Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:027/22
Data do Acordão:03/22/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO
Sumário:Compete à jurisdição comum, em razão da matéria, apreciar uma acção na qual se discute uma relação laboral sujeita ao regime do Código do Trabalho.
Nº Convencional:JSTA000P30736
Nº do Documento:SAC20230322027
Data de Entrada:09/30/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VIANA DO CASTELO - JUÍZO DO TRABALHO DE VIANA DO CASTELO - JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
AUTOR: AA
RÉU: UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DO ..., EPE
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 27/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, médica, instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo do Trabalho de Viana do Castelo, Juiz 1, acção emergente de contrato de trabalho contra a Unidade Local de Saúde do ..., EPE pedindo o seguinte:
“A) Deverá a Ré ser condenada a reconhecer à Autora o seu reposicionamento remuneratório, desde 11.08.2015, no primeiro grau da categoria de assistente graduado, correspondente à remuneração base de €4107,03 atualizado para €4119,35 em janeiro de 2020, procedendo ao processamento e pagamento da remuneração em conformidade com esse reposicionamento e valor;
B) Deve a Ré ser condenada a pagar à Autora o valor das respetivas diferenças mensais, desde 11.08.2015 até à presente data, e daí em diante até efetivo e integral pagamento.”

Em síntese, a Autora alegou que celebrou com a Ré, em 01.01.2005, um contrato individual de trabalho sem termo, mantendo-se a A. ao serviço da R., exercendo funções correspondentes à sua categoria profissional – à data, Assistente de Medicina Interna -, sob a autoridade e direcção da Ré. Continuando, a esta data (da propositura da acção) a exercer essas funções sob a autoridade e direcção da Ré, mas já com a categoria profissional de Assistente Graduada, para a qual progrediu ao adquirir o grau de consultor em 11.08.2015, ao ser “Aprovada” no concurso de habilitação ao grau de consultor. Daí que entenda dever ser-lhe reconhecido o direito à mudança para a categoria de Assistente Graduado (para todos os efeitos, incluindo o remuneratório, reportado a 11.08.2015.
A Ré contestou e, além do mais, arguiu a incompetência material do Tribunal.
A Autora pronunciou-se sobre a excepção de incompetência reafirmando que é uma trabalhadora em regime de contrato individual de trabalho, pelo que sendo de natureza privada a relação jurídica em causa, está sujeita ao regime do contrato de trabalho, de acordo com o Código do Trabalho e demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e regulamentos internos. Pelo que não se verifica a alegada excepção.
Em 08.03.2022, o Juízo do Trabalho de Viana do Castelo do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo julgou-se incompetente em razão da matéria para apreciação da acção intentada, absolvendo a Ré da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (TAF de Braga), a requerimento da Autora, também este, em 21.06.2022, decidiu julgar-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto dos autos, absolvendo a Ré da instância.
Por despacho de 14.09.2022 o TAF de Braga suscitou oficiosamente a resolução do presente conflito negativo de jurisdição.

Neste Tribunal dos Conflitos, as partes notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019 nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais do trabalho, citando para o efeito a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos em recentes acórdãos.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo do Trabalho de Viana do Castelo, Juiz 1 e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Considerou o Juízo do Trabalho de Viana do Castelo, onde a acção foi inicialmente instaurada (Proc. nº 3273/21.1T8VCT) que «Pois bem, afigura-se-nos que, independentemente da forma como originariamente foi criada a relação laboral, todos os contratos de trabalho estabelecidos com o Estado ou outros entes públicos, como é o caso da R., se converteram, ope legis, em contrato de trabalho em funções públicas a partir de 1 de Janeiro de 2009, por força do disposto na Lei 12-A/ 2008, de 27/2, e da Lei 59/2008, de 11/9. É assim, evidente que a relação laboral entre a A. e a R., a partir daquela data de 1 de Janeiro de 2009, se rege pelo disposto no regime dos contratos em funções públicas e não na lei geral do laboral.
(…)Tratando-se no nosso caso, como vimos, de um contrato de trabalho em funções públicas, esta secção de trabalho é linearmente incompetente, em razão da matéria, para a apreciar e decidir.
Só assim não seria se a A. formulasse qualquer pedido referente ao período anterior a 1/1/2009, pois que então, por força do princípio da conexão, este tribunal adquiriria competência para apreciação de toda a matéria em causa – veja-se, neste exacto sentido, o Ac. do STJ de 16/6/2015, in www.dgsi.pt.
Simplesmente, a A. não formula qualquer pedido que se reporta a data anterior àquela em que o seu contrato passou a ser funções públicas, pelo que a apreciação das questões por si suscitadas compete exclusivamente à jurisdição administrativa.».
Por sua vez, o TAF de Braga declarou-se incompetente em razão da matéria, “sendo competente o Tribunal do Trabalho”, com os seguintes fundamentos: «Da alegação da Autora e bem assim do suporte documental junto aos autos, resulta que a Autora se sustenta na relação laboral com a Ré, relação essa estabelecida ao abrigo de contrato de direito privado, regulada pelo Código do Trabalho (veja-se, nomeadamente o doc. ... junto com a petição inicial e a alegação em sede de petição inicial e réplica), para obter o pagamento de diferenças remuneratórias. (…)
Na presente ação, a Autora, a coberto da sua relação laboral privada, demanda uma entidade pública – a ULS..., E.P.E..
Ora, cotejado o artigo 4º, nº 4, al. b) do ETAF, resulta que estão excluídas da jurisdição administrativa, os litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público. Como se referiu acima, da alegação da Autora, mas principalmente do acervo documental junto, é fácil de constatar que a relação de trabalho da Autora que a une à Ré é uma relação privada regulada pelo Código do Trabalho; a Autora afirma, expressamente, que a sua relação laboral não é pública; em nada releva se tal relação é estabelecida com uma entidade pública e se se destina a exercer funções no Serviço Nacional de Saúde.
O critério, neste caso, para aferição da jurisdição competente, é o da natureza da relação laboral estabelecida, e essa é, como se disse já, do foro privado. (…)
Em síntese, conclui-se que os Tribunais Administrativos não são competentes para conhecer da presente ação na medida em que, desde logo, a competência em razão da jurisdição se afere pela forma como a Autora configurou a ação. Assim, tendo a Autora configurado a ação como dizendo respeito a relação contratual laboral privada, não cabe no âmbito da jurisdição administrativa.».

