Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:025/22
Data do Acordão:11/08/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30172
Nº do Documento:SAC20221108025
Data de Entrada:09/27/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE - JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA U.O. 1
REQUERENTE: CENTRO HOSPITALAR DE LEIRIA, E.P.E.
REQUERIDO: POLÍCIA DE SEGURANCA PÚBLICA E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 25/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
Centro Hospitalar de Leiria, EPE, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande, Juiz 2, processo de injunção – nº 72104/20.6YIPRT, contra o Estado Português e a Polícia de Segurança Pública, pedindo a condenação do 1º Réu no pagamento da quantia de €311,22, bem como juros vencidos e vincendos; ou, subsidiariamente a condenação da 2ª Ré no pagamento da mesma quantia.
Em síntese, alega que prestou cuidados de saúde a pessoa entrada no Serviço de Urgência daquele Hospital, em 18.09.2017, que foi vítima de acidente de viação provocado por um veículo de propriedade do 1º Réu e que se encontra ao serviço da 2ª Ré, de matrícula ………, cujo condutor foi o único responsável pelo acidente de viação ocorrido, sendo o outro veículo interveniente conduzido por A………… e propriedade de B…………. Pretende obter o pagamento dos encargos daí resultantes, de acordo com o disposto no DL nº 218/99, de 15 de Junho.
Em 26.04.2021, no Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria por considerar ser da competência dos tribunais administrativos a apreciação de litígios, como o dos autos, que tem por objecto questão relativa a responsabilidade civil extracontratual, nos termos da alínea f) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAF de Leiria), foi aí proferido saneador-sentença em 29.06.2022 a declarar a incompetência em razão da matéria, apoiando-se em jurisprudência proferida pelo Tribunal dos Conflitos sobre a matéria em discussão.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do artigo 11º, da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.
Entendeu o Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande, nomeadamente, que: "Assim, a responsabilidade por actos ilícitos puramente civis, viu-se arredada dos Tribunais Judiciais, mau grado a sua natureza estritamente privada, quando naqueles factos intervenha uma pessoa de Direito Público, para ficar cometida aos Tribunais Administrativos e, assim, "desaparece a dicotomia tradicional «gestão pública/gestão privada» como critério de repartição de competência entre o foro administrativo e o foro comum" (v. MARIA JOÃO ESTORNINHO, Cadernos de Justiça Administrativa, Setembro/Outubro, 2002, p. 5).
Serve o exposto por dizer, a pretensão fundada em responsabilidade extracontratual da pessoa colectiva de Direito público fica sempre sujeita à jurisdição administrativa-fiscal, independentemente de se tratar de gestão pública (como é o caso) ou privada (como pretende o A. que fosse).

Por sua vez o TAF de Leiria, fundando-se em jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, que cita, em matéria, como a presente, em que estava em causa a aplicação do disposto no DL nº 218/99, de 15/6 [respeitante à cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde por prestação de serviços médicos] considerou que: "Face ao que vimos de expor, é jurisprudência corrente do Tribunal dos Conflitos que a competência para conhecer dos litígios atinentes à cobrança de créditos ao abrigo do regime do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15/06, é da competência da jurisdição comum, dos Tribunais Judiciais, pelo que declaro este Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria materialmente incompetente.". Consequentemente, absolveu os Réus da instância (cfr. arts. 89º, nºs 1, 2 e 4, alínea a) do CPTA).

Vejamos.

Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas "que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicionalʺ [artigos 211°, nº 1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas "emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais" [arts. 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 "A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".
É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada que iremos encontrar a resposta à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente acção.
O Autor funda a sua pretensão, de pagamento de dívidas no âmbito de prestação de serviços de tratamentos médicos efetuados no seu serviço de urgência, no disposto no DL nº 218/99, de 15 de Junho, que estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde [e ainda no disposto na Portaria nº 291/03, de 8 de Abril].
Esta questão (pagamento de dívidas hospitalares em consequência da prestação de cuidados de saúde), como refere o TAF de Leiria, já foi conhecida neste Tribunal dos Conflitos, nomeadamente nos Acórdãos de 07.03.2006, Proc. nº 022/05, de 14.03.2006, Proc. nº 021/15, de 19.10.2017, proferido no Proc. nº 041/17, de 30.05.2019, Proc. nº 08/19, de 06.06.2019, Proc. nº 06/19, de 31.10.2019, Proc. nº 024/19 e de 21.11.2019, Proc. nº 029/19, no sentido de que resulta do DL nº 218/99, que compete à jurisdição comum conhecer das acções em que as instituições e serviços integrados no serviço nacional de saúde visem obter a condenação dos réus no pagamento das quantias devidas pelos cuidados de saúde por si prestados.
Como se expendeu no Acórdão de 14.03.2006, acima indicado, “(...) a competência material dos Tribunais para a decisão do litígio configurado em determinada acção afere-se pelo pedido formulado nessa mesma acção, analisado à luz da respectiva causa de pedir, a menos que exista lei que especialmente fixe tal competência.
A acção em causa, como se disse, foi proposta pelo Hospital (...), contra a (...). E, como resulta do estatuído nos art.ºs 1º e 4º do Dec-Lei n.º 297/02, de 11/12, a inclusão daquele Hospital no Serviço Nacional de Saúde, que se verificava ao tempo de alguns dos serviços médicos prestados (pelo menos os que tiveram lugar em 2001) por ser então uma pessoa colectiva de direito público, foi mantida com a sua transformação em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos.
Ora, já o Dec.-Lei n.º 147/83, de 5/4, estipulava no seu art.º 1 que todas as acções para cobrança de dívidas a estabelecimentos resultantes da prestação de serviços de saúde seguiriam os termos do processo sumaríssimo, com determinadas adaptações, o que, como tal forma de processo não existia no contencioso administrativo, pressupunha a atribuição de competência à jurisdição comum, como aliás era prática judiciária corrente.
Por seu lado, o Dec.-Lei n.º 194/92, de 8/9, que nos termos do seu art.º 1º regulava a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, atribuindo nomeadamente força executiva às certidões de dívida emanadas daquelas instituições e serviços e fixando a competência do "Tribunal da comarca" em que se encontrasse sediada a entidade exequente para as correspondentes acções executivas, e que, no seu art.º 13º, revogou aquele Dec.-Lei n.º 147/83, embora mantendo, como se vê, a competência da jurisdição comum, foi expressamente revogado pelo art.º 14º do Dec.-Lei n.º 218/99, de 15/6, que é hoje, segundo o seu art.º 1º, o diploma que estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados, mas que não refere de forma expressa qual o tribunal materialmente competente para o efeito de processar e decidir as questões respectivas.
Limita-se este diploma, no seu art.º 7º, a determinar a competência territorial do Tribunal da sede da entidade credora, não incluindo agora a expressão "Tribunal da comarca", mas sem que tal omissão implique, só por si, que o legislador tenha pretendido introduzir qualquer alteração respeitante à competência, pois a actual expressão pode significar apenas que considerou desnecessário referir-se a uma competência material que pretendia manter.
Com efeito, parece o actual diploma pressupor a manutenção da competência material dos Tribunais da jurisdição comum, isto perante a análise do seu próprio preâmbulo, em que o legislador manifesta claramente a intenção de alterar apenas as regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares essencialmente mediante a substituição da acção executiva pela declarativa, pelo facto de entretanto se ter constatado que a força executiva conferida às aludidas certidões não provocara a celeridade e a simplicidade processuais visadas pelo diploma anterior na medida em que na generalidade dos casos a existência do crédito reclamado judicialmente e a verdadeira identidade do devedor eram discutidas em sede de embargos à execução.
E parece manifesto que, se o legislador tivesse então em vista que a alteração das regras processuais abrangesse também alguma alteração sobre a competência dos Tribunais ou da jurisdição em que o processo devesse correr, não se compreenderia que naquele preâmbulo não se fizesse a mínima alusão a tal nem qualquer síntese de razões explicativas da nova opção. Ou seja, nada referindo a tal respeito apesar das pormenorizadas explicações preambulares sobre os seus objectivos, parece pelo menos lógico interpretar o dito diploma como não tendo visado introduzir qualquer inovação sobre a competência dos Tribunais que deveriam proceder à análise e decisão das questões respeitantes às dívidas hospitalares.
Acresce que no mesmo sentido aponta o disposto no art.º 6º do mencionado Dec.-Lei n.º 218/99, ao estabelecer a possibilidade de as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde se constituírem partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação de cuidados de saúde, para dedução de pedido de pagamento das respectivas despesas, possibilidade essa que aponta de forma praticamente decisiva para a competência da jurisdição comum, que é aquela onde correm os processos penais. Caso contrário, isto é, se o legislador pretendesse que a competência coubesse à jurisdição comum quando os devedores fossem accionados em processo criminal e à jurisdição administrativa quando fossem accionados fora desse processo, estaria ele a consagrar a competência de duas ordens jurisdicionais diferentes para apreciar questões da mesma natureza, de forma incongruente, pois a distribuição de competência entre jurisdições se baseia precisamente na natureza das questões a decidir.
Assim, e ainda porque o litígio em questão não integra uma relação jurídica entre pessoas de direito público desenvolvida sob a égide do direito público, mas antes uma relação jurídica estabelecida no âmbito da gestão privada da entidade credora, pelo que o seu objecto não se enquadra na previsão de qualquer das aIs. do art.º 4º do E.T.A.F., conclui-se que se trata aqui de um caso nítido em que se justifica uma interpretação extensiva, por ser manifesto que o legislador disse menos do que aquilo que pretendia dizer, sendo consequentemente de interpretar o citado Dec.-Lei n.º 218/99 no sentido de consagrar a competência dos Tribunais integrados na jurisdição comum para apreciar os pedidos de condenação no pagamento de dívidas hospitalares por prestação de cuidados de saúde.
(...) Ora, é manifesto que o regime da cobrança de dívidas consagrado no citado Dec.-Lei não atende à causa das lesões determinantes dos tratamentos prestados, salvo (art.ºs 9º a 12º) no tocante a dívidas resultantes de acidentes de viação, o que não é o caso. Assim, apenas há que ter em conta a causa de pedir invocada, integrada somente por aqueles factos a que o mencionado diploma reconhece a eficácia de determinar a competência do Tribunal, e que consistem em não mais do que a prestação de cuidados de saúde por instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, independentemente da qualidade dos assistidos. Quer isto dizer que a referência feita na petição inicial à qualidade dos assistidos enquanto servidores públicos apenas releva para determinação da legitimidade passiva, pois, se não o fossem, tal legitimidade caberia a eles próprios ou aos causadores das lesões que tenham originado os tratamentos; e não é essa legitimidade, mas a causa de pedir, que tem eficácia na determinação da competência material do Tribunal"
Assim, aderindo ao entendimento reiterado por este Tribunal de Conflitos, entendemos que a competência no caso dos autos pertence aos tribunais da jurisdição comum.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.