Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:07/15
Data do Acordão:07/09/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:HELENA MONIZ
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:*
Nº Convencional:JSTA000P19287
Nº do Documento:SAC2015070907
Data de Entrada:01/22/2015
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DO PORTO ESTE PAREDES - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE PENAFIEL
AUTOR: A... SA
RÉU: B..., LDA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 7/15-70.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:


I

Relatório


1. A requerente “A………….., SA”, com sede na Rua …………, nº ….., ……, instaurou procedimento de injunção, no Balcão Nacional de Injunções, contra a requerida “B……………, LDA”, com sede na Rua …………., nº ….., ……, com base nos seguintes fundamentos:

“1 - A requerente é uma sociedade comercial anónima que se dedica, entre outras, ao serviço público de fornecimento de água e drenagem de águas residuais.

2 - No exercício da sua actividade comercial, a requerente foi contactada pela requerida para a prestação dos serviços de fornecimento de água e/ou drenagem de águas residuais, conforme se pode comprovar na factura nº. 30110246, de 07-01-2013, no valor de 9,23 €, oportunamente enviada e que se dá por integralmente reproduzida.

3 - Neste sentido, a requerente prestou-lhe os referidos serviços, remontando os mesmos à quantia de 9,23 € (nove euros e vinte e três cêntimos).

4 - Além do capital titulado pela factura, a requerida encontra-se também em dívida com os respectivos juros de mora à taxa legal, sobre a quantia em dívida, de 0,24 €, até à presente data.

5 - O valor de € 42,00, discriminado em outras quantias, refere-se a encargos extra judiciais da requerente.

6 - Instada por diversas vezes, para proceder ao pagamento, a requerida, até hoje, nunca o efectuou, apesar de reconhecer a dívida.

7 - Assim sendo, nesta data, a dívida da requerida para com a requerente, ascende ao montante global de 127,97 €, acrescida de juros vincendos até efectivo e integral pagamento.”.

2. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel proferiu despacho em que se declarou materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado pela requerente “A………………., SA” e em que absolveu da instância a requerida “B………………, Lda.” (vide fls. 31 a 37).

Como particular acento, afirmou-se o seguinte nesse despacho:

“(...) tendo em consideração que na presente acção o objecto do litígio não se centra ou envolve a discussão da legalidade do «preço» ou das «tarifas», contendendo sim com questões relativas à execução de um contrato celebrado entre as partes e ao seu alegado incumprimento por um dos outorgantes, o que traduz uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado, impõe-se concluir que este Tribunal é materialmente incompetente para conhecer do objecto da presente acção, sendo competente para o conhecimento da mesma os Tribunais Judiciais, pelo que se impõe absolver o(a) Réu(Ré) da instância (...)”.

3. Remetidos os autos ao Tribunal Judicial de Paredes, o 2.º Juízo Cível declinou competência para conhecer do pedido formulado pela requerente “A………….., SA”, enquanto que, de igual modo, determinou absolvição da instância da requerida “B…………., Lda.” (vide fls. 50 a 52).

Afirmou-se, com particular destaque, no despacho judicial em referência:

“(…) a natureza material em litígio não é manifestamente privada, porquanto balizada, em várias vertentes, por normas de direito público que lhe são impostas e a desenham, à luz do art. 4.º n.º 1, al. f), do ETAF, sendo que é à jurisdição administrativa que cabe apreciar as questões relativas aos contratos a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo (…)”.

4. Foi solicitada oficiosamente a resolução deste conflito de jurisdição, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 111.º do CPC, o que determinou a remessa dos presentes autos para este Tribunal dos Conflitos (vide fls. 53 a 55).

5. O Senhor Procurador-Geral Adjunto deste Tribunal dos Conflitos emitiu parecer nos seguintes termos (vide fls. 60):

“(...) Na solução do conflito deve ser observada a jurisprudência consolidada do Tribunal dos Conflitos, no sentido de que «compete aos tribunais tributários apreciar os litígios relativos a contratos celebrados entre uma empresa concessionária do serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos utilizadores» (sumário de acórdão do Tribunal dos Conflitos 27.03.2014 processo n. 54/13 (...)”.

