Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:012/19
Data do Acordão:05/30/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24623
Nº do Documento:SAC20190530012
Data de Entrada:02/18/2019
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE VISEU – S. PEDRO DO SUL – INST. LOCAL – SEC. COMP. GEN. – J1 E O TAF DE VISEU – UNIDADE ORGÂNICA 1.
AUTOR: MUNICÍPIO DE S. PEDRO DO SUL
RÉU: A………. E OUTROS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: 1. O MUNICÍPIO DE S. PEDRO DO SUL instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu ação declarativa comum contra A………. e mulher, B……….. e mulher, C…………. e mulher, devidamente identificados nos autos, requerendo a condenação dos RR a:
“_Reconhecer que foi o autor que procedeu, no verão de 1995, à abertura do estradão identificado em 1º a 16º desta P.I.
_ Reconhecer que a sua mãe, D……….. autorizou que, na abertura daquele estradão, fossem ocupados os prédios identificados em 4.º da P.I., junto ao rio Paiva, com as áreas necessárias àquele fim.
_Reconhecer que foram ocupadas as áreas de, aproximadamente, 180 m2 e 250 m2, respetivamente, do primeiro e segundo prédios identificados em 4.º da P. I.
_ Reconhecer que após aquela abertura do estradão, tais parcelas foram destacadas dos referidos prédios.
_A reconhecer que o autor adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade daquelas parcelas e para fins de utilidade pública.
_ A removerem os obstáculos que colocaram no referido estradão e que impedem a livre circulação de veículos automóveis e pessoas, arrasando a vala que abriram no leito do caminho, nivelando o terreno e removendo a cancela, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença.
_ A absterem-se de praticar qualquer ato que impeça a livre circulação de qualquer veículo automóvel ou pessoas no estradão, incluindo o troço do mesmo que margina aqueles prédios.
_ Fixar sanção pecuniária compulsória de, pelo menos, 500,00 € por cada dia de atraso na reposição do caminho e por cada ato que venham a praticar e que impeça aquela livre circulação de veículos automóveis e de pessoas.
Subsidiariamente, para a hipótese de naufragar os pedidos anteriores,
_ Serem condenados, solidariamente, a pagar ao autor o valor de 2.950,12 €, acrescido de juros de mora após a citação, até efetivo e integral pagamento....”

Fundamentou tais pedidos, invocando que a Junta de Freguesia de S. M. Moitas, hoje União das Freguesias de Covas do Rio e S. Martinho das Moitas, em 20 de Marco de 1995, lhe solicitou “que mandasse uma máquina retro escavadora, com condutor, para abrir um estradão, nos limites do lugar de ……….., com vista à abertura de uma ligação desde a ponte que atravessa o rio Paiva até ao Largo ……….. ou lugar da ………., ligando a um outro caminho ai existente”, anexando a tal solicitação um documento subscrito por vários particulares, nomeadamente a mãe dos RR, então viúva.
Esse documento consistia na seguinte declaração: “Nós abaixo assinados declaramos que deixamos romper um estradão nos terrenos que nos pertencem entre a ………. e o ………., terrenos estes pertencentes aos limites de ………., Freguesia de S. Martinho das Moitas, Concelho de S. Pedro do Sul, sem qualquer indemnização e direito ao terreno por esta câmara ocupado”.
Na sequência de tal solicitação, por despacho de 20.3.95 foi determinado à Divisão de Obras Municipais (DOM), que “face aos compromissos assumidos que temos, agendar a máquina.”
No seguimento dessa determinação, veio o “Estradão” a ser aberto no Verão desse ano.
Desde esse Verão até ao ano de 2014, aquele “estradão” esteve aberto ao trânsito de qualquer veículo automóvel, conduzido por qualquer pessoa, tendo passado aí a transitar quaisquer pessoas, de carro e a pé, na convicção de que o mesmo era do domínio público municipal e aberto ao público.
Este uso direto e imediato do público manteve-se por um período durante mais de 18 anos seguidos.
Pelo que adquiriu o direito de propriedade, quer pelo conteúdo do documento particular, quer por via de usucapião.
Em Julho de 2014 os serviços de fiscalização “verificaram que o estradão estava vedado com uma cancela de madeira, colocada a distância de 250 metros da...ponte sobre o rio Paiva, onde teve o início da sua abertura”, tendo o A. concluído que tinham sido os RR a fechá-lo.
