Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:013/23
Data do Acordão:11/22/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
ACÇÃO POPULAR.
BENS DO DOMÍNIO PÚBLICO.
Sumário:É da competência da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de uma acção popular proposta por uma Freguesia contra particulares, na qual a autora pede que se declare que um determinado reservatório e tanques e um caminho, pertencem ao respectivo domínio público.
Nº Convencional:JSTA000P31585
Nº do Documento:SAC20231122013
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VIANA DO CASTELO - JUÍZO LOCAL CÍVEL DE PONTE DA BARCA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
AUTOR: JUNTA DE FREGUESIA DE VILA CHÃ, SÃO JOÃO BATISTA E SANTIAGO
RÉU: AA E OUTRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 13/23

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Relatório
Junta de Freguesia de Vila Chã, São João Batista e Santiago, identificada nos autos, instaurou no Juízo Local Cível de Ponte da Barca do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo acção popular contra AA e mulher BB, formulando os seguintes pedidos:
a) Declarar-se, condenando-se os RR a reconhecê-lo, que os reservatórios e tanques identificados nos arts 5º a 7º, 14º a 16º, 31º desta petição pertencem ao domínio público da União de Freguesias de Vila Chã (São João e Santiago);
b) Declarar-se que a água captada em nascente de Araim, entubada até aos reservatórios, daí derivada para os tanques e habitações do lugar pertence ao domínio público da União de Freguesias de Vila Chã (São João e Santiago);
c) Declarar-se condenando-se os RR. a reconhecê-lo, que o caminho descrito nos arts 18º a 25º e 32º desta petição inicial é público e que a A. e os fregueses que representa têm o direito, como sempre tiveram, de por ali passarem para acederem a pé e de carro aos depósitos de água descritos e outras utilidades que entenderem necessários, bem como o direito de andar nesse caminho / trato de terreno que também assiste a qualquer popular;
d) Condenarem-se os RR. a reporem o caminho no estado anterior, retirando a cancela, pilares e arames referidos nos arts 29º e 30º que impedem tal acesso;
e) Condenarem-se os RR. em custas e demais encargos a serem suportados por eles.”
A Autora alega, em síntese, que no lugar de Portuzelo não existe rede pública de abastecimento de água, sendo o lugar abastecido com a água de uma nascente que existe em Araim, a qual segue encanada até dois reservatórios em cimento e daí é distribuída para as diferentes habitações do lugar e para dois tanques públicos.
Alega ainda que tais reservatórios e tanques foram por si construídos há mais de quarenta anos e desde então são por si mantidos e geridos.
Defende a Autora que o acesso a tais reservatórios, a pé e de carro, se faz pelo caminho descrito no artigo 18.º da petição inicial, também há mais de quarenta anos. Igualmente por esse caminho, há mais de quarenta anos, acediam os fregueses da Autora a terrenos e cortes sitos no lado oposto à estrada municipal, à vista e com conhecimento de todos, sem constrangimento ou oposição de ninguém, convencidos que esse caminho foi afetado ao domínio público da Autora, e que ao assim o usarem não lesavam direitos de outrem.
Porém, alega a Autora, os Réus mandaram colocar no leito do descrito caminho, junto à entrada, umas pedras de grande dimensão e procederam à vedação do terreno onde se encontram edificados os reservatórios de água, impedindo o acesso da Autora a tais reservatórios e dos populares aos mesmos e aos terrenos e cortes.
No Juízo Local Cível de Ponte da Barca do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, por despacho de 27.01.2023, foi determinada a notificação das partes para se pronunciarem quanto à competência material do Tribunal, tendo em conta “os pedidos formulados e as partes envolvidas”. A Autora apresentou pronúncia no sentido de ser a jurisdição comum competente, em razão da matéria, para dirimir o litígio. Em 09.03.2023 foi proferida decisão naquele Tribunal a julgar procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal e a determinar a absolvição da instância dos Réus.
