Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:049/19
Data do Acordão:03/05/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:FUNDO DE RESOLUÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL DE ENTIDADES PÚBLICAS
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Sumário:I - A competência da Jurisdição Administrativa prevista no nº2 do artigo 4º do ETAF tem como pressuposto que se esteja perante litígios «nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligadas por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade»;
II - Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de uma acção instaurada por depositante em banco intervencionado, contra este banco, o respectivo gestor de conta, o banco de transição e o «Fundo de Resolução», sendo pedida a condenação solidária de todos os réus, em que sejam imputados aos dois primeiros a violação de deveres inerentes ao exercício da actividade bancária ou à mediação de títulos mobiliários, e em que o banco de transição é demandado, por se lhe imputar a qualidade de sucessor do banco intervencionado e o «Fundo de Resolução» apenas na qualidade de titular do capital do banco de transição.
Nº Convencional:JSTA000P25709
Nº do Documento:SAC20200305049
Data de Entrada:10/14/2019
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA - JUIZ 18 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
AUTOR: A................
RÉU: B...................., SA E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 49/19
I. Relatório

1. A…………….. - devidamente identificado nos autos - intentou no «Juízo Central Cível de Lisboa» acção declarativa, sob a forma comum, contra o B………., S.A. [B……], C………., S.A. [C…..], BANCO DE PORTUGAL [BdP], COMISSÃO DE MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS [CMVM], FUNDO DE RESOLUÇÃO [FdR], e D………., pedindo a sua condenação solidária a pagarem-lhe 96.000,00€, quantia esta acrescida de 21.053,37 a título de juros de mora vencidos, e os vincendos desde a data da citação até integral pagamento.

2. Responsabiliza os réus por esse «pagamento» com base em alegada violação dos «deveres de informação, diligência e lealdade», ou, e se antes se entender, com base na «nulidade do contrato de intermediação financeira», por carência de forma legal. Relativamente ao réu FdR, o único fundamento invocado, como causa de pedir, é o de ser accionista único do C………, e, alegadamente, responsável máximo pela «efectivação do pagamento» das quantias reclamadas. Por último, ao BdP e à CMVM são apontadas, fundamentalmente, «violações de deveres de supervisão».

3. Em sede de saneador, o Tribunal Judicial supra identificado proferiu sentença que julgou parcialmente procedente a excepção dilatória da sua incompetência material, e declarou-se incompetente para conhecer do pedido formulado contra os demandados BdP, CMVM, e FdR, por ter entendido o «pedido principal» como suportado em responsabilidade extracontratual, «absolvendo-os da instância no tocante ao mesmo». Mas essa sentença considerou o tribunal competente para conhecer dos pedidos subsidiários relativamente a tais réus, e, ademais, julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao réu B………. - em liquidação -, e absolveu os réus C………. e D……….. de todos os pedidos em relação a todos os réus.

Desta sentença foi interposta pelo autor apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual - não obstante julgar improcedente a apelação - revogou o segmento da decisão recorrida que conheceu da incompetência parcial do tribunal judicial, e declarou-o «incompetente em razão da matéria para conhecer de todos os pedidos em relação a todos os réus».

4. Não se conformando com o teor desta decisão, o autor dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça [STJ].

O STJ - através da formação a que alude o nº3 do artigo 672º CPC - decidiu não admitir a revista, por se tratar de questão cujo conhecimento cabe exclusivamente ao Tribunal de Conflitos - nos termos do artigo 101º nº2 do CPC -, e para este remeteu os autos.

5. Recebidos os autos no Tribunal de Conflitos, o Ministério Público pronunciou-se no sentido deste conflito ser resolvido mediante a confirmação do acórdão da 2ª instância quanto aos réus BdP e CMVM, e a sua revogação na parte restante, devendo ser atribuída a competência material para conhecer do pedido contra o B……., C………, o FdR, e a gestora de conta D……., à jurisdição comum.

6. Colhidos que foram os vistos legais, importa apreciar e decidir, fixando-se em definitivo qual das jurisdições é a competente para julgar a presente acção.