“A juíza conselheira relatora do acórdão proferido em 21.01.2014 (processo 44/13 Tribunal dos Conflitos), invocado na decisão conflituante do TAF de Penafiel reviu a sua posição (no sentido da competência dos tribunais comuns para a apreciação do litígio) no acórdão proferido em 9.12.2014 (processo n.º 24/14), aceitando a jurisprudência consolidada sobre a questão, em sentido contrário.

Pelo exposto deve ser proferido acórdão declaratório da competência dos tribunais tributários para conhecimento da acção.”

6. Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II

Fundamentação


Perante as decisões antagónicas do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel e do 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, quanto à competência material para a apreciação do pedido formulado pela requerente do procedimento de injunção, não subsistem dúvidas que ocorreu um conflito negativo de jurisdição.

Existe conflito na medida em que estes despachos jurisdicionais assumiram posições antagónicas sobre a mesma questão jurídica da atribuição da competência material para a apreciação do pedido de injunção em causa. Trata-se de um conflito de jurisdição na medida em que as decisões judiciais, em oposição, foram proferidas por tribunais que integram diferentes jurisdições, a saber, a jurisdição administrativa e fiscal e a jurisdição comum. Por último, importa também referir que constitui um conflito negativo na medida em que os tribunais declinaram, de modo sucessivo, competência material para a apreciação da causa.

Deste modo, competirá a este Tribunal dos Conflitos pronunciar-se sobre a questão controvertida da competência material para prosseguir com a apreciação e com o julgamento deste requerimento de injunção, pronunciando-se pela atribuição do litígio ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel ou ao Tribunal Judicial de Paredes, de acordo com o disposto nos arts. 109.º e ss. do CPC.

Como primeira nota, importa assinalar que o presente conflito negativo, como de igual modo todos os conflitos de jurisdição, deve ser apreciado e decidido tendo por base a natureza da relação material controvertida, tal como ela se mostra delimitada pela requerente “A…………., SA”, ou, dito por outras palavras, a atribuição da competência em razão da matéria para prosseguir com a tramitação do processo, seja ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel ou seja ao 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, deve ser ponderada a partir do modo como se mostra delimitado o requerimento de injunção.

Isto significa, como tem sido, aliás, jurisprudência perfilhada de modo absolutamente pacífico por este Tribunal dos Conflitos, que será com base na pretensão formulada pelo autor (pedido) e também com base nos factos que servem de fundamento ao pedido (causa de pedir) que deve ser fixada a competência do tribunal, em razão da matéria, para o julgamento da respectiva causa ( Neste sentido, entre muitos outros, vide os Acs. n.º 01/08, 08/10, 21/10, 37/13, 02/14, 19/14, 41/14 e 53/14 do Tribunal dos Conflitos, proferidos, respectivamente, a 21-05-2008, 09-06-2010, 25-11-2010, 30-10-2013, 21-01-2015, 25-03-2015, 13-11-2014 e 25-03-2015, todos eles acessíveis in www.dgsi.pt.

).

Conforme se deixou assinalado, a requerente “A………….., SA” pretende que a requerida “B………….., Lda.” seja notificada para que lhe pagar a quantia global de € 127,97, relativa a serviços por si prestados, a encargos extrajudiciais para cobrar esta importância e a juros legais.

A matéria de facto que foi trazida pela requerente, sob a forma de alegação, ao requerimento inicial, com o intuito de fundamentar esse pedido de pagamento da quantia pecuniária global de € 127,97, prende-se muito sinteticamente com a celebração entre as partes de um contrato de fornecimento de água e/ou drenagem de águas residuais e com a falta de cumprimento das obrigações contratuais assumidas pela sociedade requerida “B………….., Lda.”.

Deste modo, caso se entenda que esta relação material controvertida deva ser apreciada e decidida de acordo com normas de direito privado, a competência material para o julgamento da causa é de atribuir ao 2.º Juízo Cível de Paredes; ao invés, caso a relação material controvertida deva ser apreciada e decidida em conformidade com normativos de direito público, essa competência deve ser reconhecida, indiscutivelmente, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

Como decorre do exposto, a decisão deste conflito no sentido da atribuição da competência a um dos mencionados tribunais, em nada se prende com a apreciação do mérito (ou do demérito) da pretensão formulada pela requerente, na medida em que, salienta-se mais uma vez, a resolução deste conflito tem como pressuposto a natureza da relação material controvertida como se mostra delimitada pelas partes, independentemente do mérito (ou demérito) das pretensões formuladas.