A solicitação da Autora e por despacho de 03.05.2023, o Juízo Local Cível de Ponte da Barca determinou a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (TAF de Braga), o qual, por sentença proferida em 30.05.2023, também se declarou incompetente em razão da matéria.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição no TAF de Braga, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos e aqui as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019.
O Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Juízo Local Cível de Ponte da Barca do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Entendeu o Juízo Local Cível de Ponte da Barca que “(…) terá primeiro o julgador de avaliar se a causa não poderá ser atribuída à ordem jurisdicional administrativa e fiscal, tendo em consideração para tal o disposto no art.º 4.º do ETAF.
É verdade que nenhuma das alíneas do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF prevê especificamente o caso ora em apreço.
Contudo, a al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF prevê uma cláusula geral, ao determinar que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (...) relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.”
Tendo em conta o exposto, pode concluir-se que, para um determinado conflito ser da competência dos tribunais administrativos e fiscais, basta que exista uma relação jurídica administrava e fiscal.
Teremos, então, de saber o que é uma relação jurídica administrativa e fiscal.
Para tanto, recorremos à definição exposta no Acórdão do Tribunal de Central Administrativo do Norte, datado de 10/10/2014, “na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa, deve entender-se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a relação jurídica pública: «em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» - J.C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 55/56” (destacado nosso; Ac. TCAN, Proc. n.º 00630/11.5BEBRG).
Ora, não há dúvidas que a Autora é uma entidade pública, que actua na defesa de interesses públicos e para realizar um interesse público legalmente definido - declaração de domínio público e consequente retirada dos obstáculos colocados pelos Réus.
Consequentemente, estamos perante uma relação jurídica administrativa, caindo na previsão da al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF”.
Por sua vez o TAF de Braga considerou que “In casu, atendendo à causa de pedir, subjacente ao pedido formulado pela Autora, estamos perante uma verdadeira ação de reivindicação prevista no artigo 1311.º do Código Civil, destinada à defesa da propriedade, nomeadamente o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e a violação desse direito.
Concretamente, a Autora pede que seja reconhecido como pertencente ao domínio público reservatórios e tanques de água, a água captada em nascente de “Araim”, assim como o reconhecimento de um caminho identificado na p.i. como público e a reposição do mesmo no seu estado anterior, retirando a cancela, pilares e arames que impedem o seu acesso.
(...) Portanto, a questão controvertida, tal como formulada pela Autora, gira em tomo do reconhecimento de um alegado direito de propriedade, mais concretamente e que a referida parcela de terreno, assim como os tanques, reservatórios e a água captada na nascente de Araim, lhe pertence.
Esta questão foi já tratada, de forma lapidar, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 24.05.2017, proferido no processo 01/17 pelo que, limitar-nos-emos a transcrever o sumário que no mesmo se encontra expendido, ao qual se adere, com a devida vénia (cfr. artigo 8.º, n.º 3 do CC):
(...) É apodítico, que a pretensão da Autora roda em tomo da violação do seu direito de propriedade, ou melhor, está em causa uma atuação material, imputada aos Réus, que, no entender da Autora, viola o seu direito de propriedade. Ora, o reconhecimento do direito de propriedade não integra a noção de relação jurídica de natureza administrativa, conforme resulta do artigo 212.º°, n.º 3 da CRP, 1.º e 4.º do ETAF, dado inexistirem quaisquer normas de direito público que importe apreciar.
Ao contrário do decidido não estamos perante uma relação jurídica administrativa, entidade pública não está no exercício do seu poder público. Pelo contrário, está em igualdade de armas com um particular, ou seja, estão a “lutar pela sua propriedade”, estando em causa a aplicação de normas do direito privado.
Assim, em face da forma concreta como é configurada a ação na p.i. estamos perante matéria cuja competência pertence aos tribunais comuns dirimirem.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se disse no acórdão deste Tribunal de 08.11.2018, Proc. 020/18, disponível em www.dgsi.pt, “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o Ac do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência...».
