Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:06/02
Data do Acordão:02/05/2003
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JORGE DE SOUSA
Descritores:COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO TRABALHO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO.
OFICINAS GERAIS DE MATERIAL AERONÁUTICO.
Sumário:I - A competência em razão da matéria é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do Autor, incluindo os respectivos fundamentos.
II - Se o Autor alega ter ajustado um contrato individual de trabalho com as Oficinas Gerais de Material Aeronáutico para prestação de trabalho como médico, se os termos em que caracteriza o acordo não são incompatíveis com um contrato desse tipo e se, com fundamento naquele contrato pretende ver reconhecidos direitos que a lei geral reguladora do contrato individual de trabalho estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo é o Tribunal de Trabalho o competente para apreciar se há fundamento legal para a satisfação destas pretensões.
Nº Convencional:JSTA00058935
Nº do Documento:SAC2003020506
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE TAC DE LISBOA E O TRIBUNAL DE TRABALHO DE LISBOA - 2º JUÍZO - 3ª SECÇÃO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:AC STJ DE 2002/04/24.
Decisão:DECLARA COMPETENTE O TRIBUNAL DO TRABALHO DE LISBOA.
Área Temática 1:COMPETÊNCIA.
Legislação Nacional:DL 49408 DE 1969/11/24 ART1.
CONST97 ART212 N3.
ETAF84 ART3.
Jurisprudência Nacional:AC STJ PROC67329 DE 1978/06/06 IN BMJ 278 PAG122.; AC STA PROC29125 DE 1992/01/16 IN AP-DR DE 1995/12/29 PAG211.; AC STJ PROC3881 IN CJ-ASTJ ANOII T1 PAG288.; AC STJ PROC43737 DE 1998/11/24.; AC STA PROC43737 DE 1998/11/24.; AC STJ PROC1250/98 DE 1999/02/09.; AC TCONFLITOS PROC546 DE 2000/05/04.; AC TCONFLITOS PROC371-02 DE 2002/02/27.; AC TCONFLITOS PROC318 DE 2002/07/11.; AC TCONFLITOS PROC217 DE 1991/01/31.; AC TCONFLITOS PROC231 DE 1991/05/07.; AC TCONFLITOS PROC230 DE 1991/05/06.; AC TCONFLITOS PROC207 DE 1996/09/26.
Referência a Doutrina:MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1979 PAG91.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:
1 – A... intentou no Tribunal de Trabalho de Lisboa acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo ordinário, contra B...
O Autor alegou, em suma, o seguinte:
Foi admitido ao serviço da Ré em 5-9-83, como médico do trabalho, estando subordinado às regras aplicáveis ao contrato individual de trabalho, por força do Decreto-Lei n.º 393/82, conforme cópia do contrato e de declaração que juntou;
Ao serviço da Ré, possuía o Autor o horário de trabalho de Segunda-feira a Sexta-feira das 13h30 às 17h30 com flexibilidade de horário;
Deixou de prestar serviço à Ré em 7 de Novembro de 1998 por ter sido despedido por carta da R. datada do dia 5 anterior que acompanhava cópia da deliberação de despedimento da R. e do relatório elaborado na sequência de processo disciplinar;
Não existe, no entanto, a justa causa invocada para o seu despedimento, que é antes um despedimento ilícito dada a inexistência de justa causa;
Verificou-se caducidade do direito de a Ré instaurar procedimento disciplinar;
Ocorreu recurso ilícito a meios de prova que foram utilizados para efeitos de instauração do procedimento disciplinar;
O Autor não cometeu nenhuma infracção, designadamente não ocorreu desobediência ilegítima, nem deixou de prestar assistência a um trabalhador e, se o seu comportamento integrasse infracções, ele não serviria de fundamento à cessação da relação laboral, quer à luz do regime do contrato de trabalho, quer à face do regime aplicável ao funcionalismo público;
O Autor foi impedido de entrar nas instalações da Ré, quando já estava terminado o período de suspensão preventiva;
O Autor tem direito a uma indemnização por danos não patrimoniais, pelo transtorno sofrido na sua vida profissional e no relacionamento com os seus colegas e pelo vexame sofrido ao ser impedido por porteiros ao serviço da Ré de regressar ao seu local de trabalho;
O Autor tem direito à reintegração no seu posto de trabalho, sem prejuízo da indemnização por despedimento, a exercer no momento processual próprio, e ainda a receber as retribuições vencidas e as que se vencerem até à decisão final, além de juros.