Notificados os RR pelo A. para procederem a desobstrução do “estradão”, estes responderam não existir qualquer direito de passagem sobre os seus prédios, invocando a sentença transitada em julgado, proferida no processo 281/11.4TBSPS.
Reconhecendo o A. que não adquiriu por titulo válido (através de contrato — via de direito privado - ou expropriação) o direito de propriedade sobre as parcelas de terreno ocupadas, invoca a sua aquisição através de usucapião, face ao uso continuado, por qualquer pessoa, a pé ou em veículos terrestres, há mais de 15 anos, de boa-fé, à vista de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de que se trata dum caminho municipal “arts. 1287º e 1296º ab initio, do C.C.”.
Conclui o A. que na ausência de aquisição derivada do direito privado para fins de utilidade pública, o Estado, e demais pessoas colectivas de utilidade pública, não estão impedidas da aquisição originária “usucapião”, pois foram verificados os respectivos pressupostos.
O A. teve custos com a construção do “estradão”, e, a não lhe ser reconhecido o seu direito de propriedade por usucapião, terá de ser ressarcido pela privação definitiva do mesmo.
2. Os RR contestaram a ação, arguindo as exceções de ineptidão da petição inicial, caso julgado, ilegitimidade passiva, impugnando o alegado na P.I., anexando as decisões judiciais transitadas em julgado e deduzindo reconvenção, em que requerem ser ressarcidos por danos patrimoniais e morais no valor de 5.500€, invocando ainda a litigância de má fé por parte do A.
3. O Tribunal judicial da comarca de Viseu, por despacho de 23.8.2016 — com fundamento no facto do objeto da ação não se limitar a uma mera ação real, tendo por escopo essencial o reconhecimento da natureza pública de “dois tratos de terreno”, que configuram parte de um determinado caminho que o A. assume como público — julgou-se incompetente, em razão da matéria, por dele ser competente a jurisdição administrativa.
4. Determinada a remessa dos autos ao TAF de Viseu, e após a notificação do A. da contestação dos RR, face às exceções alegadas e pedido reconvencional, — o A. apresentou em 29.9.2017 nova petição devidamente aperfeiçoada — notificados desta “petição aperfeiçoada”, vieram os RR manter o teor da sua contestação-reconvenção, por não se verificar aperfeiçoamento.
5. O TAF de Viseu, por despacho de 19.4.2018, veio convidar o A. a apresentar petição inicial aperfeiçoada, e o mesmo, em cumprimento desse despacho, veio, em 11.5.2018, aperfeiçoar a P.I., nos termos seguintes: “…desiste dos pedidos formulados em a), b), c) e d).
O pedido formulado em e) da P.I. deve ter a seguinte redação: - Condenar os réus a reconhecer que o autor adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre as parcelas de terreno identificadas em 11º da P.I. e para fins de utilidade pública. Os demais pedidos formulados devem manter-se.”
6. O TAF de Viseu, por despacho de 15.11.2018, que determinou a audição das partes, por se afigurar estar perante uma autêntica acção real, da exclusiva competência da jurisdição comum, veio a decidir, por despacho de 9.1.2019, a sua absoluta incompetência, em razão da matéria, absolvendo os RR da instância (art.s 1º, 4º ETAF e 14º, nº 2, e 89º, nºs 1 e 4, aI. a), ambos do CPTA).
7. Após emissão de Parecer do Ministério Público, acompanhando a decisão de que a ação é da competência dos tribunais comuns, foram os autos remetidos a este Tribunal de Conflitos, atenta a verificação de conflito negativo de jurisdição (art. 109º e segs CPC).
8. Neste Tribunal, o Ministério Público, também pugnou pela competência dos tribunais judiciais.
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Sem vistos, mas com distribuição prévia do projeto de acórdão, cumpre decidir.
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FACTUALIDADE A CONSIDERAR
A factualidade relevante para a resolução do conflito aqui em causa é a que resulta dos autos e supra referida em sede de relatório.
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O DIREITO
Estamos, no caso sub judice, perante um conflito de jurisdição negativo já que dois tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, declinam o poder de conhecer a mesma questão, decisões que já não são suscetíveis de recurso (cfr. nºs 1 e 3 do art.º 109º do CPC).