No caso, a Autora pretende que a água, reservatórios e caminho identificados nos autos sejam declarados como pertencentes ao domínio público e os Réus condenados a retirarem os obstáculos que colocaram no caminho.
Para tanto, alega que há mais de quarenta anos os habitantes do povoado de Portuzelo e o público em geral utilizam a água de uma nascente existente em Araim que, através de tubos/canos e depósitos, abastece os fogos do povoado e dois tanques à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição nem constrangimento de ninguém, convencidos que essa água, encanada e equipamentos (depósitos e tanques) foram afetados pela Junta de Freguesia autora ao abastecimento público da povoação de Portuzelo e à utilização direta e imediata do público em geral. Igualmente, usam o caminho descrito para acederem aos reservatórios, a terrenos e cortes sitos do lado oposto da estrada municipal que liga Santo António a Portuzelo, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição nem constrangimento de ninguém, convencidos que esse caminho foi afetado pela Junta de Freguesia autora ao uso da povoação de Portuzelo e à utilização direta e imediata ao do público em geral.
Alega ainda que os Réus, com a colocação de obstáculos, impediram o acesso aos reservatórios e a fruição do caminho.
Assim, por via da presente acção, a Autora, pessoa colectiva de direito público, procura defender o domínio público da freguesia e não o seu domínio privado.
Dispõe-se no n.º 1 do artigo 1.º do ETAF, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal têm “competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.
Sobre a noção de “relação jurídica administrativa”, esclarece José Carlos Vieira de Andrade: “na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” (cfr. A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53).
Ora, a apreciação de litígios que envolvam uma entidade pública e em que esteja em causa a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza mostra-se actualmente incluída no âmbito da jurisdição administrativa por se tratar de uma questão que versa sobre uma relação jurídica administrativa.
Neste sentido Ana Raquel Gonçalves Moniz escreveu: “(…) as questões que relevam da garantia dos bens públicos e que têm de ser dirimidas jurisdicionalmente integram-se no âmbito da competência dos tribunais administrativos, porquanto revestem a natureza de questões de Direito Administrativo, (…) - se está em causa a protecção de direitos públicos especialidade que justifica a existência de uma jurisdição igualmente especial implica a atribuição de tais litígios aos tribunais dessa ordem jurisdicional. Aliás, com a reforma de 2002, diferentemente do que sucedia em relação ao ETAF de 1984, tais litígios não se encontram agora retirados pelo legislador à competência dos tribunais administrativos. Ora, como alguma doutrina já observava à luz do regime anterior, parece indubitável consistir esta matéria uma das que estaria, em princípio, incluída no âmbito da Justiça Administrativa, enquadrando-se na cláusula geral de litígios emergentes de uma relação jurídica administrativa, em virtude do particular estatuto a que se encontra submetido o respectivo objecto e que só por razões de política legislativa havia sido subtraída à competência dos tribunais administrativos” (cfr. Direito do Domínio Público, in Tratado de Direito Administrativo Especial, vol. V, pag. 203/204).
O presente caso é em tudo semelhante ao relatado no acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 28.09.2010, Proc. 023/09 - entendimento já reiterado no acórdão deste Tribunal, de 22.11.2022, Proc. 01024/22.2T8AGD.S1 -, e que aqui assumimos, tendo-se aí expendido:
(...) não restam dúvidas que com a última reforma da jurisdição administrativa de 2002, entrada em vigor em 01.01.2004, a jurisdição administrativa viu substancialmente alargado o seu âmbito, passando os tribunais administrativos a ser referidos como os tribunais comuns desta jurisdição, o que significa que todos os litígios que versem sobre uma relação jurídica administrativa, que não estejam expressamente atribuídos por lei a outra jurisdição, caem no seu âmbito Cf. neste sentido, vide Vieira de Andrade, obra citada, p. 112 e 113 e Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, obra citada, p. 34.
