS e os vendedores que determinou a outorga da escritura de compra e venda em crise, não sendo para a sua celebração chamada à colação qualquer norma de direito administrativo, não se verificando qualquer processo de expropriação amigável e atendendo máxime às declarações das partes nela contidas, que exprimem a sua vontade real e que devem como tal ser interpretadas, o negócio jurídico celebrado, tal como configurado pelos Recorrentes na sua petição inicial, se traduz numa relação jurídica de direito privado, subsumível às normas e princípios da Teoria Geral do Direito Civil e de Direito das Obrigações;
24.ª O conhecimento de quaisquer litígios emergentes da referida relação jurídica é da exclusiva competência dos tribunais comuns, pois o decisor não carece de analisar ou aplicar qualquer norma de Direito Administrativo;
25.ª Por último, requereram os Recorrentes, por se verificarem fundadas dúvidas sobre a questão da jurisdição competente para dirimir o litígio, mos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º n.º 1 da Lei 91/20219 de 4 de Setembro, a sujeição da questão suscitada a consulta prejudicial ao Tribunal de Conflitos, a fim de se decidir de forma célere e em definitivo da questão da competência suscitada;
26.ª Mal andou o Tribunal da Relação ao não se pronunciar sobre o peticionado pelos Recorrentes, padecendo assim o acórdão em crise de nulidade dos termos do disposto no artigo 615.º n-º 1 al. d) do C.P.C:
(…) 29.ª De onde se conclui, que devia o Tribunal da Relação de Évora ter submetido a questão ao tribunal de conflitos, o que (…) se requer (…), caso não se entenda desde logo reconhecer a legal competência da jurisdição comum.
Nestes termos (…):
a) Deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser o acórdão recorrido revogado e substituído por outro que decida não se verificar excepção de incompetência absoluta o Tribunal, declarando competente o tribunal de comarca para conhecer do litígio impetrado nos autos e determine a marcha normal do processo;
b) Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º da Lei do Tribunal de Conflitos, requerem seja remetida consulta prejudicial destinada a conhecer em definitivo da competência, se for o caso;
c) C) Finalmente e sem conceder, sempre deviam os autos ser remetidos ao tribunal competente, dado a falta de fundamento para assim não ser feito, nos termos do art.º 99.º do C.P.C.”

O Ministério Público contra-alegou, sustentando a inadmissibilidade do recurso, por verificação de dupla conforme, e, caso assim se não entenda, a sua improcedência, bem como a falta de fundamento da nulidade invocada.
O recurso de revista foi admitido. E foi ainda proferido acórdão do Tribunal da Relação de Évora desatendendo a nulidade arguida e rejeitando “o pedido de sujeição à apreciação do Tribunal de Conflitos da questão da jurisdição competente para a acção”.
Os autores vieram considerar sanada a nulidade que arguiram e requerer a subida dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça.
O Supremo Tribunal de Justiça decidiu não conhecer do objecto do recurso e proceder à sua convolação em recurso para o Tribunal dos Conflitos.
Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que fossem seguidas as regras previstas na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), nos termos do disposto no respectivo artigo 18.º, n.º 2.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente ação ao Tribunal Administrativo de Setúbal.