II. Apreciação

1. A questão colocada a este Tribunal de Conflitos reconduz-se apenas a definir se a «competência em razão da matéria» para a apreciação do litígio vertido na acção em causa caberá aos tribunais da jurisdição comum, ou aos tribunais da jurisdição administrativa, uma vez que duas instâncias da «jurisdição comum» já se pronunciaram pela competência da jurisdição administrativa [artigo 101º, nº2, do CPC].

Importa, assim, apreciar a questão da competência material, que vem suscitada em termos de pré-conflito, relativamente aos demandados B………., C………., BdP, FdR, CMVM, e D……….

2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo [artigo 202º da CRP], sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e actual 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e aos tribunais administrativos a competência para «administrar a justiça nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4º do ETAF» [artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].

Assim, na sequência das normas constitucionais e legais, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais, ou da chamada jurisdição comum assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver, entre outros, AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95].

A cada uma destas duas jurisdições, comum e administrativa, caberá, portanto, um determinado «quinhão» do poder jurisdicional que, em bloco, pertence aos «tribunais», sendo que o mesmo é determinado essencialmente em função das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional.

E, como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da «configuração da relação jurídica controvertida», ou seja, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos.

Destarte, a competência em razão da matéria é questão que se resolve face ao modo como o autor estrutura a causa, como exprime a sua pretensão em juízo, sem cair na tentação de antecipar, para este momento, a qualificação jurídica dos factos ou a indagação do direito [ver AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, processo nº08/14].

3. No presente «pré-conflito», ambas as instâncias dos tribunais da «jurisdição comum» fizeram apelo às seguintes normas do actual ETAF:


Artigo 4º do ETAF - Âmbito da jurisdição

1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:

[…]

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto da alínea a) do nº4 do presente artigo;

[…]

2- Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligadas por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.

[…]

4. Não há dúvida de que a autora alicerça o «pedido» formulado na sua petição inicial em responsabilidade contratual e em responsabilidade extracontratual. Para ela, não foi cumprido o contrato de depósito bancário celebrado com o B………, e é nulo o contrato de intermediação financeira também com ele celebrado, pois foi - alega - induzida a tal por conduta ilícita desse réu e da sua funcionária, que não agiu com a exigida lealdade e transparência. A autora considera que perante ela, em função deste último tipo de responsabilidade, deve responder solidariamente o C……, porque sucedeu ao B…….., e o FdR, porque por este passa a possibilidade de pagar os montantes e juros que peticiona - artigos 153º-B, 153º-C, e 145-AB, do «Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras» (RGICSF) aprovado pelo DL nº298/92, de 31.12, na sua actual redacção]. A demanda do BdP e da CMVM assenta - essencialmente - na imputação de condutas - activas e omissivas - alegadamente violadoras de «deveres de supervisão bancária» impostos no contexto da resolução do B………..

É esta, pois, a estrutura da presente causa, o desenho jurídico da pretensão, tal como o autor a introduz em juízo. Para aferir da competência material de uma ou outra das jurisdições apenas isto interessa. A seu tempo, o tribunal que for competente apreciará, e decidirá, de acordo com o regime jurídico que deva ser aplicado aos factos provados.

5. Ora, a respeito desta questão de competência material pronunciou-se já este Tribunal de Conflitos, em acórdãos muito recentes, e relativamente a litígios com idênticos contornos, no sentido da atribuição da competência material à jurisdição comum no que concerne à demanda do B………. e sua funcionária, do C……… e do FdR, e à jurisdição administrativa no tocante à demanda do BdP e CMVM - ver AC do Tribunal de Conflitos de 14.02.2019, Conflito nº031/18; e AC do Tribunal de Conflitos de 14.02.2019, Conflito nº046/18; AC do Tribunal de Conflitos de 06.06.2019, Conflito nº02/209; AC do Tribunal de Conflitos de 21.11.2019, Conflito nº23/19.

Não poderemos deixar de convocar, aqui, tal orientação jurisprudencial, sob pena de ser posta em causa a relativa previsibilidade e segurança na aplicação do direito, bem como o próprio princípio da igualdade [artigos 13º da CRP e 8º, nº3, do CC].