Prosseguindo:

O n.º 1 do art. 211.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. Por seu turno, o n.º 3 do art. 212º da Lei Fundamental, ao falar da jurisdição administrativa, delimita-a com a finalidade de “dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”.

Da leitura destes normativos ressalta, desde logo, que a área de competência dos tribunais administrativos e fiscais é delimitada de modo positivo pelo n.º 3 do art. 212.º da CRP, enquanto jurisdição expressamente vocacionada para dirimir os litígios que respeitem a “relações jurídicas administrativas e fiscais”. Ao invés, a área de competência dos denominados tribunais comuns é delimitada de modo negativo, por exclusão de partes, enquanto jurisdição adstrita ao julgamento de todas aquelas causas que não estejam atribuídas, nos termos da lei, a outras jurisdições.

Vigora, neste campo, o princípio da residualidade, segundo o qual integram, por exclusão de partes, a esfera de competência dos tribunais judiciais todos os litígios que não estejam especificamente atribuídos, de acordo com a lei, aos tribunais pertencentes a outra ordem jurisdicional, maxime administrativa ou fiscal.

Em conformidade com estes dispositivos constitucionais, o art. 64.º do novo CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, veio estabelecer que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (aliás, este preceito reproduz, ipsis verbis, o disposto no art. 66.° do anterior CPC, revogado pela citada Lei 41/2013).

Com igual redacção, também o art. 40.º n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26-08, veio reconhecer esta competência residual aos tribunais da denominada jurisdição comum( Já o art. 18.º n.º 1, da LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 03/99 de 13-01, entretanto revogada pela Lei n.º 62/2013, de 26-08, estabelecia que: “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”.).

No caso vertente, como o conflito negativo é delineado entre a competência dos tribunais cíveis e a dos tribunais administrativos e fiscais, importa averiguar, logo à partida, qual é o âmbito da competência dos tribunais desta última ordem jurisdicional: caso se conclua que esta acção judicial (que o requerimento de injunção em causa) não se integra na área de actuação jurisdicional dos tribunais administrativos e fiscais, a competência para a sua apreciação, ainda que de modo residual, deve ser reconhecida ao 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes.

Como se disse, à jurisdição administrativa e fiscal deve ser adjudicada, em exclusivo, competência para a apreciação de acções e de recursos que tenham por objecto “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Por isso, importa, antes de mais, preencher estes conceitos indeterminados.

Numa primeira abordagem, pode afirmar-se que as relações jurídicas administrativas e fiscais, a que alude o citado n.º 3 do art. 212.º da Lei Fundamental, são aquelas que se geram, que se modificam ou que se extinguem de acordo com normas próprias de direito administrativo e/ou de direito fiscal.

Também delimitando estes conceitos, mas com óbvias implicações, in casu, na fixação da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, Jorge Miranda e Rui Medeiros ( in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, pág. 148.) afirmam que, muito embora possam existir outros, “(...) o melhor critério parece ser (...) aquele para que aponta o próprio sentido literal da expressão: são relações jurídicas administrativas e fiscais as relações de Direito Administrativo e Fiscal, que se regem por normas de Direito Administrativo ou Fiscal” (...). Por seu turno, Gomes Canotilho e Vital Moreira ( in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. II, Coimbra Editora, 4.ª Edição. págs. 566 e 567.

) doutrinam, a este respeito, que “(...) esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídico controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal (…)”.

Nesta perspectiva, entende-se que relações jurídicas administrativas e fiscais são aquelas que, grosso modo, se estabelecem entre pessoas colectivas ou órgãos de direito público ou entre estes organismos e pessoas singulares ou colectivas de direito privado, que sejam disciplinadas ou reguladas, não por dispositivos de direito privado, mas por normas de direito material administrativo e/ou fiscal.