3. O acórdão recorrido julgou provado o seguinte, que se transcreve:

“1 - No dia 21 de março de 1978, por escritura pública outorgada no 6.º Cartório Notarial……, DD e CC venderam ao (extinto) Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines, o prédio, com parte urbana e parte rústica, denominado "C………", sito na freguesia ......., descrito na Conservatória do Registo Predial .......com o n.º ……24 do livro …., registado a seu favor pela inscrição no livro ….., sob o n.º …..08.
2 - A compra e venda foi outorgada pelo montante, à data, de esc.450.000$00.
3 - A parte rústica do prédio encontra-se inscrita na matriz cadastral sob o art. ….38 da secção …., com a área de 64.500m2 e a parte urbana encontra-se inscrita na matriz predial sob o art. …..25.
4 - O Gabinete de Planeamento da Área de Sines (GAS) foi criado pelo D/L n.º 270/71, de 19.06 com o objetivo de promover o desenvolvimento urbano-industrial das zonas de Sines e Santiago do Cacém.
5 - O Gabinete de Planeamento da Área de Sines constituía entidade dotada de personalidade jurídica e financeira que visava sobretudo a criação e o desenvolvimento de um importante polo industrial destinado à receção, transformação e utilização do petróleo das antigas províncias ultramarinas.
6 - O Conselho de Ministros restrito de 26 de junho de 1973 declarou a expropriação sistemática, a realizar pelo GAS, dos prédios sitos no concelho de Sines e Santiago do Cacém, a qual foi objeto de publicação na II Série do Diário do Governo de 12 de julho de 1973; consequentemente, o GAS começou a notificar os proprietários dos terrenos expropriados, o que ocorreu até 1985; noutros casos, outorgou escrituras de compra e venda para aquisição dos prédios, nas quais condicionou o destino do prédio comprado a «empreendimentos integrados no Plano Geral da área de Sines».
7 - O Conselho de Ministros, através da Resolução de 7 de fevereiro de 1986, decretou a extinção do GAS; na sequência foi publicado o D/L n.º 116/89, de 14 de abril, de cujo preâmbulo consta o seguinte: «(...) na sequenciada determinação do governo de proceder à extinção do gabinete da Área de Sines (GAS) através da reafectação dos seus valores patrimoniais, pessoal e funções aos serviços e organismos da administração central e local mais vocacionados para o efeito, o GAS transferiu já para outras entidades a quase totalidade das suas atribuições e ativos patrimoniais (...) estando apenas ainda sob administração do GAS os terrenos não afetos a infra-estruturas urbanísticas ou industriais, que vêm tendo um aproveitamento agrícola ou florestal».
8 - Por força do diploma referido em 7, foi transferido para o Estado «a propriedade dos prédios rústicos e urbanos sitos na zona de atuação direta do Gabinete da Área de Sines (GAS) e a este pertencente, com a área aproximada de 11500ha, fiando afeta ao serviço nacional de parques, Reservas e Conservação da Natureza (SNPRCN) uma área de proteção litoral e à Direção-Geral das Florestas (DGF) a restante área dos mesmos prédios».
9 - Através do D/L n.º 228/89, de 17.07 operou-se a extinção e liquidação do GAS.
10 - Consta da escritura de compra e venda acima referida que «os prédios ora adquiridos se destinam ao complexo urbano industrial da Área de Sines e que «a aquisição é feita ao abrigo do disposto na alínea J) do art. 3.º do D/L n.º 270/71 de 19.06»”.

4. Cumpre conhecer do recurso, cujo objecto se traduz em determinar qual é a jurisdição competente para conhecer do pedido do autor, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos, “por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº 508/94, de 14.07.94, in Processo nº 777/92; e AC TC nº 347/97, de 29.04.97, in Processo nº 139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais),
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.
Disse-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, processo n.º 020/18: “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].
A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.

