Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:010/21.4T9STR
Data do Acordão:03/09/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Competindo aos tribunais comuns conhecer da impugnação judicial de sanções contra-ordenacionais de natureza ambiental, caber-lhes-á também a apreciação da impugnação das medidas cautelares relacionadas com a prática do respetivo ilícito contra-ordenacional
Nº Convencional:JSTA000P29289
Nº do Documento:SAC20220309010
Recorrente:ECOLEZIRIA - EMPRESA INTERMUNICIPAL PARA TRATAMENTO DE RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos

1. Por despacho do Inspetor-Geral da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, proferido no âmbito do procedimento contraordenacional NUI/MA/000006/20...., datado de 30 de Setembro de 2020 e acompanhado de mandado de 20 de Outubro de 2020, foi determinado, ao abrigo do artigo 41.º da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, que a impugnante Ecoleziria – Empresa Intermunicipal para o Tratamento de Resíduos, E.I.M desse cumprimento às seguintes medidas:
«a) De imediato, cesse a receção de resíduos na instalação designada de "Aterro Sanitário ...", independentemente da operação a que se destinem, atendendo a que a instalação não detém qualquer licença válida para o efeito;
b) No prazo máximo de 15 dias úteis, a contar da data de notificação do mandado, proceda ao encaminhamento dos resíduos identificados na alínea a) do ponto II para operador de gestão de resíduos devidamente autorizado à sua receção;
c) No prazo máximo de 30 dias úteis a contar da data de notificação do mandado, proceda ao encaminhamento dos resíduos indiferenciados na alínea b) do ponto II para operador de gestão de resíduos devidamente autorizado à sua receção;
d) No prazo máximo de 35 dias úteis a contar da data de notificação do mandado, envie a esta Inspeção-Geral um relatório das ações desenvolvidas, com registo fotográfico e evidências do encaminhamento dos resíduos para destino autorizado para a sua receção."
Notificada, Ecoleziria – Empresa Intermunicipal para o Tratamento de Resíduos, E.I.M, requereu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria uma providência cautelar contra a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, pedindo a suspensão de eficácia “do acto que determinou a aplicação de medidas preventivas, em concreto o acto administrativo proferido no âmbito do procedimento contraordenacional UI/MA/000006/20.... (…), datado de 30.9.2020, acompanhado de mandado de 20.10.2020” ,“como preliminar da acção administrativa de impugnação”.
Por despacho Saneador-Sentença de 14 de Dezembro de 2020, proferido no processo n.º 917/20...., o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria julgou-se incompetente em razão da matéria e, atribuindo a competência à jurisdição comum, absolveu a entidade requerida da instância.
Entendeu, em suma, que, pertencendo à jurisdição comum a competência para conhecer da impugnação da aplicação de sanções contra-ordenacionais, caber-lhe-á também a apreciação das questões relativas à decisão administrativa que adoptou medidas cautelares, ou de qualquer outra medida tomada no processo.
Em 12 de Novembro de 2020, Ecoleziria – Empresa Intermunicipal para o Tratamento de Resíduos, E.I.M, veio impugnar o despacho de 30 de Setembro de 2020 no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Genérica de Almeirim, nos termos do disposto nos artigos 55.º e 59.º do RGCO (Regime Geral das Contraordenações, Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).
Em 25 de Janeiro de 2021, o Ministério Público junto desse Tribunal pronunciou-se pela rejeição liminar da impugnação, com fundamento em incompetência material dos tribunais judiciais.
Para o efeito, e em síntese, sustentou que, uma vez que o processo de impugnação judicial apenas está previsto para decisões de autoridades administrativas que se consubstanciem na aplicação de uma coima, nos termos do artigo 59.º, n.º 1, do RGCO, a reacção jurídica a um acto administrativo que não se traduza nessa aplicação deverá ser dirigida aos tribunais administrativos.
Notificada para se pronunciar, a impugnante reiterou o entendimento de que cabia aos Tribunais Judiciais a competência para conhecer da causa.
Por decisão de 6 de Dezembro de 2021, o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Genérica de Almeirim julgou-se materialmente incompetente, em razão da matéria, atribuindo a competência à jurisdição administrativa.
Para assim decidir, o Tribunal considerou que, estando em causa a aplicação de medidas a que se refere a segunda parte do n.º 1 do artigo 41.º da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais (“quando estejam em causa a saúde, a segurança das pessoas e bens ou o ambiente”) e não medidas tomadas no âmbito de processo contraordenacional, a jurisdição administrativa é a competente para a ação, nos termos dos artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 4.º, n.º 1, alíneas b) e k), do ETAF.
Concluiu suscitando a resolução do conflito negativo de competência.
Os autos foram remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos.
Por despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi determinado que se seguissem os termos da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).