A Ré, além de contestar por impugnação, excepcionou a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal do Trabalho por, em suma, o Autor, embora tivesse sido admitido, na vigência do Decreto-Lei n.º 381/82, de 15 de Setembro, através de contrato individual de trabalho, com as declarações de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, daquele diploma e do Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Março, constantes dos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 31/84 e 15/88, respectivamente, passou a estar sujeito a um regime de direito público.
No despacho saneador, o Tribunal do Trabalho de Lisboa julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção, absolvendo a Ré da instância.
O Autor interpôs recurso desta decisão para o tribunal de Relação de Lisboa que, por acórdão de 5-7-2002, confirmou a decisão recorrida.
Novamente inconformado, o Autor interpôs recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
1. No âmbito dos Decs. – Lei 40.391 e 40.393 não se constitui nenhum vínculo de natureza administrativa, mas um contrato de natureza duradoura que nenhuma norma prevê como possível na admissão na função publica, antes se prevendo que os contratos na função pública são por natureza transitórios – art. 15º do Dec. – Lei 427/89;
2. E o próprio recorrente foi contratado em Outubro de 1983 ao abrigo de um contrato individual de trabalho então admitido nos termos dos Decs. – Lei 33/80 e 393/82 – Docs. 1 e 2 juntos com a petição inicial;
3. Quando os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 31/84 e 15/88 decidiram pela inconstitucionalidade com força obrigatória geral dos citados Decs. – Leis 393/82 e 33/80, a situação da relação jurídica do recorrente manteve-se uma relação de natureza civil, já que não assumiu nenhuma das formas admissíveis e transitórias de contrato que conferia a qualidade de “funcionário” ou de “agente”;
4. E, porque nesse contrato de natureza civil existia uma autêntica subordinação do recorrente às ..., o contrato mantinha-se mesmo depois de 1988 como um contrato individual de trabalho;
5. É competente pois o Tribunal do Trabalho em razão da matéria para apreciar o despedimento do A. no âmbito de um contrato de trabalho vigente com a R.;
6. O douto Acórdão recorrido, ao considerar o Tribunal do Trabalho como incompetente em razão da matéria, violou o art. 64º da LOTJ.
Termos em que,
Deverá ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se o Tribunal do Trabalho como competente para apreciar o pleito.
A Ré apresentou alegações dizendo, em suma, o seguinte:
Diga-se, apenas, em jeito de conclusão que aos trabalhadores da ..., em geral, do ponto de vista jurídico-laboral são-lhe aplicáveis dois regimes:
– O previsto na LCT (Lei do Contrato de Trabalho) aos trabalhadores contratados já pela B.... e aos que oriundos da ... (instituto público) tenham optado por tal regime, nos termos do disposto nos arts. 1º e 2º, nº 1 do Dec.-Lei 62/94 de 28.02;
– Um regime de direito público, tendo por base o regime jurídico vigente para os funcionários públicos, com as especificidades constantes dos diplomas orgânicos da ..., aos restantes trabalhadores transitados da ....
– O Autor tendo sido admitido nas ... em 10.10.83 e não tendo optado pelo regime do contrato individual de trabalho, está sujeito a um regime de direito público.
– Donde que o Tribunal de Trabalho é incompetente em razão da matéria para dirimir a questão que lhe é colocada.
