Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:040/13
Data do Acordão:06/26/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:RAUL BORGES
Descritores:ARRENDAMENTO.
RENDA APOIADA.
RESOLUÇÃO DE CONTRATO.
FALTA DE PAGAMENTO
MORA DO DEVEDOR
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Sumário:*
Nº Convencional:JSTA000P17717
Nº do Documento:SAC20140626040
Data de Entrada:05/31/2013
Recorrente:EMGHA-GESTÃO DA HABITAÇÃO SOCIAL DE CASCAIS, E.M., S.A. NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE OS TRIBUNAIS COMUNS E O TAF DE SINTRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº. 40/13

EMGHA - Gestão da Habitação Social de Cascais, E.M., S.A., com sede em Cascais, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, contra B………, com última morada conhecida no Bairro ………, Praça ………, n.º ……, ex Lote ……, ….., 2785-……., São Domingos de Rana, acção administrativa comum, sob a forma de processo sumário, nos termos e fundamentos de facto seguintes:
1 - A a. é gestora do parque habitacional do Município de Cascais, legítimo proprietário do fogo habitacional que corresponde ao Bairro ……., Praça ……., n.º ….., …….., em S. Domingos de Rana, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de S. Domingos de Rana.
2 - Por contrato celebrado em 12 de Novembro de 1999, a a. deu de arrendamento para habitação do r. a fracção autónoma identificada no art. 1º antecedente, nos termos estabelecidos no respectivo contrato de arrendamento.
3 - Tal fogo foi cedido para habitação do r. pelo prazo de 1 (um) ano, com início em 01.02.2000, renovando-se sucessivamente nos termos da lei, conforme estabelecido na cláusula 2ª do referido contrato de arrendamento.
4 - A renda convencionada inicialmente foi de Esc: 840$00 (oitocentos e quarenta cscudos), correspondente a € 4,19 (quatro euros e dezanove cêntimos), conforme estabelecido na cláusula 3ª do referido doc. n.º 2.
5 - A renda seria paga adiantadamente na tesouraria da Câmara Municipal de Cascais - actualmente na tesouraria da a. - no primeiro dia útil do mês a que respeitasse, conforme cláusula 5ª
6 - Cumpre relevar que o mencionado contrato foi celebrado no regime de Renda Apoiada, estabelecido no Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio, conforme respectiva cláusula 1ª.
7 - Em conformidade com tal diploma legal, a renda é calculada objectivamente em função do rendimento do arrendatário e do seu agregado familiar.
8 - Em virtude das actualizações operadas, a renda foi ajustada gradualmente, de acordo com o rendimento do r. (cfr. cláusula n.º 4.3), sendo que na presente data a renda corresponde a €13,96 (treze euros e noventa e seis cêntimos).
9 - Sucede, porém, que o r. deixou de usar efectivamente o locado perdurando a sua ausência há mais de um ano.
10 - Com efeito, a a. efectua regularmente visitas aos fogos atribuídos aos arrendatários com vista, por um lado, a avaliar a respectiva situação social e, por outro lado, a verificar as condições em que os locados se encontram.
11 - Acresce que vários técnicos da a. comprovaram pessoalmente e em diversas tentativas de visitas ao locado que o r. não reside efectivamente no locado desde, pelo menos, Maio de 2008, conforme adiante melhor se descreverá.
12 - Desde, pelo menos, Maio de 2008, que o r. não pernoita no fogo em apreço.
13 - Assim como desde, pelo menos, Maio de 2008, que o r. não recebe no fogo em apreço os seus amigos e/ou familiares.
14 - Da mesma forma que desde, pelo menos, Maio de 2008, que o r. não confecciona nem toma no fogo as suas refeições.
15 - Na verdade, se o fogo estivesse a ser usado efectivamente pelo r. e aí este se albergasse, dormisse e tomasse as suas refeições, certamente existiriam registos de consumo de água e gás, comprovativos de um uso regular, o que não sucede.
16 - Se o fogo constituísse o centro da vida familiar e social do r. e aí este residisse, certamente os colaboradores da a. conseguiriam contactá-lo e visitá-lo no locado, o que também não sucedeu, conforme atestam os relatórios de visita efectuados.
17 - A verdade é que é o próprio r. que tem vindo a indicar que não é no locado que tem o centro da sua vida familiar e social, conforme se prova pela Declaração emitida em 27 de Fevereiro de 2008 pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional da Segurança Social, comprovativa que o r. reside na Rua …….., Lote ……., n.º ……, ………., no Monte da Caparica, conforme doc. n.º 38, cuja cópia, se protesta juntar.
18 - Inclusivamente os filhos do r. foram matriculados nos anos lectivos de 2008/2009 num estabelecimento escolar no Monte da Caparica.
19 - Circunstância que se mantém desde, pelo menos, Maio de 2008 até à presente data, conforme foi atestado pelos vizinhos do r. e colaboradores da a..
20 - Mais, em virtude do r. ter deixado residir no locado, a a. viu-se obrigada a instaurar uma acção de despejo com fundamento no respectivo não uso, no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, que correu termos no 1º Juízo Cível, sob o n.º 1332/10.5TBCSC.
21 - Sucede que por sentença proferida em 02.08.2011, o 1º Juízo Cível do Tribunal de Comarca de Cascais julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer o pedido da a., conforme cópia da sentença que se junta como doc. n.º 41.
22 - Tendo o 1º Juízo Cível do Tribunal de Comarca de Cascais considerado que a jurisdição administrativa seria, ao abrigo do disposto no art. 4º, alínea f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competente para apreciar o pedido da a..
23 - Acresce que as rendas devidas pelo r. deixaram de ser pagas desde Setembro de 2011, estando em dívida actualmente as rendas referentes a:
(i) Setembro a Dezembro de 2011 (€ 55,84);
(ii) Janeiro e Março de 2012 (€41,88).
24 - Na presente data encontra-se em dívida a quantia total de € 97,72 (noventa e sete euros e setenta e dois cêntimos), correspondente a 7 (sete) rendas em atraso.
Como fundamento da sua pretensão invocou a Autora a cláusula 17ª do contrato de arrendamento, segundo a qual “em tudo o que for omisso aplicar-se-ão as disposições, em primeiro lugar, do Regime da Renda Apoiada, e, subsidiariamente, as disposições da lei geral, a Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) e que alterou as disposições do Código Civil”.
Invoca como fundamentos de direito, a resolução do contrato por falta de pagamento de rendas e não uso do locado - artigo 1038.º, alínea a) - quanto à falta de pagamento de rendas - artigo 1083.º, n.º 2, alínea d), em conjugação com o artigo 1072.º - quanto ao não uso - e artigo 1041.º, n.º 1, como aqueles do Código Civil, sendo este quanto à mora do locatário, e ainda o artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio.
Defende a competência do TAF de Sintra, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Termina pedindo que a acção seja julgada procedente, por provada e, consequentemente, seja:
a) declarado resolvido o contrato de arrendamento em causa, com fundamento no não uso efectivo do locado pelo r. há mais de um ano;
b) o Réu condenado a entregar o locado à A., totalmente livre e devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação, tal como o encontrou;
c) o Réu condenado a pagar à A. a quantia correspondente ao total das rendas vencidas e não pagas, acrescidas da indemnização a que se refere o art. 1041º, n.º 1, do Código Civil, na quantia total de € 146,58;