O Tribunal de Conflitos tem competência para dirimir os conflitos de jurisdição em que intervenham tribunais judiciais se, no outro polo, estiverem tribunais administrativos e fiscais.
Centremo-nos, então, na questão de saber qual a jurisdição competente para conhecer da matéria trazida a este Tribunal.
Nos termos do artigo 211.º, n.º 1, da CRP os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
No mesmo sentido, o artigo 64.º do Novo Código de Processo Civil dispõe que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Dispõe o art. 1º do ETAF na redação anterior à dada pelo DL n.º 214-G/2015, de 02 de Outubro que “1- Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
2 - Nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados.”
Veio, assim, reafirmar-se a cláusula geral estabelecida no artigo 212º n.º 3 da Constituição, que define a competência material dos Tribunais Administrativos, como dizendo respeito aos litígios emergentes das relações jurídico-administrativas.
A delimitação do poder jurisdicional atribuído aos tribunais administrativos faz-se, pois, segundo um critério material, ligado à natureza da questão a dirimir, tal como resulta deste preceito, nos termos do qual “compete aos tribunais administrativos … o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios das relações jurídicas administrativas…”
E, nos termos do art. 4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2003 de 19 de Fevereiro, e aqui aplicável, veio o legislador indicar exemplificativamente os litígios que se encontram incluídos no âmbito da jurisdição administrativa, assim como aqueles que dela se encontram excluídos. (neste sentido ver Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in Código de Processo nos Tribunais Administrativos Volume I, Anotação XXIX, Almedina, pág. 59).
Por sua vez, o n.º 4 al. i) deste diploma, na redacção da Lei 59/2008, de 11 de Setembro, dispunha que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
A questão será, pois, saber se está em causa uma situação integrável neste preceito e serão competentes os tribunais administrativos ou se, antes, competirá à jurisdição comum tal conhecimento.
A competência dos tribunais determina-se, assim, pelo pedido do A., não dependendo o seu conhecimento nem da legitimidade das partes nem da procedência da ação (ver Ac. S.T.A de 12/6/90, AJ. nº10/11; Ac. S.T.A de 9/10/90, AJ. nº12, pag.26; Ac. S.T.J. de 3/2/87, B.M.J. nº 364/591).
Diz M. de Andrade, (N. E. de Processo Civil, 1956, pag. 92) que, a competência em razão da matéria atribuída aos tribunais, baseia-se na matéria da causa, no seu objecto, “encarado sob um ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada.”
Constitui jurisprudência pacifica que: “a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a ação é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados” (vide Ac. do STJ, de 14.05.2009).
É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente ação.
Vejamos então que tipo de relação está em causa atendendo que na determinação da competência em razão da matéria há que atender ao pedido e à causa de pedir formulados pelo autor.
Como é jurisprudência unânime deste Tribunal de Conflitos incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento das ações de reivindicação fundadas no artigo 1311º do CC inclusive quando se pede em alternativa o pagamento de indemnização pela perda definitiva do imóvel.
Neste sentido ver, entre outros, os recentes Acs. nos Processos 1/17 de 24/5/2017, 48/15 de 7/7/2016 e 52/14 de 26/1/2017.
E ainda os Acs. de 9/6/2010, P. n.º 12/10, de 16/02/2012, P. n.º 20/11, de 18/12/2013, P. n.º 18/13, de 5/6/2014, P. n.º 4/14, de 19/6/2014, P. n.º 13/14, de 22/4/2015, P. n.º 1/15, de 4/2/2016, P. n.º 46/15 e de 10/3/2016, P. n.º 50/15.
A este propósito cita-se o acórdão de 18/12/2013, P. n.º 18/13, também citado no Ac. 52/14 de 26/1/2017 de onde se extrai:
“Salvo o devido respeito pela opinião em contrário, não se nos oferecem dúvidas que o desenho da causa de pedir e dos pedidos apresentados pelos autores quadram, perfeitamente, no âmbito da ação de reivindicação, contemplada no art. 1311.º do Código Civil (CC).