Na pendência do recurso no Supremo Tribunal de Justiça, o Autor veio invocar, como facto superveniente, o acórdão n.º 1/2001, desse Tribunal, publicado no Diário da República, I Série, de 15-5-2001, em que se decidiu que «os contratos verbais celebrados entre Arsenal do Alfeite e os médicos ao seu serviço no domínio da vigência do Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Agosto, revestem a natureza de contratos de trabalho sujeitos ao Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49408, de 24 de Novembro de 1969, e não de contratos administrativos de provimento, se estiverem verificados os requisitos do contrato de trabalho, designadamente a subordinação jurídica. A tal não faz obstáculo a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral daquele Decreto-Lei n.º 33/80, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 15/88, de 14 de Janeiro, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 3 de Fevereiro de 1988, uma vez que nele se faz ressalva dos efeitos jurídicos produzidos pelas normas declaradas inconstitucionais.»
Sobre este Acórdão, a Ré veio dizer que ele se reporta a um caso de um trabalhador admitido em 15-6-82, na vigência do Decreto-Lei n.º 33/80, e que o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 15/88, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade daquele diploma, ressalvou os efeitos produzidos pelas suas normas, enquanto o Autor foi admitido em 10-10-83, já na vigência do Decreto-Lei n.º 381/82, que foi declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 31/84, do Tribunal Constitucional, sem qualquer ressalva de efeitos produzidos. Por isso, uma vez publicado este acórdão n.º 31/84, o Autor terá ficado de imediato sujeito às normas do Decreto-Lei n.º 40,391 e do Decreto n.º 40.393 e, consequentemente, ao regime do funcionalismo público, estatuto de que gozou, designadamente com inscrição, como beneficiário, na Caixa Geral de Aposentações.
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça emitiu douto parecer nos seguintes termos:
A questão fundamental que ora se coloca é a de indagar sobre o foro competente para dirimir o presente caso onde A..., apresenta pleito contra a ....
O douto Acórdão recorrido perfilha o entendimento de que o A. recorrente estaria abrangido por um contrato administrativo de provimento. Como tal, não tendo feito uso de prerrogativa consignada no artigo 2º nº 1 do Dec-Lei nº 62/94, de 28 de Fevereiro, optando pelo regime de Contrato Individual de Trabalho, manteve-se a situação contratual no âmbito da relação laboral de direito público. Foi assim confirmada a douta sentença recorrida que julgou o Tribunal do Trabalho absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção.
Antes de nos embrenharmos na problemática suscitada, importa tomar posição sobre uma questão que bem poderia ter sido prévia.
Com efeito a fls. 137 (nº 26 da contestação) a Ré aludia a uma acção que o A. teria intentado no TAC de Lisboa, com os mesmos fundamentos. A fls. 240, as alegações de recurso que o A. formulou, confirmava essa propositura. Identificada a acção (nº 77/99, 3ª Secção) constatou-se que a mesma havia dado entrada em 15.01.99 (fls. 310), sendo a Ré aí citada em 25.03.99 (fls. 445), ou seja, em data posterior à citação ocorrida nos presentes autos (23.02.99). Atendendo a que a presente acção foi proposta em 31.12.98, não é seguramente nestes autos que a litispendência deve ser deduzida, face ao que dispõe o artigo 499º nº 1 do C.P.Civil.
Posto isto, vejamos a questão de fundo, para o que desde já damos por adquiridas as considerações jurídicas constantes dos autos e expressas nas doutas decisões e das peças processuais articuladas.
No que interessa essencialmente, acha-se apurado o seguinte: o A., com a categoria profissional de médico foi admitido ao serviço da Ré em Setembro de 1983, quando vigorava o Dec-Lei nº 381/82 de 15 de Setembro. Este Dec-Lei que aprovou o Estatuto de Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas, viu as suas normas constitutivas declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral pelo douto Acórdão do Tribunal Constitucional nº 31/84 de 27.09.84 (in D.R. 1ª Série nº 91 de 17.04.84). Tal inconstitucionalidade determinou a repristinação do Dec-Lei nº 33/80 de 13.03.80, reportado ao mesmo Estatuto. Porém, também este Dec-Lei veio a ser declarado inconstitucional com força obrigatória geral, pelo douto Ac. do Tribunal Constitucional nº 15/88 de 14.01.88 (in DR 1ª Série nº 28 de 03.02.88), sendo ressalvadas “por razões de equidade e segurança jurídica, nos termos do artigo 282º nº 4 da Constituição, os efeitos produzidos pelas normas aqui declaradas inconstitucionais”.