2. Cumpre, assim, definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio em causa caberá aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.
Os factos relevantes constam do relatório.

3. Está apenas em causa saber se a apreciação da presente providência cautelar cabe no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal ou na competência dos tribunais judiciais e, resolvida esta dúvida, determinar qual é o tribunal concretamente competente.
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes”.

4. No conjunto da organização judiciária, os tribunais judiciais têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto); a jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do respectivo. O que implica, em geral, que se comece por verificar se a causa de que se trate tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea l), do ETAF (na redação resultante da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias”.
Recorde-se que a competência se afere pela lei vigente à data da propositura da causa – n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

5. No caso dos autos, está em causa a impugnação de uma decisão administrativa que determinou a aplicação de medidas cautelares à impugnante, ao abrigo do disposto na al. g) do n.º 1 do artigo 41.º da Lei n.º 50/2006, de 28 de Agosto (Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais (LQCOA)), proferida no âmbito do processo contraordenacional NUI/MA/000006/20...., que atribui à autoridade administrativa a competência para a «g) Imposição das medidas que se mostrem adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infração e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma.”, quando tal se mostre “necessário para a instrução do processo de contraordenação ambiental ou quando estejam em causa a saúde, a segurança das pessoas e bens e o ambiente”.
O regime geral das contraordenações é subsidiariamente aplicável às “contraordenações ambientais e do ordenamento do território” (n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 50/2006).
Ora, resulta do disposto no n.º 1 do artigo 55.º, do n.º 1 do artigo 59.º e do artigo 61.º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) que “As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem” (n.º 1 do artigo 55.º), sendo competente para conhecer dessa impugnação o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infração
Compulsada a decisão administrativa impugnada, verifica-se que dela consta o seguinte:
lI- Dos Factos
a) No decorrer da inspeção constatou-se que na célula do aterro estavam a ser depositados resíduos urbanos (fotografias 4 a 9, anexas à 1/04437/...) numa das banquetas do aterro, sobre as terras de cobertura, não obstante o aterro não se encontrar licenciado para o efeito, para além da sua capacidade se encontrar esgotada, em termos da tonelagem de resíduos admissíveis. Estes resíduos, que incluíam resíduos biodegradáveis, encontravam-se desprovidos sem qualquer cobertura, potenciando assim a transmissão de doenças através de vetores, na medida em que se tratando de resíduos urbanos podem conter ou gerar germes patogénicos de doenças transmissíveis.
b) Quanto à área de armazenagem dos RCD e dos monstros (fotografias 1 a 3, anexas à 1/04437/...), a mesma está desprovida de impermeabilização e sistema de recolha e tratamento de águas potencialmente contaminadas, resultantes da percolação das águas da chuva pelos resíduos, infiltrando-se no solo e consequentemente nos lençóis freáticos.”.
Acresce que, a par da alusão ao disposto no art. 9.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, consignou-se, para efeitos de aplicação das medidas impostas, a circunstância de ser “considerada a gravidade ambiental da situação detetada”.
Dispunha o n.º 3 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 178/2006 (Regime Geral da Gestão de Resíduos, diploma entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 102/2020, de 10 de Dezembro), que “São igualmente proibidos o abandono de resíduos, a incineração de resíduos no mar e a sua injecção no solo, a queima a céu aberto nos termos do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril, bem como a descarga de resíduos em locais não licenciados para realização de tratamento de resíduos.”, sendo que o n.º 1 do artigo 67.º qualificava como contraordenação ambiental muito grave a violação destas proibições.