Na verdade, os autores cingem-se a pedir que sejam declarados como donos e legítimos proprietários do imóvel identificado supra e, em consequência, a condenação do réu a restituir a parcela de terreno e o imóvel (...) em causa, devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições, bem como as chaves do edifício em que está implantado no referido terreno. Ou seja, a questão a dirimir traduz-se em mera reivindicação de propriedade privada, não obstante uma das partes ter feição pública (...) e de ter sido cumulado um pedido indemnizatório pela ocupação ilegítima da propriedade.
Com efeito, a ação de reivindicação, prevista no art. 1311.º do CC, é uma típica manifestação do direito de sequela, visando afirmar o direito de propriedade e pôr fim a situação ou atos que o violem, tendo como primeiro objetivo a declaração de existência do direito e, como escopo ulterior, a sua realização, nela concorrendo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objeto desse direito. (Salientam Antunes Varela e Pires de Lima: «A ação de reivindicação prevista neste artigo (art. 1311.º do CC é uma ação petitória que tem por objeto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela» – cf. Código Civil Anotado, 2.ª edição, 1987, Volume llI pág.112)
Compete aos autores, nesta ação, provar que são proprietários, constituindo o facto jurídico de que emerge a propriedade a causa de pedir da ação de reivindicação, tendo eles de alegar, como o fizeram, que a coisa se encontra em poder do réu. Destarte, para a procedência da ação, tornar-se-á necessária a comprovação, por um lado, de um requisito subjetivo, que consiste em serem os autores os proprietários da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objetivo, consistente na identidade entre a coisa reivindicada e a (ilegitimamente) possuída pelo réu, cujo ónus da prova incumbe aos autores/reivindicantes, por serem factos constitutivos do seu direito - art. 342.º, n.º 1, do CC. Comprovada a propriedade do imóvel e que este se encontra detido por terceiro, a sua entrega ao reivindicante só pode ser contrariada com base em situação jurídica (obrigacional ou real) que legitime a recusa de restituição - cf 1311.º, n.º 2, do CC -, mediante a alegação e prova, pelo demandado - por via de exceção -, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito e integradores de qualquer relação obrigacional ou real que o obstaculizem – cf. art. 342º, n.º 2, do CC.
Assim sendo, contrariamente ao decidido pelo Tribunal (...) e ao sustentado pelo Ministério Publico junto deste tribunal, no caso em apreço, as questões decidendas não emergem de uma relação jurídica administrativa, nem os autores fundamentam o seu pedido de entrega do imóvel em quaisquer normas de direito administrativo: a alusão feita pelos autores, na sua petição inicial, aos normativos que prevêem a reversão de terrenos cedidos para equipamentos de utilização coletiva, com fundamento em utilização para finalidade diversa (...) é meramente incidental e não tem qualquer autonomia dogmática para efeitos de transmutar o pedido privatístico de reconhecimento do direito de propriedade numa qualquer relação jurídica de cariz publicista e de natureza administrativa”.
Também no acórdão de 9/6/2010 P. n.º 12/10 se julgou serem competentes os tribunais da jurisdição comum, com a seguinte argumentação:
“[:..] Com efeito, as ações de reivindicação são reais, o que imediatamente as distingue das ações de responsabilidade civil, que têm natureza obrigacional. A devolução da coisa, pedida pelo «dominus» que a reivindica, não constitui uma qualquer indemnização «in natura», mas a lógica consequência da sequela, que é um atributo característico dos direitos reais. E nem sequer é exata outra tese do acórdão - a de que a «reivindicatio» visa «a reposição no estado anterior ao ato ofensivo do direito» de propriedade; pois a reivindicação tem por fim típico a devolução da coisa no seu estado atual, pedido a que poderá acrescer um outro, que será de ressarcimento, se esse estado for pior do que era antes por responsabilidade do detentor.
É desnecessário aduzir mais argumentos, ante a evidência de que a ação dos autos, enquanto ação de reivindicação, é alheia a uma qualquer responsabilidade extracontratual do réu. Donde se segue que a premissa menor do silogismo judiciário enunciado no acórdão «sub censura» e falsa, inquinando a respetiva conclusão.
Ora, não há no ETAF uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de ações de reivindicação («vide», a propósito, o seu art. 4º). Solução que bem se compreende, pois o que nelas essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo «dominus» existe e é oponível ao réu, por forma a tirar-lhe a detenção da coisa; e só acidentalmente se colocara um problema ligado ao direito público - se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção.