O douto Acórdão recorrido partindo da premissa de que o A./Recorrente fora investido por contrato administrativo de provimento, – porventura por repristinação do Dec-Lei nº 40391 de 22.11.55 – entendeu que o A. reassumia a qualidade de agente administrativo. E isto porque, não fizera uso da prerrogativa de opção pelo regime do CIT, previsto no artigo 2º nº 1 do Dec-Lei nº 62/94.
Temos para nós no mínimo e salvo o devido respeito, por duvidoso que a alterabilidade da natureza de contratos de trabalho de estatuto de categoria laboral se possa alterar sem mais, por efeitos de repristinação, sobretudo quando é o próprio Acórdão do Tribunal Constitucional a ressalvar os efeitos já produzidos.
O douto Acórdão recorrido parece que parte do princípio de que, por estarmos face a uma organização fabril da FFAA se há-de inelutavelmente estar face a uma administrativação do contrato laboral.
Ora bem. O douto Acórdão deste Supremo Tribunal nº 1/2001 (in DR, 1ª Série-A, de 15 de Maio de 2001) veio demonstrar que tal entendimento não é forçosamente assim, já que “os contratos verbais celebrados entre o Arsenal do Alfeite e os médicos ao seu serviço no domínio da vigência do Dec-Lei nº 33/80 de 13 de Agosto revestem a natureza de contratos de trabalho sujeitos ao Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Dec-Lei nº 49.408 de 24 de Novembro de 1969, e não contratos administrativos de provimento, se estiverem verificados os requisitos de contrato de trabalho, designadamente a subordinação jurídica .... A tal não faz obstáculo a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral daquele Dec-Lei nº 33/80 pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 15/88 de 14 de Janeiro, publicado no DR, 1ª Série de 03 de Fevereiro de 1988, uma vez que nele se faz expressa ressalva dos efeitos jurídicos produzidos pelas normas declaradas inconstitucionais”.
Nos autos onde este Acórdão foi proferido e tivemos ensejo de apresentar parecer, aí se discutia precisamente a caracterização de um contrato verbal celebrado por um médico desde 16.06.82 com o Arsenal do Alfeite, sendo que também aí a Ré defendia tratar-se de um contrato administrativo de provimento, por estarmos perante uma unidade fabril das FFAA – o Arsenal do Alfeite.
No caso da presente acção e ao contrário do que ocorria naquel’outra que motivou o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, a situação é bem mais contundente já que as partes até celebraram um contrato individual de trabalho (fls. 39), sujeito a um horário (Cláusula 3ª), sujeito à orientação, fiscalização e regime disciplinar de empregadora (cláusula 5ª), estando declaradamente subscrito que o regime do CIT decorre do Dec-Lei nº 49.408 de 24 de Novembro de 1969 e legislação posterior que alterou este diploma (fls. 40).
E... não admira que a natureza do contrato seja o que acaba de se referir. Com efeito “as B...continuarão a viver em regime de industrialização, com completa autonomia administrativa e regem-se pelos princípios e normas que regulam a actividade das empresas privadas ...” (artigo 8º do Dec-Lei nº 40391). Diz por sua vez o artigo 14º do mesmo diploma que “O pessoal civil técnico .... são normalmente providos por contrato, sendo o restante do pessoal civil assalariado ....”. Nos termos do artigo 13º “O quadro permanente do pessoal .... civil das B... consta do respectivo quadro orgânico fixado no mapa anexo ...”. E deste quadro consta precisamente como pessoal civil técnico, a categoria profissional de médico (itálico e sublinhados nossos).
Ora perante esta textura legal nada nos habilita a estender o termo um contrato a um contrato administrativo de provimento “Ubi lex non distinguat nec nos distinguere debemus”.
