Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:032/22
Data do Acordão:04/18/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais julgar um litígio no qual se discute o reconhecimento e reivindicação do direito de propriedade sobre o imóvel em questão.
Nº Convencional:JSTA000P30890
Nº do Documento:SAC20230418032
Data de Entrada:12/14/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO ESTE – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE FELGUEIRAS – JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE PENAFIEL
REQUERENTE: AA E OUTRO
REQUERIDO: A..., S.A. (I.P. S.A.)
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA e BB intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Local Cível de Felgueiras, Juiz 2, acção declarativa com processo comum contra A..., SA [agora B..., SA], pedindo que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre um prédio rústico, denominado “...”, identificado nos artigos 2º, 3º e 4 da p.i., que herdaram dos seus pais, devendo a Ré ser condenada a restitui-lo, ou, subsidiariamente, ser a Ré condenada a pagar aos AA., uma indemnização, a título de responsabilidade extracontratual, no montante de 16.000,00€, montante este que deverá ser actualizado nos termos do art. 24º, nº 1 do Código das Expropriações, acrescido dos respectivos juros moratórios calculados à taxa legal, contabilizados desde a declaração de utilidade pública até efectivo e integral pagamento; também subsidiaria e condicionalmente, ser a Ré condenada a indemnizar os AA, por enriquecimento sem causa, o que indevidamente se locupletou, ou seja, o valor do prédio rústico aqui em questão à data da declaração de utilidade pública, do montante de €16.000,00, actualizado à data da decisão final, de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor com exclusão da habitação, acrescidos de juros moratórios, calculados às respectivas taxas legais, contabilizados desde a data da declaração de utilidade pública até efectivo pagamento.
Em síntese, os AA. alegam que são donos e legítimos proprietários do terreno que identificam e que desde 2004 se encontra ocupado, uma vez que foi integrado no mapa de expropriações das parcelas necessárias à construção da obra “... – IP..., ... – ..., IP... (...), sublanço Felgueiras-Lousada”, sem que o referido prédio rústico estivesse identificado no Mapa de Expropriações (cfr. arts. 9º a 12º da p.i.), e, embora não tenha sido objecto de processo expropriativo. Acrescentam que, sabendo que a restituição do imóvel, e consequente restauração natural da situação existente antes do dano que foi causado podem ser vistas como excessivas e demasiado penosas para o interesse público, nesse caso, os AA, enquanto herdeiros dos legais proprietários do prédio rústico expropriado, passam a ser titulares de um direito de indemnização que caberia aos seus pais.
O Juízo Local Cível de Felgueiras, Juiz 2, por despacho de 09.12.20219, admitiu o incidente de intervenção principal provocada de “C..., SA”.
Suscitada pela Interveniente “C...” a excepção da incompetência em razão da matéria foi esta julgada improcedente em despacho saneador de 12.01.2021 (cfr. fls. 185 e 186).
Deste despacho foi interposto recurso em 05.02.2021, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 12.07.2021, julgado procedente a apelação, revogado o despacho apelado e, em substituição, declarou o Tribunal recorrido materialmente incompetente para o julgamento da acção, absolvendo-se os réus da instância (cfr. fls. 243 a 250).
Remetido o processo ao TAF de Penafiel, a requerimento dos AA, veio a ser proferida sentença em 19.09.2022, pela qual foi declarada a incompetência material daquele Tribunal para conhecer dos pedidos dos Autores.

Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei n.º 91/2019, de 4/9, e nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
A questão a decidir nestes autos é o conflito negativo de jurisdição surgido entre o Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Local Cível de Felgueiras, Juiz 2 e o TAF de Penafiel.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [arts. 212º, nº3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19/2) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais, invocando os Autores ser de sua propriedade o prédio em causa nos autos, visando, para além do reconhecimento da dita propriedade, alegando factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o prédio em causa, que consideram ter sido violado pela Ré, ser indemnizados por todos os prejuízos sofridos devido à ocupação levada a efeito pela Ré para a construção de uma obra rodoviária. Esta, por sua vez, contrapõe, a tal pretensão do reconhecimento do direito de propriedade que os documentos apresentados, certidões predial e matricial, não permitem esclarecer a real localização do terreno em causa, desconhecendo-se ainda se o mesmo terá sido ou não ocupado pela obra rodoviária.
O pedido principal formulado pelos Autores é, pois, que se reconheça que o prédio identificado no artigo 2º da p.i. é de sua propriedade pedindo a condenação da Ré a restituir aos Autores o referido prédio, ou, subsidiariamente, caso a restituição não seja possível, ser a Ré condenada a pagar-lhes uma compensação pecuniária no montante de €16.000,00.
Assim, o que se pretende é, imediata e claramente, o reconhecimento e reivindicação do direito de propriedade sobre o prédio em questão, qualificando-se tal pretensão juridicamente ao nível do direito civil. Ou seja, tal como o litígio se apresenta, formulando os Autores pedidos que têm subjacente o direito de propriedade, que invocam e pretendem fazer prevalecer, a relação controvertida é uma relação de direito privado, trata-se da defesa do direito de propriedade de um bem. E, a circunstância de o pedido indemnizatório formulado poder ser enquadrado no âmbito da responsabilidade civil extracontratual não obsta a este juízo, já que este pedido, tal como formulado na acção, não tem autonomia, sendo simplesmente decorrente da invocada violação do direito de propriedade, não relevando, como tal, para a determinação da competência material do tribunal (cfr. neste sentido o Ac. deste Tribunal de 23.01.2020, Proc. nº 041/19 e os arestos nele indicados).
Este Tribunal dos Conflitos tem entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais não se inclui no artigo 4º do ETAF, devendo estas ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual (cfr. Acórdãos de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19, de 02.12.2021, Proc.03802/20.8T8GMR.G1.S1 e de 15.02.2023, Proc. nº 10/21 (todos consultáveis in www.dgsi.pt).
Deste modo, não se enquadrando no art. 4º do ETAF a relação jurídica em causa nos presentes autos, tal como configurada pelos Autores, uma vez que as pretensões formuladas radicam no invocado direito real de propriedade, a competência material para apreciar a presente acção cabe aos tribunais judiciais (art. 64º do CPC).
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Local Cível de Felgueiras, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 18 de Abril de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.