Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:04/23
Data do Acordão:11/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de um litígio no qual, perante os termos em que a Autora configurou a petição inicial, não resulta estarmos perante contratos administrativos ou contratos celebrados nos termos de legislação sobre contratação pública, nem deles emergem relações jurídicas administrativas.
Nº Convencional:JSTA000P31567
Nº do Documento:SAC2023111504
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGANÇA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DE BRAGANÇA – JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE MIRANDELA UO
AUTOR: A..., LDA
RÉU: MUNICÍPIO DE MIRANDELA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A..., Lda, identificada nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo Central Cível e Criminal de Bragança, acção declarativa contra o Município de Mirandela, pedindo a sua condenação a:
a) Transmitir para a Autora, por contrato definitivo de compra e venda, o direito de propriedade sobre lote ..., sito na Zona Industrial ..., na freguesia e Concelho ..., com a área de 2856 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...17 e aí inscrito a seu favor, pela Ap. 6 de 1995/10/04, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo número ...68;
b) Proceder ao pagamento à Autora da quantia de €140.547,50 (cento e quarenta mil quinhentos e quarenta e sete euros e cinquenta cêntimos), a título de compensação por falta de pagamento das rendas devidas e demais penalizações legais, pela utilização do Edifício destinado ao Centro de Logística da “B... S.A.”, desde 15 de setembro de 2017, até à presente data, assim como, das rendas vincendas;
c) Restituir à Autora, por falta de pagamento das rendas devidas, livre e desimpedido de pessoas e coisas, o Edifício destinado ao Centro de Logística da “B... S.A.”, implantado no prédio urbano, constituído pelo lote ..., sito na Zona Industrial ..., na freguesia ..., Concelho ..., com uma área de 2856 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...17 e inscrito na matriz predial urbana sob o número ...68;
Se assim não for entendido:
d) Indemnizar a Autora, a título de incumprimento (contratual) das obrigações assumidas, no montante nunca inferior, a €1.416.440,00 (um milhão quatrocentos e dezasseis mil quatrocentos e quarenta euros), sendo;
e) €1.020.000,00 (um milhão e vinte mil euros), a título dos prejuízos que resultam do investimento já realizado no valor de € 862.516,30 (oitocentos e sessenta e dois mil quinhentos e dezasseis cêntimos e trinta cêntimos), melhor identificado em 13º desta petição, assim como dos lucros cessantes, considerando as legítimas expetativas criadas e não cumpridas pelo Réu, pela falta de pagamento das rendas devidas pelo período de 20 anos, ou seja, 240 meses, no valor mensal de €4.250,00 (quatro mil duzentos e cinquenta euros) cada uma;
f) €396.440,00 (trezentos e noventa e seis mil quatrocentos e quarenta euros) correspondente ao valor do imóvel, ao fim dos 20 anos contratualmente acordados a título de arrendamento, considerando a sua desvalorização, descontada a inerente depreciação à taxa de 4% ao ano;
g) Tudo com as demais consequências legais.”
Alega que, perante a candidatura apresentada por B... SA, no âmbito do Regulamento de Apoio a Iniciativas Empresariais de Interesse Municipal, foi deliberado aprovar, por unanimidade, em reunião da Câmara Municipal “(...) a concessão a título definitivo do lote ... situado na Zona Industrial ..., com a inscrição na matriz predial urbana com o n.º 5678 a favor da Sociedade A..., Lda., NIPC ...81 com o objectivo de aí ser construído o futuro Centro de Distribuição e Logística de Trás-os-Montes e Alto Douro dos B... (...)”, bem como a isenção dos valores devidos a título de taxas de licenciamento municipal e a simplificação de todos os procedimentos administrativos de licenciamento. Mais foi deliberado aprovar as propostas de minutas de contrato promessa de arrendamento a celebrar entre a empresa Autora e o Município de Mirandela e a de subarrendamento não habitacional entre o Município de Mirandela e os B... e ainda delegar no Sr. Presidente da Câmara Municipal de Mirandela as correspondentes competências para assinatura dos documentos aprovados, bem como a condução dos mecanismos de desburocratização e simplificação administrativa que confiram celeridade e eficácia ao processo.