5. No caso dos autos, os autores alegam, em suma, que entre os seus antecessores e o extinto Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines (GAS) foi celebrado, em 21 de Março de 1978, por escritura pública, um contrato de compra e venda através do qual os primeiros venderam ao segundo o prédio misto, identificado nos autos, pelo preço de € 2.244,59.
Mais alegam constar da aludida escritura "que os prédios ora adquiridos se destinam ao complexo urbano industrial da Área de Sines", ali se referindo, ainda, que a aquisição (...) "é feita ao abrigo do disposto na alínea j) do art.° 3.° do Decreto-Lei n.° 270/71 de 19 de Junho"
Referem, também, que o GAS foi criado pelo Decreto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, com o objetivo de promover o desenvolvimento urbano-industrial das zonas de Sines e Santiago do Cacém e que, decorridos dois anos sobre a publicação daquele diploma, foi declarada a expropriação sistemática, a realizar pelo GAS, dos prédios sitos no concelho de Sines e Santiago do Cacém. Concretizam que, nessa decorrência, o GAS empreendeu a notificação dos proprietários dos terrenos expropriados, o que ocorreu até 1985 e, noutros casos – como o dos autos – outorgou escrituras de compra e venda, para aquisição, condicionando o destino do prédio comprado a (...) "empreendimentos integrados no Plano Geral da Área de Sines".
Por fim, salientando que as partes celebraram o contrato de compra e venda em causa “apenas e tão só” para a instalação dos empreendimentos do Plano Geral da Área de Sines, jamais admitindo que ao prédio transmitido fosse dado outro destino, concluíram que a circunstância de o GAS e de as entidades que lhe sucederam após a sua extinção não terem procedido à afectação a que o imóvel se destinava sempre determinará a resolução do contrato por parte dos vendedores.
Aqui chegados, importa apurar se nos encontramos perante uma questão de natureza meramente privada (ou jurídico-civil), relativa ao incumprimento de um contrato de compra e venda de um imóvel, ou se estamos perante uma questão jurídica que assume contornos que lhe conferem natureza administrativa.
Entendeu-se na decisão do Juiz do Juízo Central Cível de Setúbal que o prédio em causa foi adquirido no exercício das competências administrativas do GAS, no desenvolvimento de uma relação jurídica administrativa com os particulares, na medida em que “se os antecessores dos AA não tivessem concordado com a venda, o gabinete desencadearia ou poderia desencadear a respetiva expropriação, o que advinha dos poderes de autoridade atribuídos, com possibilidade de imposição de restrições de interesse público”.
Por seu turno, sustenta-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora estarmos “perante um contrato administrativo por natureza, que se integra na categoria de contratos administrativos prevista no art. 280.º, n.º 1, al. b), 1.ª parte do CCP: «contrato com objeto passível de ato administrativo»; logo, sujeito ao regime do Direito Administrativo”.
A propósito da noção de “relação jurídica administrativa”, escreveu José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53):
na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
O Decreto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, criou o Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines, abreviadamente designado por Gabinete da Área de Sines, destinado a promover o desenvolvimento urbano-industrial da respetiva zona (art. 1.º, n.º 1), conferindo-lhe personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira (art. 1.º, n.º 2).
Nos termos do art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 270/71, eram atribuições suas
a) Promover, na zona delimitada no n.º 2, a criação de uma área de implantação concentrada de indústrias de base e de um terminal oceânico, dotados das adequadas infra-estruturas e dos necessários serviços de apoio;
b) Promover, na mesma zona, a instalação de outros empreendimentos industriais que possam contribuir para o mais harmónico desenvolvimento do complexo;
c) Promover, ainda na mesma zona, a criação dos centros urbanos exigidos pela concentração populacional resultante do exercício das actividades industriais e a instalação e o funcionamento dos respectivos equipamentos sociais;
d) Propor a adopção das formas de gestão mais convenientes para os diversos empreendimentos a realizar. (…)
Nos termos do art. 3.º, n.º 1, alínea j), para o exercício das suas atribuições, competia especialmente ao Gabinete da Área de Sines, “Proceder à aquisição de terrenos e outros imóveis necessários para a instalação e funcionamento dos seus serviços ou para a realização de trabalhos, bem como para a execução dos planos, promovendo a respectiva expropriação, quando necessária”.