d) o Réu condenado a pagar à A. o montante devido a título de rendas vincendas, desde a data da apresentação a juízo da p.i. até à data em que se considerar resolvido o contrato de arrendamento em causa;
e) o Réu condenado a pagar à A. a indemnização devida pela ocupação de pessoas ou bens do locado desde a data em que o contrato se considerar resolvido até à data da efectiva restituição do locado, a qual deverá corresponder ao respectivo preço técnico.
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A Autora EMGHA - Empresa de Gestão do Parque Habitacional do Município de Cascais intentara anteriormente no Tribunal da Comarca de Cascais, acção declarativa, com processo comum sumário, contra o mencionado B…….., pedindo se declarasse resolvido o contrato de arrendamento celebrado com o Réu e se decretasse o despejo do locado, condenando-se o Réu a entregar-lhe o arrendado livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a pagar-lhe determinadas quantias em dinheiro.
Alegou então em síntese, que intervinha na qualidade de gestora do parque habitacional do Município de Cascais, legítimo proprietário da fracção dada de arrendamento ao R., por contrato celebrado em 12 de Novembro de 1999, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio, sucedendo que o R. deixara de residir no arrendado e de pagar a renda fixada.
A acção com o n.º 1332/10.5TBCSC foi distribuída ao 1.º Juízo Cível, tendo a Exma. Juíza, por despacho de 2 de Agosto de 2011, julgado verificada a excepção dilatória da incompetência do Tribunal, em razão da matéria, para preparar e proferir decisão nos autos e, consequentemente, absolveu o Réu da instância.
Respiga-se da fundamentação:
“A competência do Tribunal, enquanto pressuposto processual, afere-se pela natureza da relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial, isto é, do confronto entre a causa de pedir invocada e a pretensão deduzida.
Por seu turno, compete aos Tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais - artigos 212º nº 3 da CRP e 1º nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Ora, no caso dos autos, tendo presente a relação contratual estabelecida, mormente sob a égide do regime de renda apoiada, bem como a natureza do interveniente Município, através da entidade gestora do seu parque habitacional, a ora A., entende-se que o fundamento da obrigação cujo reconhecimento vem peticionado nos autos assenta nos pressupostos a que alude o artigo 4º nº 1 al. f), do ETAF, na parte em que dispõe que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto “questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo (…)”
Como se refere no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 08-06-2006 (Processo nº 01642/06, relatado por Xavier Forte, integralmente disponível em wwwdgsi.pt), “(...) o que está em questão é a aplicação do regime de renda apoiada aos fogos habitados pelos recorrentes, regime este regulado no DL nº 166/93, de 07-05. E este regime, ao contrário do sustentado pela recorrida, não é um regime de direito privado. Não é fixado por acordo das partes, ao contrário do que sucede com os regimes de renda livre e de renda condicionada - artº 77º, do RAU, aprovado pelo DL nº 321-B/1990, de 15-10. Tem por objecto «todas as habitações destinadas a arrendamento de cariz social, quer tenham sido adquiridas ou, construídas pelo Estado, quer pelas autarquias locais... (preâmbulo do DL nº 166/93, de 07-05, § 2º). E estabelece prerrogativas de autoridade que não existem no arrendamento de natureza jurídico-privada. (...) Tais prerrogativas compreendem-se face aos fins de natureza social que a recorrida prossegue, cooperando com o Estado na oferta de habitação a custos suportáveis para os «estratos de população vulnerável». (...) Daí ser competente, em razão da matéria, o Tribunal Administrativo e Fiscal, para conhecer de mérito, já que o acto que determina a aplicação de um regime da renda apoiada, previsto no DL nº 166/93, é um acto administrativo, pelo que sindicável naquele tribunal (...)” - no mesmo sentido se decidiu no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 01-06-2006 (Processo nº 01618/06, relatado por Rogério Martins, integralmente disponível na mesma base de dados).
Ainda, e como se decidiu no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/10/2010 (Processo nº 2892/05.8TMSNT.L1-8, relatado por Luís Correia de Mendonça), perante o regime de renda aplicável (a qual não é fixada por acordo das partes, nos termos do artigo 2º nº 1 do citado diploma) e de demais prorrogativas conferidas à entidade locadora (artigos 9º nºs 2 e 3 e 10º nºs 2 e 3, ambos do mesmo diploma), “não se pode afirmar estarmos na presença de normas de conteúdo civilística. Estamos antes em face de normas de conteúdo administrativo, ditadas por imperativos de ordem pública. As referidas prerrogativas compreendem-se tendo em conta os fins sociais prosseguidos pelas entidades locadoras (...)”, concluindo-se, pois, conforme consta do respectivo sumário (da autoria do Relator), que “são competentes os tribunais administrativos e não os comuns, para conhecerem das acções em que um Município peça a resolução de um contrato de arrendamento social celebrado com um particular e a condenação deste no pagamento das rendas sujeitas ao regime do DL n.º 166/93, de 7 de Maio (regime de renda apoiada)”- vide, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/5/2010 (Agravo nº 959/06. 6ª Secção, Processo nº 959/06.4TMSNT.L1, relatado por Gilberto Martinho dos Santos Jorge).
E, mais recentemente, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/5/2011 (Processo nº 8272/09.9TBCSC.L1-2, relatado por Ezaguy Martins, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf, que “O complexo normativo e contratual que regula os contratos de arrendamento no regime de renda apoiada, configura um regime jurídico de regras específicas que não podem deixar de ser qualificadas como de direito público, uma vez que têm em vista contratos celebrados por entidades que gerem recursos públicos para a satisfação de necessidades colectivas. Como tal, é da competência dos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções em que estejam em causa questões relativas à interpretação, validade e execução de tais contratos”.
Não colhe, assim, a argumentação aduzida pela A. a fls. 52 e seguintes.
Entende-se, pois, que a ordem administrativa é a competente para conhecer da presente acção, o que importa a exclusão da competência (residual) deste Tribunal.
Neste entendimento, ao abrigo das normas legais citadas e, ainda, do disposto nos artigos 101º, 102º, 103º, 105º, 288º nº 1 al. a) e 493º nºs 1 e 2 e 494º al. a), todos do CPC, verifica-se a incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da matéria, que constitui excepção dilatória de que se conhece ex officio, e que determina a absolvição do R. da instância”.
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Por despacho de fls. 94 foi entendido obedecer a citação do Réu às formalidades legais e ordenada a notificação nos termos do artigo 484.º, n.º 2, do CPC.
Apenas a Autora apresentou a alegação de fls. 99 a 104, defendendo a total procedência da acção.