Ora, é, a nosso ver, o que acontece com os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza, que antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cf. artº 4º, nº1 e) do ETAF/84), mas que depois daquela reforma passaram a integrar o âmbito da jurisdição.
Aliás, diríamos que é esse o seu campo próprio, atento a natureza pública do bem objecto dessa relação jurídica e o consequente estatuto de direito público (administrativo) desse bem, também denominado «estatuto de dominialidade».
Portanto, se bem que tais questões não estejam expressamente referidas no nº1 do artº4º do ETAF, o certo é que deixaram de integrar as alíneas deste preceito que respeitam à delimitação negativa da jurisdição e que integram os seus nº2 e 3.
E não existindo, hoje, qualquer outra norma que as exclua do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, elas cairão, necessariamente, no âmbito da cláusula geral do artº1º nº1 do ETAF, verificados os demais pressupostos da relação jurídica administrativa.
Neste sentido se tem pronunciado a melhor doutrina, que aqui acompanhamos.
Assim e por exemplo, diz a este propósito Vieira de Andrade: «Julgamos que o desaparecimento desta exclusão ao implicar a aplicação da cláusula geral, vai trazer para os tribunais administrativos a competência para conhecer da impugnação dos actos de qualificação dominial, que são actos administrativos, quer se trate de actos de classificação, quer de afectação (vide M. Caetano, Manual II, 8ª ed., p. 850 e segs)., bem como as acções relativas a questões de delimitação do domínio público com outros domínios que são questões de direito administrativo. Na realidade sempre se entendeu que um dos privilégios inerentes à propriedade pública, em comparação com a propriedade privada, é o poder da Administração de delimitar unilateralmente o domínio público (cf. M. Caetano, obra citada, p. 856).
As razões de exclusão, no anterior ETAF, estavam ligadas à ideia de que tudo o que respeitava à propriedade devia ser julgado perante os tribunais judiciais, por desconfiança relativamente aos tribunais administrativos e pela pressuposição da limitação dos seus poderes – são por isso razões que deixaram de justificar o desvio relativamente ao critério substancial de definição do âmbito da jurisdição administrativa.» Vide, obra citada, p. 150. No mesmo sentido, Ana Raquel Gonçalves Moniz, in O domínio Público: o critério e o regime jurídico da dominialidade, Almedina, 2006, p.531 e segs
No mesmo sentido, se pronunciam Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, ao referirem que «De um modo geral pertence hoje ao âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídico administrativa e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais (artº1º, nº1 do ETAF e artº213, nº3 da CRP). (…) Isto inclui, por exemplo, (…) as questões de delimitação de bens do domínio público, que até aqui eram excluídas pelo artº4º anterior. «Tal matéria, que estava expressamente excluída da justiça administrativa no anterior ETAF (cf. alínea e) do nº1 do artº 4º), não é agora objecto de qualquer “desaforamento” legislativo, devendo entender-se que os litígios emergentes de actos de qualificação dominial e de delimitação do domínio público, sendo administrativos, reingressam por força da cláusula geral do seu artº1º, nº1, no âmbito da competência dos tribunais administrativos» Vide, obra citada, in “Introdução”, a p.18.
Também Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira são da mesma opinião in CPTA e ETAF anotados, vol. I, Almedina, reimpressão da edição de Nov. de 2004, p.35/36.
(…) Trata-se, pois, de apreciar uma relação jurídica em que um dos sujeitos é uma pessoa colectiva pública e o respectivo objecto, de acordo com a causa petendi, está sujeito a um estatuto especial de direito público administrativo, pelo que, quer do ponto de vista da tutela jurídica subjectiva, quer do ponto de vista da tutela jurídica objectiva, de que se falará a seguir, tem, sem dúvida, natureza administrativa.
(…) Por outro lado, e contrariamente ao que parecem sustentar as instâncias, a acção popular é e sempre foi, essencialmente, um meio processual do contencioso objectivo administrativo.