Acrescenta que, na sequência daquela deliberação da Câmara Municipal de Mirandela, nos termos dela e da delegação de competências, o Presidente da Câmara Municipal de Mirandela emitiu uma declaração onde consta que “(...) a empresa A..., Lda, contribuinte n.º ...81, está devidamente autorizada para iniciar e desenvolver os trabalhos de construção no lote ... da Zona Industrial ..., registado na matriz predial urbana sob o número ...68. (...)”.
Mais alega que, no âmbito das negociações prévias levadas a cabo entre a Autora e o Réu com vista a fixar em Mirandela o Centro de Distribuição e Logística de Trás-os-Montes e Alto Douro do B... SA, ficou acordado o Réu ceder à Autora, a custos controlados, o prédio urbano constituído pelo lote ..., sito na Zona Industrial ..., e a Autora construir nesse prédio urbano um edifício destinado a acolher aquele Centro de Distribuição e Logística e dar de arrendamento ao Réu para este o subarrendar aos B..., SA.
Em sequência, a Autora e o Réu celebraram, em 17 de Maio de 2017, contrato de promessa de arrendamento e, concluídas as construções, dentro do prazo e das circunstâncias previstas, em 15 de Setembro de 2017, foi celebrado contrato definitivo de arrendamento, tendo este arrendamento iniciado a sua vigência na data da assinatura, por um prazo inicial de 20 anos e com uma renda mensal fixada no primeiro ano de vigência do contrato, nos 4.250,00€, posteriormente actualizável. Desde 1 de Outubro de 2017 o Centro de Distribuição e Logística de Trás-os-Montes e Alto Douro dos B... SA encontra-se, com autorização da Câmara Municipal de Mirandela, a laborar no imóvel construído pela Autora.
Alega ainda que, não obstante ter dado cumprimento às obrigações contratuais a que ficou adstrita, o Réu, em violação das suas obrigações contratuais, não formalizou a transferência para a Autora do direito de propriedade sobre o prédio urbano; não pagou qualquer renda à Autora; nem notificou a Autora da celebração do contrato de subarrendamento com os B... S.A.
Defende que é dona e legítima proprietária do edifício constituído por um armazém industrial com a área aproximada de 1200 m2, destinado aos B... S.A., onde se encontra instalado o Centro de Distribuição e Logística de Trás-os-Montes e Alto Douro daquela empresa, por si implantado e construído no prédio urbano constituído por lote ..., sito na Zona Industrial ... e que tal edifício, para o destino pretendido, foi construído de boa fé, sob autorização do Réu, no prédio urbano identificado, do qual é, neste momento, inseparável, sem alteração substancial do seu todo. Mais defende que o valor trazido à totalidade do prédio urbano com a construção do edifício da Autora é muito maior do que o valor que tal prédio tinha antes da construção pelo que entende ter adquirido o prédio urbano por via da acessão industrial imobiliária, nos termos do artigo 1340º do Código Civil (CC).
O Réu contestou e, além do mais, arguiu a excepção de incompetência material do Tribunal por considerar que a competência para julgar a acção cabe aos tribunais administrativos.
Em 06.11.2020, no Juízo Central Cível e Criminal de Bragança, Juiz 1, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria e a absolver o Réu da instância.
A solicitação da Autora e por despacho de 15.12.2020 o Juízo Central Cível e Criminal de Bragança determinou a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (TAF de Mirandela), o qual por sentença de 02.12.2022, também se declarou incompetente em razão da matéria.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição no TAF de Mirandela, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos e aqui as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum – Juízo Central Cível e Criminal de Bragança do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Juízo Central Cível e Criminal de Bragança do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança e o TAF de Mirandela.
Entendeu o Juízo Central Cível e Criminal de Bragança que “ (…) tomando em consideração o complexo pedido aduzido pela autora e a causa de pedir que o sustenta e as questões trazidas a lume pelo réu, na contestação que ofereceu, somos de entender que o litígio desta ação tem por objeto questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e/ou execução de contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoa coletiva de direito público, designadamente o réu, e, bem assim, tem por objeto a fiscalização da legalidade de atos jurídicos emanados por órgão da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo e a fiscalização da legalidade de atos jurídicos praticados por entidades no exercício de poderes públicos”. Tendo feito apelo ao disposto nas alíneas b), d) e e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, entendeu aquele Tribunal que a competência para dirimir o litígio caberia aos Tribunais Administrativos.