Em complemento do disposto n.º 3 do art. 212.º da Constituição, no quadro da administração da justiça, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02, na mais recente versão introduzida pela Lei n.º 20/2012, de 14-05, estabelece no n.º 1 do seu art. 1.º que “Os tribunais da ordem administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”.

Particularizando estes conceitos, o art. 4.º do ETAF, sob a epígrafe “âmbito da jurisdição”, enuncia, de modo positivo, nas als. a) a n) do seu n.º 1, um conjunto de casos integrantes da esfera de competência dos tribunais administrativos e fiscais. Ao invés, os n.º 2 e 3 do aludido art. 4.º delimitam-na, desta feita, de modo negativo, porquanto enumeram, também a título meramente exemplificativo, um conjunto de litígios cuja resolução não compete à jurisdição administrativa e fiscal.

Com particular destaque para o caso, importa deixar aqui assinalada a al. f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF: “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (...) f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.

Conforme resulta dos autos, a requerente “A……………., SA” é uma sociedade comercial que assumiu a concessão da gestão e da exploração dos sistemas de abastecimento de água e de saneamento das águas residuais no concelho de Paredes, sendo que, neste âmbito, segundo se mostra alegado, prestou serviços de fornecimento de água e de drenagem de águas residuais à sociedade requerida “B……………, Lda.”, que ainda não lhes foram pagos.

De acordo com o art. 3º do DL n.º 194/2009, de 20-08, a exploração e a gestão dos sistemas municipais de distribuição de água para consumo humano e de recolha, drenagem e tratamento de águas residuais consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, quer adoptem o modelo de gestão directa (art. 14.º e 15.º), o modelo de delegação em empresa constituída em parceria com o Estado (art. 16.º) ou o modelo de gestão delegada (arts. 17.º a 30.º), quer adoptem o modelo de gestão concessionada (arts. 31.º a 58.º deste DL).

A manifesta importância dos serviços de abastecimento de água e de recolha de águas residuais, que se prendem com a satisfação de necessidades evidentes e essenciais à vida humana, aparentemente levaram o legislador a estabelecer um regime substantivo específico, no qual se destacam, entre muitos outros aspectos, os direitos dos utilizadores à prestação destes serviços (art. 59.º), à continuidade do serviço (art. 60.º), à informação (art. 61.º), ao conhecimento das normas, vertidas em regulamento, sobre as condições em que estes serviços são prestados (art. 62.º).

De modo correspectivo, isto significa que as entidades gestoras destes serviços não têm ampla liberdade contratual, como no direito privado, na medida em que, designadamente, não podem seleccionar com quem pretendem firmar negócio jurídico (estão obrigadas a celebrá-los com qualquer pessoa cujo local de consumo se insira nas correspondentes áreas de influência) ou decidir livremente cessar a prestação destes serviços (só podem interromper essa prestação em casos justificados, expressamente previstos na lei, seja, por exemplo, por deterioração da qualidade da água distribuída ou por mora do pagamento dos consumos).

Acresce que o citado DL n.º 194/2009 faz referência, ao longo do seu texto, a tarifas ou tarifários decorrentes da prestação destes serviços (maxime nos arts. 43.º, n.ºs 1 e 2, e 61.º n.ºs 1 e 2), em vez de se referir ao preço, enquanto contrapartida típica do contrato de compra e venda, como se mostra definido pelo art. 874.º do CC.

Quanto a estes serviços, por regra, o utilizador nem sequer é chamado a negociar o valor da contrapartida devida pelo fornecimento da água ou pela recolha das águas residuais, normalmente essas tarifas são impostas de modo unilateral, sem que o utilizador tenha a possibilidade de as discutir, podendo singelamente aceitar ou rejeitar a celebração do contrato nos termos definidos. Por outro lado, estas tarifas, por regra, não são deixadas ao livre arbítrio dos mercados, ou seja, esta contrapartida não é livremente determinada pelas leis da oferta e da procura.

Sem quaisquer dificuldades pode afirmar-se que estas relações jurídicas (quer os contratos de concessão, quer também os contratos de fornecimento de água e/ou de drenagem de águas residuais) não são pautadas pela ampla liberdade contratual, específica do direito privado, em particular do direito das obrigações, na medida em que o interesse geral, subjacente a exploração e a gestão dos sistemas de distribuição de água e de recolha e drenagem de águas residuais, impõe que existam normas de direito público que disciplinem o seu regime substantivo.