Consequentemente é de concluir que a competência «ratione materiae» para conhecer da presente ação de condenação cabe, a titulo residual aos tribunais comuns – conforme o recorrente o reclama”.
Em suma, o pedido principal, donde emergem os demais pedidos formulados na ação, é que os réus sejam condenados a reconhecer que o autor adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre as parcelas de terreno identificadas em 11. da P.I. e para fins de utilidade pública..”, ou seja, estamos perante uma típica ação de reivindicação, prevista no art. 1311.º do CC.
E, como se tem decidido no Tribunal dos Conflitos, as ações de reivindicação não cabem na previsão do art. 4.º do ETAF, mas antes são da competência dos tribunais judiciais, enquanto tribunais comuns com competência residual.
Neste sentido ver, entre outros, os Acs. de 26.01.2017 e de 24.05.2017, in Conflitos nºs 52/14 e 1/17, respetivamente.
Como se extrai do acórdão citado em 1º lugar:
No caso presente e em síntese, os AA. pedem a condenação da Ré no reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, sobre o prédio identificado, na restituição da posse de parcela de terreno, na retirada dessa parcela do muro de suporte de terras colocado pela Ré e na reposição de elementos e do terreno no estado em que se encontrava antes da intervenção da Ré, sustentando esses pedidos na titularidade do direito de propriedade que pretendem ver reconhecido. Assim, a pretensão principal que os AA. enunciam enquadra-se na ação de reivindicação de propriedade privada.
Ora, para o conhecimento de ações de reivindicação, este Tribunal tem reiteradamente julgado no sentido de atribuição da competência a jurisdição comum [cfr, por exemplo, Acs. de 9/6/2010, P. n.º 12/10, de 16/02/2012 P. n.º 20/11, de 18/12/2013, P. n.º 18/13 de 5/6/2014 P. n.º4/14, de 19/6/2014, P. n.º 13/14, de 22/4/2015, P. n.º 1/15, de 4/2/2016, P. n.º46/15 e de 10/3/2016, P. n.º 50/15]
Esse juízo mereceu, no acórdão de 18/12/2013, P. n.º18/13, a fundamentação seguinte:
“[...] Salvo o devido respeito pela opinião em contrário, não se nos oferecem dúvidas que o desenho da causa de pedir e dos pedidos apresentados pelos autores quadram, perfeitamente, no âmbito da ação de reivindicação, contemplada no art. 1311.º do Código Civil (CC).
Na verdade, os autores cingem-se a pedir que sejam declarados como donos e legítimos proprietários do imóvel identificado supra e, em consequência, a condenação do réu a restituir a parcela de terreno e o imóvel (...) em causa, devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições, bem como as chaves do edifício em que esta implantado no referido terreno. Ou seja, a questão a dirimir traduz-se em mera reivindicação de propriedade privada, não obstante uma das partes ter feição publica (...) e de ter sido cumulado um pedido indemnizatório pela ocupação ilegítima da propriedade.
Com efeito, a ação de reivindicação, prevista no art. 1311.º do CC, é uma típica manifestação do direito de sequela, visando afirmar o direito de propriedade e por fim a situação ou atos que o violem, tendo como primeiro objetivo a declaração de existência do direito e, como escopo ulterior; a sua realização, nela concorrendo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objeto desse direito. (Salientam Antunes Varela e Pires de Lima: «A ação de reivindicação prevista neste artigo (art. 1311.º) é uma ação petitória que tem por objeto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela – cf Código Civil Anotado, 2.ª edição, 1987, Volume III pág. 112)
Compete aos autores, nesta ação, provar que são proprietários, constituindo o facto jurídico de que emerge a propriedade a causa de pedir da ação de reivindicação, tendo eles de alegar; como o fizeram, que a coisa se encontra em poder do réu. Destarte, para a procedência da ação tornar-se-á necessária a comprovação, por um lado, de um requisito subjetivo, que consiste em serem os autores os proprietários da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objetivo, consistente na identidade entre a coisa reivindicada e a (ilegitimamente) possuída pelo réu, cujo ónus da prova incumbe aos autores/reivindicantes, por serem factos constitutivos do seu direito - aa. 342. º, n.º 1, do CC. Comprovada a propriedade do imóvel e que este se encontra detido por terceiro, a sua entrega ao reivindicante só pode ser contrariada com base em situação jurídica (obrigacional ou real) que legitime a recusa de restituição - cf 1311.º, n.º 2 do CC; i.e., mediante a alegação e prova, pelo demandado - por via de exceção -, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito e integradores de qualquer relação obrigacional ou real que o obstaculizem - cf art. 342º, n.º 2 do CC.