Assim, considerando os factos enunciados no despacho impugnado e o processo no âmbito do qual foi proferido (procedimento contraordenacional NUI/MA/000006/20....), estará em causa a eventual prática de uma contra-ordenação de natureza ambiental.
Consequentemente, não se tratando, nem da violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, nem de ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias, fica afastada a previsão do art. 4.º, n.º 1, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Desta forma, e em primeiro lugar, estando em causa matéria de ilícito de mera ordenação social, a competência para a apreciação da prática da infração compete à jurisdição comum, nos termos dos mencionados artigos 55.º, 59.º e 61.º do RGCO e 130.º, n.º 2, alínea d), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto; em segundo lugar, considerando a ligação entre a decisão impugnada e a instrução de um processo de contraordenação ambiental, tem plena aplicação a orientação definida, por exemplo, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Novembro de 2007, www.dgsi.pt, proc. n.º 0689/07. Segundo a qual “A impugnação das medidas cautelares relacionadas com o ilícito contra-ordenacional tem de ser feita nos Tribunais comuns por serem estes os competentes para conhecer da aplicação de sanções contra ordenacionais e das medidas acessórias ou cautelares que lhe estão associadas” (ponto I do respectivo sumário).
Mais recentemente, ainda que numa situação não exatamente similar, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de Maio de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 0474/20.3BELLE :“(…) quer porque, como bem defende Licínio Lopes, a atribuição da competência aos tribunais administrativos outorgada pela atual alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF não pode ser vista como apenas de “blocos”, “segmentos” ou “aspetos” parcelares do processo contraordenacional em matéria de urbanismo, quer porque a intimação para prestação de informações também se assume, materialmente, aqui, como uma reação à decisão da Administração no âmbito de tal processo, nos mesmos termos do que qualquer outra das referidas e abrangidas pelo art. 55º do DL nº 433/82, não há qualquer razão para, atribuindo aos tribunais administrativos a competência para a impugnação da decisão final aplicativa de coima, a competência para a sua execução e a competência, em geral, para sindicar quaisquer decisões, despachos e demais medidas tomadas ao longo desse processo contraordenacional, ficasse de fora apenas a competência para reagir contra uma alegada falta ou defeituosa prestação de informação devida.
Como salienta Licínio Lopes, também aqui resultaria incompreensível a solução de que o arguido, ou interessado, tivesse que se dirigir aos tribunais administrativos para sindicar, em geral, as decisões tomadas ao longo e no final do processo contraordenacional em causa, mas já tivesse que se dirigir aos tribunais comuns (designadamente, aos criminais, como defendido pelo Recorrente) para sindicar uma atitude ou decisão tomada no mesmo processo contraordenacional relativamente ao seu direito de informação ou de acesso aos autos. E, de todo o modo, sempre a solução resultaria contrária a uma interpretação conjugada dos arts. 4º nº 1 l) do ETAF e 55º nºs 1 e 3 e 61º nº 1 do DL nº 433/82.
Assim, seguindo a orientação perfilhada pelo citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Novembro de 2007, uma vez que a competência para conhecer da aplicação de sanções contra-ordenacionais compete aos Tribunais Comuns, caber-lhes-á também a apreciação da impugnação das medidas cautelares relacionadas com a prática do respetivo ilícito contra-ordenacional.

6. Nestes termos, decide-se que a competência para a apreciação da presente impugnação judicial compete aos Tribunais Judiciais; concretamente, ao Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Genérica de Almeirim, dada a localização da eventual infracção em causa.

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.


Lisboa, 9 de Março de 2022. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.