Por sua vez o TAF de Mirandela considerou que “Por um lado, o negócio complexo celebrado entre as partes (que envolve a transmissão do direito de propriedade do prédio urbano em causa do Réu para a Autora, a construção pela Autora de um edifício no prédio destinado a acolher o centro de distribuição e logística e o centro de distribuição postal do B... e, por fim, a promessa de arrendamento e, depois, o contrato definitivo de arrendamento em que a Autora é senhoria e o Réu é arrendatário) não consubstancia um contrato administrativo, porque não preenche nenhum dos factores de administratividade presentes no artigo 280º, nº 1, do CCP: não se trata de contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público; não se subsume à figura dos Contratos com objecto passível de acto administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos; não se enquadra nos contratos que conferem ao co-contratante direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público; nem sequer se reconduz aos contratos que a lei submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do co-contratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público.
Com efeito, tal como já se apontou, não basta que as normas de direito administrativo regulem certos aspectos pontuais desse contrato, mas antes uma regulamentação jurídico-administrativa específica que afirme, inequivocamente, a primazia do direito administrativo enquanto disciplina primordial com incidência sobre o próprio contrato e sobre a relação jurídica que com ele se inicia. E nos contratos em que se sustenta a causa de pedir não se alcança qualquer nota de administratividade.
Aliás, como sinal disso, o artigo 4º, nº 2, alínea c), do CCP, afasta totalmente a aplicação deste Código aos “[c]ontratos de compra e venda, de doação, de permuta e de arrendamento de bens imóveis ou contratos similares”.
O que reforça a conclusão de que, além de não vir arrimado num contrato administrativo, o objecto do litígio também não versa sobre contratos de direito privado celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública. (…)
Em suma, e em conclusão, o litígio, tal como vem configurado pela Autora, não quadra com o artigo 4º, nº 1, do ETAF, pelo que se considera que para conhecer da presente causa é competente a jurisdição comum.”

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, n.º 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Nas palavras do acórdão deste Tribunal de 08.11.2018 Proc. 020/18, disponível em www.dgsi.pt, “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o Ac do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência...».
É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada que iremos encontrar a resposta à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente acção.
A Autora estruturou a acção invocando que, no âmbito das negociações prévias levadas a cabo entre a Autora e o Réu com vista a fixar em Mirandela o Centro de Distribuição e Logística de Trás-os-Montes e Alto Douro do B... SA, ficou acordada a cedência à Autora, a custos controlados, do prédio urbano constituído pelo lote ..., sito na Zona Industrial ..., propriedade do Município, e a construção nesse prédio urbano, a realizar pela Autora, de um edifício destinado a acolher aquele Centro de Distribuição e Logística. Esse edifício seria arrendado ao Réu para este o subarrendar aos B..., SA. Alega a Autora que, embora tenha cumprido as obrigações a que se vinculou, o Réu não cumpriu as obrigações contratuais assumidas perante a Autora: não formalizou a transferência do direito de propriedade sobre o prédio urbano constituído por o lote ..., sito na Zona Industrial ...; não pagou qualquer renda à Autora; nem notificou a Autora da celebração do contrato de subarrendamento com os B... SA.
Por isso, a Autora pede ao Tribunal que o Réu seja condenado a transmitir, por contrato definitivo de compra e venda, o direito de propriedade sobre lote ..., sito na Zona Industrial ..., na freguesia e Concelho ..., a proceder ao pagamento de uma quantia a título de compensação pela falta de pagamento das rendas e demais penalizações legais, pela utilização do Edifício destinado ao Centro de Logística da B... SA. e a restituir, por falta de pagamento das rendas devidas, livre e desimpedido de pessoas e coisas o referido edifício. Caso se verifique a impossibilidade objectiva do cumprimento das obrigações assumidas pelo Réu, peticiona uma quantia a título de indemnização por incumprimento contratual.
Estamos, assim, perante uma acção de responsabilidade contratual por alegado incumprimento das obrigações, imputado ao Réu Município.