Já vimos aliás que a celebração de um contrato individual de trabalho não é incompatível com o facto de se tratar de uma unidade fabril das FFAA.
A distinção constante do artigo 14º do Dec-Lei nº 40.391 permite também definir o alcance do Dec-Lei nº 62/94 de 28 de Fevereiro, reportado à opção a que alude o seu artigo 2º nº 1.
Na verdade, estando feita a distinção entre o pessoal sujeito ao regime do contrato e o outro ao regime de assalariado, há que dar antes de mais nada um sentido restritivo à referência que no preâmbulo deste Dec-Lei se faz ao regime jurídico do pessoal dos ... como enquadrando o regime de pessoal de Administração Pública. Esta referência só pode ser entendida como confinada àqueles que não titularam a sua actividade laboral por via de contrato de trabalho (aliás não está pautado por cânones de boa hermenêutica jurídica, entender que cabe ao preâmbulo do Dec-Lei nº 62/94. definir o alcance normativo do Dec-Lei nº 40.391, por não ser essa a sua função).
Daí que a opção de que fala o artigo 2º nº 1 do Dec-Lei nº 62/94, não seja sequer equacionável ao caso do A. já que seria uma opção inócua uma vez que já se mantém inalterada a situação que havia escolhido.
Pelo todo o exposto e salvo o devido respeito se emite parecer no sentido da revista ser concedida.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 24-4-2002, decidiu não tomar conhecimento do recurso e remeter o processo ao Tribunal de Conflitos, invocando o disposto no art. 107.º, n.º 2, do C.P.C..
Remetido o processo a este Tribunal de Conflitos, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser o Tribunal do Trabalho o competente para o conhecimento da acção, dando como reproduzido o parecer do Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de justiça.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – No caso em apreço, o Tribunal de Relação de Lisboa julgou incompetente, em razão da matéria, o Tribunal do Trabalho, por entender que o conhecimento da causa cabe à jurisdição administrativa.
Nesta situação, o recurso do acórdão da Relação deve ser interposto para o Tribunal de Conflitos (art. 107.º, n.º 2, do C.P.C.).
No caso dos autos, o recurso do acórdão da Relação não foi interposto para este Tribunal de Conflitos, mas sim para o Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu não tomar conhecimento do recurso e ordenar a remessa do processo a este Tribunal, com fundamento num princípio geral de aproveitamento do processado, contido no art. 105.º, n.º 1, do C.P.C..
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em que assim se decidiu foi notificado às partes e ao Ministério Público, não tendo sido impugnado, pelo que tem de considerar-se assente a viabilidade da tramitação determinada (arts. 672.º do C.P.C.).
Assim, nada obsta à apreciação do recurso.
3 - Os factos relevantes para a apreciação do recurso, sobre os quais as partes estão de acordo, são os seguintes:
a) O Autor foi admitido ao serviço das ... em 5-9-83, como médico do trabalho (fls. 39);
b) O Autor prestava serviço em tempo parcial, com um horário de trabalho que, inicialmente era de segunda-feira a sexta-feira das 13,30 horas às 17,30 horas e, posteriormente, passou a ser flexível, mantendo a obrigatoriedade de prestação de 20 horas semanais (fls. 39 e 41);
c) O Autor auferia uma remuneração mensal que, inicialmente, era de 43.100$00 e, ultimamente, de 306.600$00 (fls. 3 e 39);
d) Para a admissão do Autor, foi elaborado o documento cuja cópia consta de fls. 39 e verso, cujo teor se dá como reproduzido, intitulado «Contrato individual de trabalho», de que consta, além do mais, o seguinte:
o Autor e um representante daquele Estabelecimento Fabril das Forças Armadas «declaram aceitar o presente contrato, celebrado nos termos dos arts. 14.º e 86.º do EPCEFFA aprovado pelo Decreto-Lei n.º 381/82, de 13 de Setembro e do Decreto-Lei n.º 393/82, de 20 de Setembro e demais legislação aplicável»;
o aqui Autor «cumprirá o seguinte horário de trabalho: 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª e 6. feiras das 13H30 às 17H30»; e
«terá direito ao salário mensal de 43.100$00, correspondente ao tempo em horário parcial e às demais remunerações, regalias e assistência social, em vigor para os empregados das ...»;
«em tudo o mais o presente contrato fica sujeito às disposições legais e regulamentares em vigor para o pessoal das ...».