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. n.º 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo».
Ora, aquilo que a A. pediu ao tribunal foi que a Ré seja condenada a reconhecer à Autora o seu reposicionamento remuneratório, desde 11.08.2015, no primeiro grau da categoria de assistente graduado, “correspondente à remuneração base de €4107,03 atualizado para €4119,35 em janeiro de 2020, procedendo ao processamento e pagamento da remuneração em conformidade com esse reposicionamento e valor” e que seja condenada a pagar à Autora o valor das respectivas diferenças mensais, desde 11.08.2015 até à presente data, e daí em diante até efetivo e integral pagamento. Alegando que a relação laboral existente entre si e a R. era um contrato de trabalho de natureza privada sujeito ao regime do Código do Trabalho.
Assim, não podem subsistir dúvidas de que a A. caracteriza o vínculo jurídico entre si e a Ré como relação laboral de direito privado.
Isto significa como se decidiu neste Tribunal dos Conflitos, no referido Ac. de 01.10.2015, Proc. n.º 08/14 que: «perante a pretensão expressa do Autor de reconhecimento da existência de um contrato individual de trabalho e não de uma relação de trabalho em funções públicas, não pode resolver-se a questão da competência em razão da matéria caracterizando tal relação como de contrato de trabalho em funções públicas em função da interpretação da evolução do regime jurídico em sentido contrário ao pretendido pelo Autor (sendo alheia ao objecto da presente decisão, repete-se, qualquer apreciação do acerto dessa solução).
É certo que o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência, pelo menos numa situação como a presente em que a causa de pedir e o pedido vão dirigidos ao reconhecimento dos efeitos resultantes de uma relação laboral de direito privado. Para a apreciação desta questão o que releva é a alegação do Autor de que está ligado à Ré através do regime contrato individual de trabalho e de que é esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo e que não seriam, porventura, suportados pelo regime do contrato de trabalho em funções públicas. Isto é, o Autor tem direito a que seja apreciado se tem ou não o direito que se arroga, emergente do contrato individual de direito privado que defende vinculá-lo à Ré.».
E, em situação paralela, o Tribunal dos Conflitos reiterou que «Nesta medida, e contrariamente ao que decorre implicitamente da decisão que foi proferida no Tribunal do Trabalho, não interessa, para os estritos fins da determinação da competência, trazer à discussão a legislação subsequente (referimo-nos à Lei n° 12-A/2008, de 27 de fevereiro, entretanto revogada, e à Lei n° 35/2014, de 20 de junho) que, segundo uma possível interpretação, poderá ter convertido o alegado contrato de trabalho num contrato em funções públicas: Note-se que não se está a pôr em dúvida que para os dissídios decorrentes de um contrato deste tipo a jurisdição administrativa e fiscal seria a competente (alínea d) do n° 3 do art. 4º do ETAF e art. 12°da Lei n° 35/2014). O que se diz, simplesmente, é que não é isso que está aqui em causa. Na realidade, uma coisa é a competência do tribunal, outra coisa, muito diferente, é o direito material ou substantivo aplicável ao litígio, direito este que cabe ao tribunal competente determinar e aplicar independentemente da sua natureza privada ou pública» - cfr. Ac. de 04.02.2016, Proc. n.º 041/15.
No mesmo sentido dos citados acórdãos se tem pronunciado, de forma reiterada, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos (cfr., entre outros, os acórdãos de 25.01.2018, Proc. n° 047/17, de 11.04.2019, Proc. nº 045/18, e de 13/10/2021, Proc. nº 0713/19.3T8BJA.E1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt).
Deste modo, tem de concluir-se que, atendendo aos termos em que a A formulou a pretensão são os tribunais comuns, pelos tribunais do trabalho, os competentes para conhecer da acção.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo do Trabalho de Viana do Castelo, J1.
Sem custas.

Lisboa, 22 de Março de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.