A alínea e) do nº 1, do art. 4º do ETAF, atribui competência aos tribunais da jurisdição administrativa para apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.”.
Nos termos desta norma e para efeito do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos faz-se apelo não apenas ao critério do contrato administrativo, mas também a um outro critério que é o da submissão do contrato às regras da contratação pública.
Como explica Mário Aroso de Almeida, no que respeita ao critério do contrato administrativo, “Estão, desde logo, abrangidos pelo âmbito da jurisdição administrativa os contratos administrativos, isto é, os contratos que apresentem alguma das notas de administratividade enunciadas no nº 6 do artigo 1º do CCP” (actualmente, nº 1 do art. 280º do CCP). No que concerne ao critério do contrato submetido a regras de contratação pública, diz o mesmo autor que “Tal como antes, a alínea e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes dos contratos que a lei submeta a regras de contratação pública. A previsão do preceito compreende claramente litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas a contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas, quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais (ou seja, quando legalmente qualificadas como entidades adjudicantes, segundo a terminologia do CCP, como agora é explicitado no preceito). (…) O critério não é, aqui, na verdade, o do contrato administrativo, mas o do contrato submetido a regras de contratação pública: desde que um contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir devem ser objecto de uma acção a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais - e isto, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo, nos termos do CCP.” (cfr. Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, 2017, p. 165/169).
Ora, perante os termos em que a Autora configurou a petição inicial não resulta estarmos perante contratos administrativos ou contratos celebrados nos termos de legislação sobre contratação pública, nem deles emergem relações jurídicas administrativas.
No “negócio complexo” celebrado entre as partes (que envolve a transmissão do direito de propriedade do prédio urbano em causa do Réu para a Autora, a construção pela Autora de um edifício nesse prédio destinado a acolher o centro de distribuição e logística e o centro de distribuição postal do B... e, por fim, a promessa de arrendamento e, depois, o contrato definitivo de arrendamento em que a Autora é senhoria e o Réu é arrendatário) estão em causa contratos tipicamente de direito privado.
De facto, não se tratam de contratos que, por força do Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público; não são contratos com objecto passível de acto administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos; não se enquadram nos contratos que conferem ao co-contratante direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público; nem são contratos que a lei submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do co-contratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público, de modo a preencher algum dos factores de administratividade constantes no nº 1 do art. 280º do CCP.
Além disso, de acordo com o disposto na alínea c) do nº 2 do art. 4º do CCP, estão excluídos do âmbito de aplicação do Código os contratos de compra e venda, doação, permuta e arrendamento de bens imóveis (do domínio privado da administração) ou contratos similares.
Por outro lado, o prédio urbano cujo direito de propriedade a Autora pretende ver para si transmitido integra o domínio privado municipal e está, em princípio, sujeito a um regime de direito privado. De igual modo, o contrato de arrendamento é tipicamente um contrato de direito privado.
Muito embora o “negócio complexo” que envolve a Autora e o Réu tenha por génese o Regulamento de Apoio a Iniciativas Empresariais de Interesse Municipal, a verdade é que o candidato aos apoios ali previstos é os B... SA e não a Autora. O facto de ter havido uma prévia deliberação, em reunião camarária, não significa que os contratos tenham sido celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, pois tal respeita a um procedimento inerente ao funcionamento da pessoa colectiva pública, nomeadamente à necessidade do respectivo órgão camarário deliberar colegialmente a alienação do seu património privado.
Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos, independentemente daquilo que o réu invoque no quadro da sua defesa. Ora, sendo de natureza privada os interesses que a Autora pretende ver acautelados e não se fundando a causa de pedir em contrato administrativo ou contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, estamos perante um litígio de direito privado da competência da jurisdição comum.
Acresce que qualquer vicissitude administrativa, nomeadamente respeitante à legalidade urbanística, configurará, na medida em que constitua pressuposto necessário da decisão de mérito, uma questão prejudicial, a considerar nos termos previstos no art. 92º, nº 1 do CPC, sem “afectar a originária competência material do foro comum” (Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 22.04.2015, Proc. n.º 01/15, disponível em www.dgsi.pt).
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca de Bragança – Juízo Central Cível e Criminal de Bragança.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Novembro de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.