e) Em reunião de 3-11-98, o Conselho de Administração da ... – .... decidiu aplicar ao aqui Autor «a pena de demissão, prevista no art. 26.º da EDFAACRL, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84» (fls. 42 e 43).
4 – A questão que é colocada no presente recurso é a de saber se cabe aos tribunais do trabalho ou aos tribunais administrativos o conhecimento da acção.
A jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do art. 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais», norma esta que adoptou, no essencial, a regra que já constava do art. 3.º do E.T.A.F..
A jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211.º, n.º 1, da C.R.P.). ((Disposição esta que é reproduzida, na sua essência, no art. 18.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei 3/99, de 13 de Janeiro). )
No entanto, a competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, «seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”, é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.»
(MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 91)«A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.» (Obra e local citados.)
Esta posição está em sintonia com a essência do direito dos cidadãos acederem aos tribunais para verem apreciados os seus direitos (art. 20.º, n.º 1, da C.R.P.), que reclama que os particulares possam ver apreciados por um órgão jurisdicional os direitos que entendam arrogar-se.
Aquele entendimento doutrinal tem vindo a ser aceite, no essencial, pela jurisprudência. (Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos:
do Supremo Tribunal de Justiça, de 6-6-78, proferido no recurso n.º 67329, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 278, página 122;
do Supremo Tribunal Administrativo, de 16-1-1992, proferido no recurso n.º 29125, publicado no Apêndice ao Diário da República de 29-12-95, página 211;
do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-5-93, proferido no recurso n.º 83452;
do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-10-93, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, nº 386, página 227;
do Supremo Tribunal de Justiça, de 9-2-94, proferido no recurso n.º 3881, publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, tomo 1, página 288;
do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-5-96, proferido no recurso n.º 4398;
do Supremo Tribunal Administrativo, de 8-7-1997, proferido no recurso n.º 41990, publicado no Apêndice ao Diário da República de 12-8-2001, página 5650;
do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-2-98, proferido no recurso n.º 117/97;
do Supremo Tribunal Administrativo, de 24-11-1998, proferido no recurso n.º 43737, publicado no Apêndice ao Diário da República de 6-6-2002, página 7364;
do Supremo Tribunal de Justiça, de 9-2-99, proferido no recurso n.º 1250/98;
do Supremo Tribunal Administrativo, de 23-3-1999, proferido no recurso n.º 43973, publicado no Apêndice ao Diário da República de 12-7-2002, página 2027;
do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-4-99, proferido no recurso n.º 373/98;
do Tribunal de Conflitos, de 4-5-2000, proferido no processo n.º 346;
do Tribunal de Conflitos, de 27-2-2002, proferido no recurso n.º 371/02;
do Tribunal de Conflitos, de 11-7-2002, proferido no processo n.º 318, publicado em Apêndice ao Diário da República de 24-8-2001, página 59. ) e já foi adoptado por este Tribunal de Conflitos em casos semelhantes, designadamente nos que foram apreciados nos seguintes acórdãos:
de 31-1-91, proferido no processo n.º 217 (Publicado em Apêndice ao Diário da República de 30-10-93, página 4, com o seguinte sumário:
I - A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta.
II - O Tribunal do Trabalho é competente para conhecer da acção proposta com vista à reintegração de um médico no lugar que ocupava e ao pagamento das remunerações vencidas e vincendas a cujo contrato foi posto termo pela entidade patronal que o admitira ao seu serviço, invocando-se a legislação geral do trabalho.