Por decisão do Exmo. Juiz junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, de fls. 107 a 142, foi julgado “incompetente este tribunal administrativo de círculo de Sintra, em razão da matéria e da jurisdição, para conhecer da presente acção e do respectivo condenatório, por ser competente o tribunal comum, em face da natureza privada da relação jurídica contratual concreta e das consequentes normas; sendo que, para os casos de contratos administrativos públicos de arrendamento para habitação e respectivo despejo sempre seria competente a entidade proprietária do imóvel /Autora, em face das normas especiais que lhe atribuem tal poder de autoridade, e não o tribunal”.
Tendo esta decisão transitado em julgado, foi ordenada a remessa do processo a este Tribunal de Conflitos - artigo 117.º, n.º 1, do Código de Processo Civil - tendo o Magistrado do Ministério Público emitido o douto parecer de fls. 168 a 170, pugnando pela atribuição da competência à jurisdição administrativa, por força do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF, invocando os acórdãos de 25-09-2012, conflito n.º 12/11, de 5-03-2013 e de 14-03-2013, conflitos n.º s 4/13 e 5/13 e ainda de 18-04-2013, conflito n.º 28/12 e de 23-05-2013, conflito n.º 19/13.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir
A questão a dirimir consiste em saber se, para apreciação da acção de onde promana o conflito, é competente a jurisdição comum ou a administrativa.

