Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:026/09
Data do Acordão:01/20/2010
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE CONFLITOS
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
JULGADO DE PAZ
TRIBUNAIS JUDICIAIS
CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I – Os julgados de paz são tribunais, mas de uma ordem jurisdicional diferente das dos tribunais judiciais ou dos tribunais administrativos e fiscais.
II – Daí que o conflito negativo entre um julgado de paz e um tribunal de pequena instância cível seja um conflito de jurisdição.
III – Os conflitos de jurisdição são resolvidos pelo STJ se a sua resolução não couber ao Tribunal dos Conflitos.
IV – O Tribunal dos Conflitos tem competência para dirimir os conflitos de jurisdição em que intervenham tribunais judiciais se, no outro pólo, estiverem tribunais administrativos e fiscais ou a Administração.
V – Assim, a resolução do conflito de jurisdição dito em II não é da competência do Tribunal dos Conflitos, antes cabendo ao STJ.
Nº Convencional:JSTA00066223
Nº do Documento:SAC20100120026
Data de Entrada:11/12/2009
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O JULGADO DE PAZ DO PORTO E O 1º JUÍZO DE PEQUENA INSTÂNCIA CÍVEL DO PORTO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO JP PORTO - TCIV PORTO.
Decisão:DECL INCOMPETÊNCIA.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - REC JURISDICIONAL.
CONFLITO JURISDIÇÃO.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:CPC96 ART115 ART116 ART72 D.
LOFTJ99 ART96 N1 E ART36 D.
CONST76 ART209 N2.
D 19243 DE 1931/01/16 ART59 ART101.
DL 23185 DE 1933/10/30 ART17.
L 78/2001 DE 2001/07/13 ART62.
Jurisprudência Nacional:AC STJ DE 1967/05/23 IN BMJ N167 PAG448.; AC STJ DE 2004/11/18 IN CJSTJ ANO2004 TIII PAG120.; AC STJ DE 2007/05/24 IN DR IS 2007/07/25.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

O MºPº veio requerer a este Tribunal dos Conflitos que se resolva «o conflito negativo de jurisdição» aberto entre o Julgado de Paz do Porto e o 1.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, já que, por decisões transitadas, ambos declinaram a competência própria para conhecer de uma acção de condenação – movida por A…, identificado nos autos, contra o Consórcio B… e a C… – atribuindo-a ao outro.

A acção fora proposta por aquele autor no Julgado de Paz do Porto, que aceitou a sua competência. Mas, porque entretanto foi requerida a produção de prova pericial, o Sr. Juiz de Paz considerou finda a competência do Julgado e ordenou a remessa dos autos ao Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto.
No entanto, o Sr. Juiz do 1.º Juízo deste último tribunal entendeu que a prova pericial fora requerida extemporaneamente, motivo por que a competência «ratione materiae» para o julgamento do pleito continuaria a pertencer ao Julgado de Paz, e não ao Tribunal de Pequena Instância Cível.
E ambas as decisões transitaram.