III - À fixação dessa competência não obsta o facto do réu sustentar tratar-se de contrato de provimento, cabendo ao foro administrativo conhecer da legalidade da decisão que lhe pôs termo.);
de 7-5-91, proferido no processo n.º 231; (Publicado em Apêndice ao Diário da República de 30-10-93, página 24, com o seguinte sumário, constante da base de dados informática do Supremo Tribunal Administrativo:
I - A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta.
II - O Tribunal de Trabalho é competente para conhecer da acção proposta com vista à reintegração de um médico no lugar que ocupava e ao pagamento das remunerações vencidas e vincendas, a cujo contrato foi posto termo pela entidade patronal, quando o respectivo vínculo laboral é caracterizado na petição como sendo um contrato de trabalho regulado pelas normas de direito privado.)
de 6-5-91, proferido no processo n.º 230; (Publicado em Apêndice ao Diário da República de 30-10-93, página 34, com o seguinte sumário:
I - Se o autor alega ter ajustado um contrato verbal com o Arsenal do Alfeite para prestação de trabalho como médico, é o Tribunal de Trabalho o competente para apreciar se há fundamento legal para o seu despedimento e, em caso afirmativo, para decidir se há lugar à pretendida reintegração e ao pagamento de diversas quantias a que o Autor se julga com direito.
II - Nesse caso não pode considerar-se competente o Tribunal Administrativo só porque o Réu ao contestar, alegou que o contrato em causa não é de Trabalho mas administrativo.
III - Decidir essa questão é entrar no conhecimento de mérito.)
de 26-9-96, proferido no processo n.º 267. (Publicado em Apêndice ao Diário da República de 28-11-97, página 59, com o seguinte sumário:
I - A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta.
II - Se o Autor alega ter ajustado um contrato verbal com o Arsenal do Alfeite para prestação de trabalho como médico, é o Tribunal de Trabalho o competente para apreciar se há fundamento legal para o seu despedimento e, em caso afirmativo, para decidir se há lugar à pretendida reintegração e ao pagamento de diversas quantias a que o Autor se julga com direito;
III – A fixação dessa competência não obsta o facto de o Réu sustentar tratar-se de contrato de provimento, pois decidir essa questão é entrar no conhecimento do mérito.)
Assim, à face daquela doutrina e desta jurisprudência e das referidas normas delimitadoras da competência jurisdição administrativa e da dos tribunais judiciais, para decidir se incumbe aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais do trabalho o conhecimento da acção importa caracterizar a relação estabelecida entre o Autor e as ..., tal como é apresentada por aquele.
Concordando com essa doutrina e jurisprudência, apreciar-se-á o caso dos autos, à face dos princípios indicados.
5 – No caso em apreço, o Autor refere ter sido admitido em 5-9-83 ao serviço das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (...), como médico do trabalho, invocando ter sido acordado que seriam aplicáveis na sua relação laboral as regras do contrato individual de trabalho, nos termos dos arts. 14.º e 86.º do Estatuto do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas (EPCEFFA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 381/82, de 15 de Setembro, e do Decreto-Lei n.º 393/82, de 20 de Setembro.
O art. 14.º do EPCEFFA estabelecia as regras sobre a contratação «nos termos da legislação do trabalho» ( O art. 86.º do EPCEFFA reporta-se ao regime do período experimental.) e o Decreto-Lei n.º 393/82 estabelecia que «o contrato de trabalho previsto no artigo 14.º do EPCEFFA é o vínculo jurídico a estabelecer entre cada estabelecimento fabril das forças armadas e o pessoal civil ao seu serviço com a qualificação de empregado e está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, com as adaptações constantes do mesmo Estatuto e dos artigos seguintes».
Assim, à face da petição inicial e documentação anexa, é de concluir que a relação jurídica que o Autor e as ... acordaram estabelecer seria regulada pelas regras do regime do contrato individual de trabalho, com as especialidades que resultavam do EPCEFFA e do Decreto-Lei n.º 393/82.
É esse contrato, que o Autor caracteriza como contrato individual de trabalho, o fundamento das pretensões que o Autor formula, que se reconduzem a ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo.