Apreciando.

Em causa nos autos está a determinação da competência para apreciação de questões suscitadas no âmbito de um contrato de arrendamento celebrado em 12 de Novembro de 1999, entre a Autora e o Réu, de uma habitação social pertencente ao parque de habitação social do Município de Cascais gerido pela Autora.

Não fora o facto de a Autora locadora ser uma empresa municipal e o contrato de arrendamento inserir-se no arrendamento social celebrado no regime de renda apoiada estabelecido no Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio, e estaríamos perante uma comum acção de despejo, em que são invocados dois fundamentos de resolução do contrato, e cumulados o pedido de resolução com consequente entrega do locado, com o de condenação do réu a pagar rendas vencidas e vincendas e ainda indemnização por mora do locatário, nos termos do artigo 1041.º do Código Civil.
O facto do arrendamento ter sido celebrado em regime de renda apoiada pode fazer toda a diferença.
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A competência do Tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos invocados, conforme jurisprudência há muito sedimentada, como pode ver-se do acórdão do STJ de 20 de Fevereiro de 1990, processo n.º 78.729, BMJ n.º 394, pág. 453, que citando Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 51, acentua que a competência do tribunal comum alcança-se por exclusão de partes.
Mais recentemente, pode ver-se o acórdão de 13 de Março de 2008, proferido no processo n.º 391/08, onde se refere que “para decidir a matéria de excepção da incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a “causa petendi” e também o pedido nos precisos termos afirmados pelo demandante”, o acórdão de 10 de Abril de 2008, proferido no processo n.º 396/08 (a competência em razão da matéria determina-se pelo conteúdo da lide), ou “na dupla vertente da causa de pedir e do pedido”, conforme o acórdão do mesmo dia proferido no processo n.º 845/08.