Decorre, por outro lado, do artigo 36° do mesmo diploma terem sido declaradas de utilidade pública urgente as expropriações necessárias para a execução dos planos geral e parciais que fossem aprovados para a área de actuação direta do GAS, dispondo o respectivo n.º 2 que, mesmo antes de “existirem planos aprovados, considera-se desde já declarada a utilidade pública urgente das expropriações necessárias (…)”.
No caso dos autos, o prédio em causa situava-se na zona de atuação do GAS e foi adquirido ao abrigo do Decreto-Lei 270/71, estando o respetivo contrato sujeito à disciplina ali consagrada, designadamente à decorrente do mencionado art. 3.º, n.º 1, alínea j).
Assim, se é certo que o contrato foi celebrado entre as partes, por escritura pública, sem dependência de qualquer acto ou processo expropriativo, a verdade é que a aquisição do imóvel teve na sua génese as especiais atribuições do GAS, de promoção do desenvolvimento urbano-industrial da respetiva zona, que, em última análise, sempre lhe facultariam a possibilidade de promover a expropriação, quando e se necessário.
Desta forma, tendo o GAS atuado no exercício de um poder público, com vista à realização de um interesse público legalmente definido, tem todo o fundamento a afirmação do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de que o prédio em causa foi adquirido “no desenvolvimento de uma relação jurídica administrativa com os particulares”.
Tem plena aplicação ao caso a doutrina exposta no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23 de Janeiro de 2020, www.dgsipt, proc. n.º 32/19, segundo o qual 4. Sendo certo que foi celebrado um contrato de compra e venda entre os AA. e o R. MPorto, a verdade é que ele funcionou como sucedâneo da expropriação amigável, impossibilitada a mesma, como acima se disse, pela indisponibilidade manifestada pelos AA. em vender a sua parcela de terreno. Antes da celebração do contrato em questão, o MPorto conseguiu que a parcela de terreno dos AA. fosse declarada como de interesse público para efeitos de expropriação. Com a declaração de utilidade pública, o direito de propriedade dos interessados é sacrificado e os bens por ela atingidos ficam de imediato adstritos ao fim específico da expropriação. A substituição da expropriação amigável pela compra e venda dos bens expropriados, in casu, da parcela de terreno dos AA., não transmuta a relação jurídico-administrativa decorrente da expropriação numa relação jurídico-privada.
O contrato de compra e venda apenas serve como meio mais expedito para concluir rapidamente o procedimento de expropriação, pelo que, mantendo-se a natureza expropriativa do contrato, o pedido de resolução do mesmo contrato por pretenso incumprimento do fim expropriador move-se no âmbito da relação jurídico-administrativa de expropriação, transportando a resolução dos litígios dela emergentes para a jurisdição administrativa. Efectivamente, cumpre sublinhar que o pedido de resolução do contrato de compra e venda visa a reversão da parcela expropriada (artigo 5º do CE). A reversão traduz-se no direito conferido ao expropriado de recuperar os bens expropriados quando os mesmos se mostrarem desnecessários para a realização do interesse público que justificou a expropriação. E esse fenómeno da reversão baseia-se em fundamentos de direito público e a sua competência é deferida à entidade que houver declarado a utilidade pública da expropriação ou que haja sucedido na respetiva competência (artigo 74º/1 do CE).”
Não é a indisponibilidade para vender o prédio, referida neste acórdão de 23 de Janeiro de 2020, que agora interessa, uma vez que o direito de propriedade dos autores foi desde logo onerado nos termos do disposto no artigo 36.º do citado Decreto-Lei n.º 270/71 e que, como consta do ponto 6. dos facto provados, ”0 Conselho de Ministros restrito de 26 de Junho de 1973 declarou a expropriação sistemática, a realizar pelo GAS, dos prédios sitos no concelho de Sines e Santiago do Cacém, a qual foi objeto de publicação na II Série do Diário do Governo de 12 de Julho de 1973; consequentemente, o GAS começou a notificar os proprietários dos terrenos expropriados, o que ocorreu até 1985; noutros casos, outorgou escrituras de compra e venda para aquisição dos prédios, nas quais condicionou o destino do prédio comprado a «empreendimentos integrados no Plano Geral da área de Sines».
Esta oneração retira relevo à interpretação feita pelos recorrentes do disposto na al.j) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 270/71.quanto à natureza subsidiária da expropriação.

6. Conclui-se, portanto, que a relação controvertida, balizada pelo pedido e pela causa de pedir definidos pelos autores, tem natureza administrativa, cabendo à jurisdição administrativa a sua apreciação, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º e na al.o) do n.º 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Nega-se, portanto, provimento ao recurso.
Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


Lisboa, 2 de Dezembro de 2021. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) - Henrique Araújo - Teresa de Sousa.