Na verdade, se bem que possa também ser utilizada numa dimensão cível (cf. artº12º, nº2 e 22 e segs. da citada Lei 83/95) e até numa dimensão penal (cf. o seu artº 25º), é na dimensão administrativa que a acção popular tem o seu campo principal de intervenção, pois é no âmbito das relações entre a Administração e os administrados que a acção popular faz mais sentido, desde logo, pelos valores constitucionalmente protegidos que se visam defender através dessa acção, vg, a saúde pública, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural, os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais (cf. artº52, nº3 da CRP/97 e artº1º, nº1 e 2 da Lei nº83/95, de 31.08). Aliás, a dimensão administrativa é aquela que está mais presente na Lei 83/95, que inclui designadamente a respectiva tutela procedimental (artº 4º a 11º e o artº 12º, nº1 da citada Lei nº83/95). Cf. a este propósito, José Figueiredo Dias, in Tutela Ambiental e Contencioso Administrativo, p. 213
A confirmar essa natureza essencialmente administrativa da acção popular está ainda o artº 9º, nº2 do CPTA, preceito que respeita à legitimidade activa para acções populares administrativas para defesa dos valores referidos no artº 52º, nº3 da CRP/97 e nos artº 2º e 12º, nº1 da Lei nº 83/95, o qual veio ainda alargar o campo de incidência da acção popular ao incluir, no elenco de interesses difusos, os valores ou bens relativos ao urbanismo e ao ordenamento do território e conferir uma genérica capacidade de iniciativa processual ao MP neste domínio, que a referida lei não previa.
(…) Aliás, o principal contributo da acção popular foi ultrapassar as deficiências de uma tutela jurisdicional dos valores referidos no artº52º, nº3 da CRP e alargar a legitimidade para defesa desses valores, servindo-se da noção de interesse difuso.
A novidade que a figura do interesse difuso traz à tutela jurisdicional é proporcionar uma tutela numa perspectiva supra-individual e não apenas baseada na defesa de posições jurídicas subjectivas, daí que, como se fez constar do citado nº2 do artº 9º do CPTA, tal acção possa ser intentada «independentemente de (o autor) ter interesse pessoal na demanda».
Também, por isso, não faz sentido, recusar a competência dos tribunais administrativos para uma acção popular, com fundamento em que não está em causa um acto de autoridade, como parece ser entendimento do tribunal a quo, embora não claramente explicitado, ao salientar a fls. 345, que «Na presente acção não há qualquer acto administrativo subjacente».
O que releva hoje na delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa é, como referimos, a relação jurídica administrativa e ela não é necessariamente bilateral, assumindo hoje dimensões multipolares.
Por outro lado, as múltiplas faces da relação jurídica administrativa não se fazem só sentir no aspecto subjectivo, mas também no aspecto objectivo, pelo que se bem que o contencioso administrativo vise, primacialmente, a tutela de posições jurídicas individuais (contencioso administrativo subjectivo), não deixa de assegurar também a tutela da legalidade, do interesse público e dos interesses difusos (contencioso administrativo objectivo), e, não raro, os interesses assegurados por uma e outra tutela são convergentes.
Assim sendo e visando a presente acção a defesa de um bem, alegadamente, do domínio público local, que se integra na área de circunscrição territorial da Junta de Freguesia, aqui Autora, a competência para a presente acção é dos tribunais administrativos, quer do ponto de vista da tutela subjectiva, quer do ponto de vista da tutela objectiva (artº 1º do ETAF e artº 9º, nº2 do CPTA conjugado com o artº 2º, nº1 e 12º, nº1 da Lei 82/85).” (cfr. ainda a Consulta Jurisdicional de 06.04.2022, nº 01/22 CP)
É esta jurisprudência que se reitera, pois também no presente caso se trata de um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, cuja apreciação compete à jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do disposto no art. 1º, nº 1, nº 1, alínea o) do art. 4º e art. 44º, nº 1, todos do ETAF e 17º do CPTA,
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, Juízo Administrativo Comum.
Sem custas.

Lisboa, 22 de Novembro de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.