Estabelece o artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa:
“Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Comentando o preceito, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume II, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, Agosto de 2010, pág. 561, afirmam: “O n.º 1, aditado pela LC n.º 1/89, contém duas normas: (a) na primeira estabelece-se que os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria civil e criminal; (b) na segunda estabelece-se o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, pois ela estende-se a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais”.
Por seu turno, estabelece o artigo 212.º, n.º 3, da CRP:
“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Comentando este preceito, dizem os mesmos Autores, na mesma obra, a págs. 565:
“Aos tribunais administrativos e fiscais compete a justiça administrativa e fiscal, ou seja, o julgamento das acções e dos recursos destinados a dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais (n.º 3). Isto quer dizer que a competência dos tribunais administrativos e fiscais deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns; aqueles são agora os tribunais ordinários da justiça administrativa”.
Mais à frente, a págs. 566/7, afirmam: “Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n.º 3, in fine).
Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art. 4.º)”.
Estabelece o artigo 66.º do Código de Processo Civil que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Daqui, em conjugação com o artigo 211.º, n.º 1, da CRP e artigo 18.º da Lei de Organização do da competência dos tribunais da ordem judicial; por outras palavras, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional.
No que tange à competência dos tribunais administrativos e fiscais importa ter em atenção os preceitos aplicáveis do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais -
ETAF - aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (alterada pelas Leis n.º 4- A/2003, de 19 de Fevereiro; 107-D/2003, de 31 de Dezembro; 1/2008, de 14 de Janeiro;
2/2008, de 14 de Janeiro; 26/2008, de 27 de Junho; 52/2008, de 28 de Agosto e 59/2008, de 11 de Setembro).
O artigo 1.º, n.º 1, do ETAF estatui: “Os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.
No artigo 4.º do ETAF enunciam-se, exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do citado artigo 1.º, outras em desconformidade com ela.
O n.º 1, alínea f) do preceito dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
O actual ETAF eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido.
O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - cfr. Vieira de Andrade, A justiça administrativa, 9.ª edição, 103 e Margarida Cortez, Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma, 258 (apud acórdão de 4 de Junho de 2013, conflito n.º 7/13).

Revertendo ao caso concreto.

Importa reter que a causa de pedir, no caso, complexa, dos pedidos formulados radica na celebração de um contrato de arrendamento em regime de renda apoiada, sendo locadora uma empresa municipal e locatário um particular.

O Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio, visou a reformulação e uniformização dos regimes de renda dos imóveis sujeitos ao regime de arrendamento social, “de modo que, desejavelmente, a todas as habitações destinadas a arrendamento de cariz social, quer tenham sido adquiridas ou construídas pelo Estado, seus organismos autónomos ou institutos públicos, quer pelas autarquias locais ou pelas instituições particulares de solidariedade social, desde que com o apoio financeiro do Estado, se aplique um só regime - o regime da renda apoiada -, conforme dispõe o artigo 82.º do Regime do Arrendamento Urbano” aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro.
O diploma, como decorre do artigo 1.º, n.º 1, tem por objecto o estabelecimento do regime de renda apoiada, ficando de acordo com o n.º 2, sujeitos a tal regime os arrendamentos das habitações do Estado, seus organismos autónomos e institutos públicos, bem como os das adquiridas ou promovidas pelas Regiões Autónomas, pelos municípios e pelas instituições particulares de solidariedade social com comparticipações a fundo perdido concedidas pelo estado, celebrados após a entrada em vigor do diploma.
O diploma estabeleceu restrições que encontram o seu fundamento na função social subjacente à cedência das habitações, conferindo à entidade locadora poderes que vão para além dos que se contêm nos arrendamentos de natureza jurídico-privada, como ocorre com o disposto nos artigos 8.º (intervenção no reajustamento dos valores), 9.º, n.º 2 e 3 (determinação do montante da renda com pedidos de documentos e esclarecimentos para instrução e actualização dos processos) e 10.º, n.º 2 e 3 (poderes de transferência do arrendatário no caso de subocupação da habitação arrendada e sanção pelo incumprimento).
Importará respigar do Contrato de arrendamento de 12 de Novembro de 1999, celebrado entre EMGHA, EM, SA e B……., junto de fls. 40 a 44, as cláusulas que respeitem à matéria em causa, maxime, com as violações das obrigações contratuais, falta de pagamento da renda e não uso do locado.
1.ª - O presente contrato de arrendamento é celebrado no regime de Renda Apoiada estabelecido no Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio.
3.ª - A renda mensal é da quantia de Esc. 840$00 calculada nos termos do Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio.
5.ª - A renda é paga adiantadamente na tesouraria da Câmara Municipal de Cascais, no primeiro dia útil do mês a que disser respeito.
12.ª - O 2.º Outorgante obriga-se a conservar em bom estado, como actualmente se encontram, as instalações e canalizações de água, luz, aquecimento, esgotos e demais equipamentos da habitação arrendada, pagando à sua costa todas as reparações, bem como a manter ainda em bom estado os respectivos soalhos, pinturas, vidros, portas, janelas e estores.
17.ª - Em tudo o que for omisso no presente contrato, aplicar-se-ão as disposições do Decreto-lei 166/93, de 7 de Maio e, subsidiariamente, a lei geral.
O Tribunal dos Conflitos considerou no seu acórdão de 25 de Setembro de 2012, proferido no Conflito n.º 12/11, que o regime de renda apoiada estabelecido no Decreto- Lei n.º 166/93, “é claramente um regime de direito público” constituindo as suas normas “regras de direito administrativo”. E como referido foi no acórdão de 5 de Março de 2013, conflito n.º 4/2013, o diploma tem a natureza de norma de direito administrativo. No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos de 3 de Novembro de 2005, n.º 762/2004; de 14 de Março de 2013, n.º 5/2013; 18 de Abril de 2013, n.º 28/2012; de 15 de Maio de 2013, n.º 8/2013, n.º 12/2013, n.º 20/2013 e n.º 23/2013; 23 de Maio de 2013, n.º 10/2013 e n.º 19/2013; 30 de Maio de 2013, n.º 21/2013 e n.º 22/2013; 4 de Junho de 2013, n.º 1/13, n.º 6/13 e n.º 7/13; 25 de Junho de 2013, n.º 21/13; 27 de Fevereiro de 2014, n.º 57/13.

Cabendo à jurisdição administrativa a competência para o conhecimento do pedido de resolução com fundamento na falta de pagamento de rendas, à mesma jurisdição caberá conhecer do outro fundamento, até porque em outros casos de violação de obrigações contratuais fundamento de resolução do arrendamento previstos expressamente no artigo 10.º o respectivo conhecimento caberá à jurisdição administrativa, e porque não faria de todo sentido cindir as pretensões de resolução de um mesmo contrato celebrado entre o Município e um particular.
Aliás, o não uso da habitação pelo ocupante por período superior a seis meses ou pelo agregado familiar por período superior a dois meses está previsto como fundamento para a entidade proprietária determinar a cessação da utilização do fogo na alínea f) do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 21/2009, de 20 de Maio (Diário da República, 1.ª série, n.º 97), a qual trata o regime do arrendamento social, tendo revogado o Decreto n.º 35.106, de 6 de Novembro de 1945.
E de acordo com o n.º 8 do artigo 3.º “Das decisões tomadas ao abrigo dos números anteriores cabe recurso para os tribunais administrativos, nos termos gerais de direito.
Conclui-se assim que o litígio em aberto é subsumível ao artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF, pertencendo a resolução do conflito ao foro administrativo, deferindo-se a competência material aos Tribunais Administrativos.

Decisão

Pelo exposto, decide-se o conflito atribuindo a competência em razão da matéria para o conhecimento da acção, à jurisdição administrativa, no concreto, ao TAF de Sintra.

Não são devidas custas, face à isenção objectiva prevista no artigo 96.º do Regulamento do Supremo Conselho de Administração Pública, aprovado pelo Decreto n.º 19 243, de 16 de Janeiro de 1931).

Lisboa, 26 de Junho de 2014. - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges (relator) - António Políbio Ferreira Henriques - Henrique Manuel da Cruz Serra Baptista - Alberto Augusto Andrade de Oliveira - Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos - António Bento São Pedro.