Assim sendo, contrariamente ao decido pelo Tribunal (...) e ao sustentado pelo Ministério Publico junto deste tribunal, no caso em apreço as questões decidendas não emergem de uma relação jurídica administrativa, nem os autores fundamentam o seu pedido de entrega do imóvel em quaisquer normas de direito administrativo: a alusão feita pelos autores, na sua petição inicial aos normativos que prevêem a reversão de terrenos cedidos para equipamentos de utilização coletiva, com fundamento em utilização para finalidade diversa (...) e meramente incidental e não tem qualquer autonomia dogmática para efeitos de transmutar o pedido privatístico de reconhecimento do direito de propriedade numa qualquer relação jurídica de cariz publicista e de natureza administrativa”.
Também no acórdão de 9/6/2010, P. n.º 12/10, se julgou serem competentes os tribunais da jurisdição comum, com a seguinte argumentação:
“[...]Com efeito, as ações de reivindicação são reais, o que imediatamente as distingue das ações de responsabilidade civil que tem natureza obrigacional. A devolução da coisa, pedida pelo «dominus» que a reivindica, não constitui uma qualquer indemnização «in natura», mas a lógica consequência da sequela, que é um atributo característico dos direitos reais. E nem sequer é exata outra tese do acórdão - a de que a «reivindicativo» visa «a reposição no estado anterior ao ato ofensivo do direito de propriedade; pois a reivindicação tem por fim típico a devolução da coisa no seu estado atual pedido a que poderá acrescer um outro, que será de ressarcimento, se esse estado for pior do que era antes por responsabilidade do detentor.
É desnecessário aduzir mais argumentos, ante a evidência de que a ação dos autos, enquanto ação de reivindicação, é alheia a uma qualquer responsabilidade extracontratual do réu. Donde se segue que a premissa menor do silogismo judiciário enunciado no acórdão «sub censura» é falsa, inquinando a respetiva conclusão.
Ora, não há no ETAF uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de ações de reivindicação («vide», a propósito, o seu art. 4º). Solução que bem se compreende, pois o que nelas essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo «dominus» existe e é oponível ao réu, por forma a tirar-lhe a detenção da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público - se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção.
Consequentemente, é de concluir que a competência «ratione materiae» para conhecer da presente ação de condenação cabe, a titulo residual, aos tribunais comuns (...)“.
Esta jurisprudência não é posta em causa pelo facto de o pedido se traduzir no reconhecimento de aquisição por usucapião e para efeitos de utilidade pública (este meramente incidental) assim como na circunstância de alguns pedidos poderem ser enquadrados no âmbito da responsabilidade civil extracontratual e, portanto, o seu conhecimento ser da competência dos tribunais administrativos.
Na verdade o que releva é que segundo a causa de pedir o modo de aquisição invocado, a usucapião, e da competência dos tribunais comuns, por se tratar de um pedido de reconhecimento do direito de propriedade sem qualquer natureza de relação jurídica de cariz publicista ou natureza administrativa, mas antes um pedido a que corresponde uma ação de reivindicação.
A eventual incompetência material do tribunal para conhecer desses outros pedidos poderia equacionar, quando muito, uma questão de cumulação ilegal de pedidos.
Neste sentido ver os Acs. de 15/03/2005, P. n.º 15/04 e de 9/6/2010, P. n.º 12/10.
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Em face de todo o exposto acordam os juízes deste Tribunal de Conflitos em resolver o presente conflito de jurisdição no sentido de atribuir a competência para conhecer da ação aos tribunais da jurisdição comum.
Sem custas neste Tribunal.

Lisboa, 30 de Maio de 2019. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) – José Inácio Manso Raínho – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Raul Eduardo do Vale Raposo Borges – Jorge Artur Madeira dos Santos – Olindo dos Santos Geraldes.