Como facilmente se compreende, desde logo, pela natureza fundamental dos bens fornecidos e dos serviços prestados, não é exactamente igual comprar e vender um qualquer produto de consumo, onde funcionam de modo amplo e pleno as regras de mercado, do que tratar do fornecimento de água para o consumo humano e/ou do que assegurar o tratamento, a recolha e a drenagem de águas residuais.

Nestes casos impõe-se a existência de um regime específico, que tenha em conta o interesse geral e que seja composto por um conjunto de normas diferenciadoras, que, para além da liberdade contratual marcante da esmagadora maioria das transacções na sociedade contemporânea, tenham em conta a preocupação de assegurar a todos, de forma equilibrada e adequada, o acesso a água potável (própria, refira-se, para consumo humano) e a recolha de águas residuais.

Mais do que regular uma actividade livre de mercado, regida em exclusivo por normas de direito privado, afigura-se que o legislador, ao consagrar o regime jurídico vertido no DL n.º 194/2009, de 20-08, procurou consagrar normas específicas, de direito público, por forma a acautelar o interesse da colectividade.

Se, estas preocupações, em nossa perspectiva, decorrem do regime jurídico vigente, vertido no citado DL n.º 194/2009, de igual sorte, já anteriormente resultavam do DL n.º 379/93, de 05-11, ainda que em jeito mais minimalista.( O DL n.º 379/93, de 05-11, encontra-se revogado pelo art. 79.º, n.º 1, do DL n.º 194/2009, de 20-08, e pelo art. 13.º do DL n.º 92/2013, de 11-07.)

São estas precisamente as características distintivas dos contratos de direito privado e que, como decorre do disposto na al. f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, levam a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal competência para a resolução de litígios que se prendam com a sua interpretação, validade ou execução.

Muito a este propósito, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira defendem ( in Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Volume I, Janeiro de 2006, págs. 56 e 57.

) que “(...) subsumíveis na jurisdição administrativa, e administrativos, são também os contratos cujo regime substantivo esteja especificamente sujeito a normas de direito público (...)” e que “(...) por força deste segmento da alínea f) do art. 4.º/1 do ETAF, basta que um qualquer aspecto «substantivo» (não meramente procedimental) relevante do próprio contrato esteja sujeito – no que respeita aos direitos e deveres das partes, ou à sua direcção, modificação, extinção ou sanção – a um regime específico, de direito público, para que o mesmo se considere (administrativo e) integrado na jurisdição administrativa (...)”.

Significa isto que, quer perante o quadro jurídico constante do DL n.º 194/2009, de 20-08, quer perante o revogado DL n.º 379/93, de 05-11, os contratos de fornecimento de água e de drenagem de águas residuais encontram-se submetidos a um regime específico, de todo diferenciado do de direito privado.

Estes factores fazem-nos transportar para o âmbito do direito público, o que apela, conforme já se viu, para a intervenção do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, enquanto órgão competente para a resolução de conflitos desta natureza.

Conforme se mostra caracterizada no requerimento inicial a relação material controvertida, não subsistem quaisquer dúvidas de a requerente “A……………, SA” apela para o direito público, pelo que, por esta via, se adere à unânime jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos que (ainda que com base em diferente fundamentação jurídica) tem vindo a considerar que compete aos tribunais tributários apreciar os litígios relativos a contratos celebrados entre uma empresa concessionária do serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos utilizadores finais.

Deste modo, sem necessidade de acrescidas considerações, dos fundamentos acima expostos resulta inelutável que a competência material para o julgamento da causa deve ser atribuída ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.


III

DECISÃO:


Em face do exposto, resolvendo o presente conflito negativo de jurisdição, acorda-se em atribuir ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, competência para o conhecimento da questão controvertida que opõe a requerente “A……………, SA” à requerida “B……………., Lda.”.

Sem custas.

Lisboa, 9 de julho de 2015. – Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira (relatora) – Fernando Manuel Pinto de Almeida – Vítor Manuel Gonçalves Gomes –Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Fernanda Isabel de Sousa Pereira – Jorge Artur Madeira dos Santos.