Conhecida a factualidade relevante, passemos ao direito.
Deparam-se-nos duas decisões transitadas, nas quais um Julgado de Paz e um Tribunal de Pequena Instância Cível se atribuíram reciprocamente a competência para o conhecimento de determinada acção, declinando a competência própria. Há, pois, um conflito negativo (cfr. o art. 115º do CPC), sendo prioritário determinar se ele é de competência ou de jurisdição.
O Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto é, obviamente, um tribunal judicial, de competência específica (art. 96º, n.º 1, al. e), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13/1). Ao invés, e atenta a mesma lei, não há dúvida que o Julgado de Paz do Porto não é um tribunal judicial.
Todavia, os julgados de paz são ainda tribunais. Tal decorre do art. 209º da CRP que, ao aludir às várias «categorias de tribunais», prevê no seu n.º 2 a existência desses julgados. E o mesmo foi reconhecido pelo STJ no seu acórdão uniformizador de jurisprudência datado de 24/5/2007 e publicado na I Série do DR de 25/7; pois afirma-se nesse aresto que os julgados de paz são «órgãos jurisdicionais» ou «tribunais constitucionalmente previstos», «integrando- -se na categoria de tribunais de resolução de conflitos de existência facultativa».
Ora, se os julgados de paz são tribunais, mas não tribunais judiciais, segue-se que eles não cabem na ordem jurisdicional em que estes últimos se agrupam – conclusão limpidamente confirmada pelo art. 209º da CRP e pela citada Lei n.º 3/99. E, por causa dessa diversidade de ordens jurisdicionais, o conflito suscitado entre um julgado de paz e um tribunal judicial deve qualificar-se como de jurisdição («vide» o n.º 1 do art. 115º do CPC).
Portanto, o conflito dos autos é de jurisdição. Os conflitos deste tipo são resolvidos, ou pelo STJ, ou pelo Tribunal dos Conflitos, «conforme os casos» (art. 116º, n.º 1, do CPC). É de notar que a competência do STJ para resolver conflitos de jurisdição é residual – pois o STJ só conhece «dos conflitos de jurisdição cuja apreciação não pertença ao tribunal de conflitos» (cfr. o art. 36º, al. d), da Lei n.º 3/99). Sendo assim, há primacialmente que ver se a resolução do presente conflito de jurisdição incumbe ao Tribunal dos Conflitos; e, se dissermos que não, concluiremos que o conflito dos autos terá de ser solucionado pelo STJ.
A antiga redacção da al. d) do art. 72º do CPC evidenciava os «casos» a resolver pelo Tribunal dos Conflitos: tratava-se dos conflitos de jurisdição suscitados «entre as autoridades e tribunais administrativos e entre aquelas ou estes últimos e os tribunais judiciais». É certo que esta redacção se encontra revogada; mas o seu sentido normativo subsiste ainda, íntegro, noutros dispositivos delimitadores do âmbito de competência do Tribunal dos Conflitos.
Com efeito, já o Decreto n.º 18.017, de 28/2/1930, previra que, «no julgamento dos conflitos de jurisdição entre autoridades administrativas e judiciais», interviessem cinco juízes do STJ e os membros do Supremo Conselho de Administração Pública – o qual antecedeu o STA. Estava aí em esboço o futuro Tribunal dos Conflitos, que o Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 19.243, de 16/1/1931, mais tarde criou a fim de solucionar «conflitos positivos ou negativos de jurisdição e competência entre as autoridades administrativas e judiciais» (cfr. o art. 59º desse diploma). E a mesma ideia persistiu no DL n.º 23.185, de 30/10/1933, que criou o STA e cujo art. 17º estabeleceu a actual composição do Tribunal dos Conflitos. Ora, a composição bipartida deste tribunal logo sugere que ele se destina a clarificar uma precisa dúvida quanto ao «situs» onde devem conhecer-se os litígios – se na ordem dos tribunais judiciais, se na dos tribunais administrativos e fiscais ou no plano da pura Administração. Até porque, como se disse no acórdão do STJ de 18/11/2004 («in» CJ, 2004, tomo III, pág. 120), o art. 59º do Decreto n.º 19.243 deve ser actualmente interpretado por forma a ver-se, naquela sua referência às «autoridades administrativas», sobretudo a alusão aos juízes dos tribunais administrativos e fiscais.
É, aliás, significativo que a supressão da al. d) do art. 72º do CPC nunca tenha levado este Tribunal dos Conflitos a vacilar quanto ao âmbito da sua competência, sempre definida, antes e depois da alteração legislativa, da mesma maneira – precisamente aquela que a norma revogada estabelecia. E isso deve-se, conforme dissemos, ao bloco normativo que subjazia ao preceito revogado e que subsistiu incólume, explicando e justificando a prossecução do «statu quo ante».
Adquirido que os conflitos de jurisdição a dirimir pelo Tribunal dos Conflitos hão-de ser aqueles em que, ao menos de um dos seus lados, se perfilem os tribunais administrativos e fiscais ou a Administração, resta avaliar se tal ocorre «in casu».
E a resposta só pode ser negativa. Com efeito, os julgados de paz são tribunais – como já constatámos – pelo que é impossível encará-los como uma modalidade de Administração. É igualmente inadmissível incluí-los na ordem dos tribunais administrativos e fiscais («vide» o ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2). Consequentemente, eles não cabem num dos indispensáveis pólos, de cujo confronto depende a competência deste Tribunal dos Conflitos.
Aliás, é flagrante que o presente conflito de jurisdição deve ser solucionado pelo STJ. A circunstância das sentenças dos julgados de paz poderem ser alvo de recurso a interpor para os tribunais judiciais de 1.ª instância (cfr. o art. 62º da Lei n.º 78/2001, de 13/7) mostra que há, entre essas ordens de tribunais, uma continuidade de competências «ratione materiae»; e uma tal conexão com os tribunais judiciais, acrescida à concomitante falta dela com a ordem administrativa, diz tudo sobre qual o tribunal competente para dirimir o conflito de jurisdição (cfr., «hoc sensu», o acórdão do STJ de 18/11/2004, atrás citado; e ainda o acórdão do mesmo tribunal de 23/5/67, «in» BMJ, 167º, pág. 448, segundo o qual compete ao STJ «conhecer dos conflitos de jurisdição entre quaisquer tribunais especiais, que não sejam administrativos»).
Portanto, o conflito em apreço não cabe na competência deste Tribunal dos Conflitos, estando a sua resolução cometida ao STJ. E a pronúncia a tal respeito tem um valor definitivo (cfr. art. 101º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 19.243, de 16/1/1931).

Nestes termos, acordam em declarar a incompetência do Tribunal dos Conflitos e em não conhecer, por isso, do conflito de jurisdição dos autos.
Sem custas.

Lisboa, 20 de Janeiro de 2010. Jorge Artur Madeira dos Santos (Relator) - Lázaro Martins Faria – António José Pinto da Fonseca Ramos – Mário de Sousa Cruz – José António de Freitas Carvalho – Adérito da Conceição Salvador dos Santos.