Assim, dispensando-nos do labor de engendrar novo texto, porque desnecessário perante a identidade da questão e a total anuência ao arrazoado desses acórdãos, passamos a citar parte da argumentação apresentada no conflito nº046/18 que assumimos como nossa:

[…]

«Portanto, no caso em apreço, da análise do pedido formulado na acção, e das respectivas causas de pedir resulta que o autor acciona a responsabilidade civil contratual e extracontratual das 1ª a 3ª RR, pelo que o conhecimento do pedido, contra estas dirigido, incidindo sobre relações inequivocamente privatísticas, compete à jurisdição comum, por não dever nem poder ser deduzido na jurisdição administrativa. Conclusão que se estendeu à 3ª R, C…..., porque o autor, embora sem a envolver na prática de qualquer dos factos ilícitos em que fundamenta a constituição da obrigação de indemnizar das duas primeiras RR, estrutura a respectiva responsabilidade na sua alegada qualidade de sucessora nos direitos e obrigações da 1ª R [B………… SA].

Quanto aos demais réus, BdP, CMVM, e FdR, são todos pessoas colectivas de direito público, como resulta do artigo 1º da Lei Orgânica do primeiro [Lei nº5/98, de 31.01], do artigo 1º dos Estatutos da segunda [DL nº5/2015, de 08.01] e, quanto ao último, do artigo 153º-B do RGICSF [DL nº298/92, de 31.12, com a actualização da Lei 23-A/2015, de 26.03].

Ora, relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da acção feita pelo autor, suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu, e que fundam os direitos que pretende exercer - consistentes no ressarcimento de tais danos - em actos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida, se fundamentam na falta de cumprimento dos deveres - essencialmente de supervisão - que sobre eles impendiam, tendo em conta as funções determinadas pela lei.

Especificamente quanto ao FdR, que vem demandado, apenas, com base na titularidade do capital do C………. - e, igualmente, sem que lhe seja imputado qualquer concreto facto ilícito -, não só essa titularidade tem origem na aludida medida de resolução bancária decretada pelo BdP, como a sua responsabilidade apenas se poderia estribar na sua qualidade de instrumento [dependente] da entidade pública junto da qual funciona para lhe prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução pela mesma adoptadas [ver artigo 153°-C do citado RGICSF], ou seja, no caso em apreço, para a execução das deliberações do BdP concernentes à medida de resolução tomada em relação ao B……….. no exercício de funções públicas e na prossecução de um interesse público.

Todavia, no tocante a este réu, considerando o estritamente alegado quanto à fundamentação da sua demanda - ser ele o único detentor do capital do C……… - e o uniformemente decidido nos precedentes arestos deste Tribunal [acórdãos de 22.03.2018 (conflito 56/17), 22.03.2018 (conflito 50/17), 17.05.2018 (conflito 52/17), 07.06.2018 (conflito 61/17) e 08.11.2018 (conflito 20/18), acessíveis na base de dados da dgsi.pt.], deve concluir-se que também cabe aos tribunais judiciais a competência para conhecer a pretensão deduzida contra o mesmo.

É certo que, como supra foi relatado, o autor formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº2 do artigo 4° do ETAF, para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR [particulares], designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos [Mário Aroso de Almeida (em "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 3ª edição, páginas 253-254) refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de acções de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objecto do litígio].

Como uniformemente foi ponderado nos arestos deste Tribunal precedentemente referenciados, a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513º do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar – “de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária” [citado acórdão de 22.03.2018 (conflito 56/17)]

6. Ressuma do exposto, que, no conflito em apreço, apenas deverá ser mantido em parte o decidido pelas instâncias da jurisdição comum, mormente pelo acórdão da Relação de Lisboa, já que, embora sendo da competência material da jurisdição administrativa o conhecimento da acção relativamente aos réus BdP e CMVM, por estar em causa questão emergente de relação jurídica administrativa, não o é o que toca aos demais réus – B……., C…….., FdR, e D………. - por estar em causa relação jurídica de direito privado.

III. Decisão

Em face do exposto, decidimos «revogar parcialmente» a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, e, em conformidade, atribuir a competência material à jurisdição comum para conhecer do objecto da acção relativamente aos réus B…………, C………, FdR, e D………., mantendo-se no restante.

Sem custas.

Lisboa, 5 de Março de 2020. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Júlio Manuel Vieira Gomes – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Francisco Manuel Caetano – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Manuel Tomé Soares Gomes.