Por outro lado, não há qualquer obstáculo legal à celebração por entidades de direito público de contratos de trabalho regulados pelo direito privado e o contrato invocado pelo Autor reúne os requisitos para ser qualificado como contrato de trabalho, uma vez que, em face dos seus termos e do regime legal para que nele se remete, o Autor assumiu a obrigação de, mediante retribuição, prestar a sua actividade às ..., sob a autoridade e direcção desta (art. 1.º do Decreto-Lei n.º 49408, de 24-11-69).
É certo que, como refere a Ré, após a celebração do contrato e do estabelecimento daquela relação entre o Autor e as ..., aqueles Decretos-Lei n.ºs 381/82 e 393/82 foram declarados inconstitucionais, com força obrigatória geral, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 31/84, de 27 de Março, publicado no Diário da República, I Série, de 11-4-84, que não contém qualquer ressalva dos efeitos produzidos pelas normas declaradas inconstitucionais.
Porém, a determinação dos eventuais efeitos que essa declaração de inconstitucionalidade possa ter sobre o contrato referido, designadamente sobre a sua validade total ou parcial e a correlativa possibilidade de ele servir de suporte às pretensões formuladas pelo Autor, é questão que pode relevar a nível do mérito da acção, mas não pode influenciar a questão prévia da competência para o conhecimento da acção.
Como também seria entrar na apreciação do mérito apreciar se a situação invocada pelo Autor, que é compatível com a vinculação às ... no âmbito de um contrato individual de trabalho, em vez de assentar num contrato deste tipo, regulado pelo respectivo regime de direito privado, deveria qualificar-se um contrato administrativo de provimento, como pretende o Réu.( Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no processo n.º 267, atrás citado, onde se escreve: «questão diferente é a de saber se a situação nela descrita está ou não sujeita ao regime jurídico invocado pelo Autor, a qual se prende com o mérito da acção. Se ele não for o aplicável mas sim, porventura, o invocado pelo» Réu, «o que sucederá é improceder a acção (...)».)
Com efeito, o que releva para apreciação da questão da competência, à face da jurisprudência e doutrina citadas, são os factos de o Autor alegar estar ligado à Ré, através do regime contrato individual de trabalho, de os termos com que caracteriza a sua situação serem compatíveis com um contrato deste tipo e de ser esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão formulada pelo Autor de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo. Isto é, o Autor tem direito a que seja apreciado por u órgão jurisdicional se tem ou não o direito que se arroga, emergente do contrato individual de direito privado que defende vinculá-lo à Ré.
Assim, desde logo, não sendo invocada pelo Autor, como fundamento da sua pretensão, qualquer relação jurídica administrativa, nem resultando dos termos em que a acção foi proposta que tenha sido estabelecida entre o Autor e as ... uma relação desse tipo, está afastada a possibilidade de incumbir aos tribunais administrativos o conhecimento da acção n(arts. 212, n-º 3, da C.R.P. e 3.º do E.T.A.F.)..
Por outro lado, arrogando-se o Autor direitos emergentes de um contrato individual de trabalho e não incumbindo a outros tribunais o conhecimento da acção com tal fundamento, é aos tribunais judiciais que incumbe legalmente apreciar se o Autor tem ou não o direito que invoca (art. 18.º da L.O.F.T.J.).
No âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais, sendo colocada pelo Autor uma questão emergente de um contrato de trabalho, são competentes para o conhecimento da acção os tribunais do trabalho, por força do preceituado no art. 85.º, alínea b), da L.O.F.T.J.. (Teor idêntico tinha o art. 64.º, alínea b), da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro, vigente à data da propositura da acção.)
Termos em que acordam neste Tribunal de Conflitos em
revogar o acórdão recorrido;
declarar competente o Tribunal do Trabalho de Lisboa para o conhecimento da acção.
Sem custas.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 2003.
Jorge de Sousa – Relator – Manuel Soares – Abel Atanásio – Azambuja da Fonseca – Azevedo Moreira – Carmona da Mota